Estamos em Uberlândia, Minas Gerais e, apesar de Sertão, não é bem o Sertão de Guimarães Rosa. Mas, como todo Sertão, está em nós. Faz nós, enlaça, desenlaça, amarra, solta, amordaça, liberta, afeta pessoas, embaraça. E é nesta terra, cada vez mais árida, que escutamos, como analistas, sujeitos que se propõem a falar de si, a dizer de si. Sendo cada sessão de análise uma poética e cada pessoa uma poesia, partimos disto: uma análise é uma reinvenção das línguas, de uma mesma língua enxertada de novas palavras, da língua do Outro que me causa, que herdo, traduzo, transformo e com a qual atravesso os tempos. Numa análise, torno essa forma mais humana que existe um discurso, me localizo, localizo os outros. Conduzo, como todo falante, a civilização. Quando uma criança fala, seja como for, num gesto, num grito, num silêncio, num barulhinho de voz qualquer, nas palavrinhas tortuosas e inventivas, essa civilização caminha, avança Sertão adentro. Se Guimarães nos faz (a)travessar o Sertão toda vez que se lê a instância da letra com a qual nos contou ao mundo, convidamos aos interessados na psicanálise à escuta do que temos a dizer sobre as palavras ditas e sobre os ditos por traz delas, como praticantes do inconsciente. Escutar a nós e aqueles que invocamos a contar que línguas falam e como escutam as línguas dos Outros, línguas impregnadas de ecos, memórias e associações, pois uma palavra, afinal de contas, não é apenas uma palavra, carrega sempre um segredo: carrega nosso desejo.

Data: 01/12/2023 e 02/12/2023

Evento Presencial e Gratuito em Uberlândia, MG

Local: Anfiteatro 5OA – Campus Santa Mônica/Universidade Federal de Uberlândia

Necessário inscrição prévia. LINK

PROGRAMAÇÃO

Sexta-feira 01/12/23

13h-14h30

Lançamento do livro “O autista como estrutura subjetiva. Estudo sobre a experiência do autista na linguagem e com a palavra” (Cirlana Rodrigues de Souza/Editora Blucher)

14h30 – 16h

Lançamento do livro “Psicopatologia Lacaniana: a partir de quando se está louco?” Aline Accioly, Eliene Boaventura, Angela Vorcaro. Org. Marcia Rosa. Editora Scriptum, 2023.

16h – Credenciamento

16h30-18h30

Pré-evento – Das consequências de deixar aparecer as fissuras em uma reunião de psicanalistas

Participantes da mesa: Aline Accioly, Cirlana Rodrigues de Souza e Germano Almeida Faria Fortunato Pereira

Mediador: Estanislau Alves Silva Filho

19h-21h30

Mesa 1 : Leituras do falasser à lalíngua lacaniana

Participantes da Mesa: Aline Accioly, Kaio Fidelis e José Lucas Nunes

Mediador: Germano Almeida Faria Fortunato Pereira

Sábado 02/12/23

9h-12h

Mesa 2 – Autoriza-se a brincar com a criança em seu ciframento

Participantes: Carolina Antônia Goulart de Paula, Cirlana Rodrigues de Souza, Germano Almeida Faria Fortunato Pereira

Mediador: Thiago Silva Damasceno

14h30-17h30

Mesa 3 – Nesse inconsciente, aquele que fala é um sujeito dentro do sujeito, transcendendo o sujeito

Participantes: Estanislau Alves Silva Filho, Laerte de Paula e Cirlana Rodrigues de Souza

Mediador: Diogo Novaes

17h30-19h

Exposição de Livros de Participantes do evento e Encerramento

TEMA DAS MESAS

PRÉ-EVENTO: Das consequências de deixar aparecer as fissuras em uma reunião de psicanalistas

Desejou-se abordar a palavra “ABERTA” contida na nomeação da presente reunião, em especial aproximando-a das consequências daquilo que surge quando uma associação de psicanálise, do Triângulo Mineiro, mantém a disponibilidade para a fala dos participantes, sejam eles componentes das mesas ou ouvintes. A reunião busca receber pessoas e abordar trabalhos que foram feitos pela associação durante o ano, ao redor de um tema balizador: “Em que língua se conta de uma análise?”. Quando usamos as palavras “REUNIÃO” e “ABERTA”, existe aí uma indicação de posição prévia da associação direcionada a quem estará trabalhando conosco, nos ouvindo e a todos os falantes que participam. A indicação é aquela da aposta do trabalho enquanto psicanalistas, (com Freud) a de que ao suspender qualquer juízo prévio ou saber teórico sobre o que é dito e não colher valor maior ou menor de uma palavra ou de outra, possamos nos mover do dito em direção ao dizer. Vamos, então, atuar no sentido de nos juntar, agrupar seres falantes, e isso considera (com Lacan) algumas exigências para o trato com o dizer.

MESA 1: Leituras do falasser à lalíngua lacaniana

A invenção lacaniana nomeada como Real força seu aparecimento através de um modo de litura que escava, fragmento por fragmento, um lugar de depósito de lalíngua nas entrelinhas da linguagem. Considerando que lituraterrar é um dos modos de passar de um Real a outro – escrevendo o desencontro fundamental entre as três dimensões que suportam a existência lógica de um falasser-, tomamos o falasser, nessa proposição, como texto. A principal substância deste texto é rasurada nas engrenagens incessantes das palavras e seus acordos linguísticos. Por isso, um ser falante escritura-se contando com os ecos que ressoam nos equívocos sonoros que só a fala permite. Em uma experiência de análise, o analista se oferece como legente do texto não-conhecido. A transferência constitui uma zona de passagem entre línguas que testemunha o desconcerto de lalínguas por onde o corpo-texto acontece. Ao perseguir a letra, rasura do falasser, o que se encontra são restos de sua passagem, fragmentos intraduzíveis de uma língua enigmática. Nesse território, a tradução de um fragmento é resultado de uma deformação que destrói o objeto suposto como original – a língua – resultando n’uma composição estrangeira. Através da clínica do escrito, o estatuto da tradução no discurso psicanalítico é discernível topologicamente: ela não se supõe necessariamente literária, nem exclusivamente técnica-lógica, mas lacaniana. A referência de Souza (2022) acerca da nominação “lacaniano” nos indica que tratar-se-ia de uma tradução que “escuta resíduos de lalíngua não compartilhável”, tendo em vista o lacanês como uma “língua impossível de compartilhar, por se recusar aos sentidos disputados até mesmo por lacanianos”. Diante do caráter unheimlich e unerkannt dessa operação de ciframento à lalíngua lacaniana, a zona da passagem configurada pelos atos de tradução (in)determina um arranjo borromeano, imprimindo uma modalidade necessariamente estrangeira à escrita entre línguas. Podemos, portanto, considerar o lacanês como uma lalíngua, que convida corpos falantes à lacan-e-ria nodal?

MESA 2: Autoriza-se a brincar com a criança em seu ciframento

Retomar da nossa prática psicanalítica com crianças aquilo que lhe é radical: os modos de brincar com uma criança, a possibilidade de ouví-la (não só pela fala) contar sobre seus desenhos, acompanhar e ler a sutileza dos gestos, dos sons, levar em conta o que ela faz de si em seu tempo de constituição, de suas criações. Estar com alguém nos primórdios de uma constituição subjetiva. Nessa mesa dedicaremos espaço para lembrar que brincar não é apenas aparato técnico, nem tampouco teoria, mas um modo de cifrar a realidade viabilizada pela criança em sua relação com o Outro e que, portanto, tem consequências de enodamento entre os registros Real, Simbólico e Imaginário. Autorizar-se a brincar nos leva ao que o analista precisa render de sua posição de gozo e desejo para se posicionar de maneira singular em relação ao sintoma no tempo de sua estruturação (parental, da criança e das instituições ao redor de uma criança), quase que ao avesso da clínica com o adulto onde o sintoma estruturado nos é endereçado e se enlaça do atendido em nossa direção na transferência.

MESA 3: Nesse inconsciente, aquele que fala é um sujeito dentro do sujeito, transcendendo o sujeito

O título desta mesa foi retirado de uma entrevista de Jacques Lacan, em 1974. Nela, define a psicanálise como o sintoma do mal-estar da civilização, uma prática que se ocupa do que não está funcionando. O tratamento é com a palavra do analisante que fala, conta, faz contas e explica-se a si próprio em uma palavra endereçada a um outro, o analista, que escuta e é interpretante. A palavra carrega isso que fala (de)lá do inconsciente, o que faz dela a grande força da psicanálise, sustenta Lacan diante do avanço tecnológico e da ciência. Esta mesa é um convite para dizer que zelo temos com a palavra e com o nãotodo que ela arrasta. A palavra aqui não se reduz à unidade linguística, mas é o pedaço que a linguagem nos oferece desse sujeito. As línguas se transformam e Freud sabia que a língua é nossa e não é nossa, que devemos tomar posse dessa herança, dizê-la de outro jeito, formar novas e estranhas palavras, deformar aquelas que resistem ao desejo. A pergunta geral do evento “Em que língua se conta de uma análise?” indica que a experiência de uma análise é de posse dessa língua herdada do Outro. Indica, também, como analistas contam das análises e contam a psicanálise. Duas décadas antes, em 1953, Jacques Lacan proferiu uma palestra para estudantes de Letras com o título “Instância da letra no inconsciente ou A razão desde Freud” argumentando que a linguagem desempenha um papel fundante na formação do inconsciente e na estruturação do sujeito. Ele introduz o conceito de “instância da letra” para se referir à escrita do traço fundamental retido no inconsciente do ser do desejo e, decantando o peso imaginário da palavra, é a esse traço que uma análise se dedica: traço que por ser traço, de tempos em tempos, foi marcando o discurso analítico como palavra, letra, significante e lalíngua.

RESUMO DOS TRABALHOS

Monstruosa língua do-ente: notas sobre um desconcerto de lalíngua – Aline Accioly (Mesa 01)

O ensaio intitulado “Sobre estar doente”, de Virginia Woolf, versa sobre um corpo-texto que testemunha sua versão do-ente. O escrito nos convida a desertar das noções de saúde que moldam nossas leituras de corpos, seus estados e sintomas. O texto Woolfiano exibe um descompasso entre a experiência de um corpo falante e dos relatos clínicos dos corpos falados através do pensamento científico biopsicossocial. O referente que nos interessa, na leitura desses corpos, situa-se na inesperada equivocidade que insiste como ruídos inincurraláveis animando desconcertos de lalíngua. Um corpo do-ente é, sobretudo, um corpo falante capaz de habitar a linguagem ao gritar, silenciar, falar, cantar, dançar e escrever sem se deixar dominar integralmente pelas vias de significação universal. Estar do-ente é perder a falsa familiaridade com o mundo e recobrar o contato com um estranhamento incômodo e íntimo. Virginia Woolf não estava preocupada em circunscrever um estatuto epistemológico para o adoecimento. Seu compromisso com as letras e suas funções referenciais animam outra causalidade para a existência do falasser que escreve. Assim, partimos da letra de Woolf para abrir caminhos que nos permitam escrever, a partir da escuta analítica, existências dos-entes e seus monstruosos e variados usos da língua. Tal orientação baliza a construção de uma hipótese sobre o estatuto do corpo a partir da psicanálise lacaniana nos anos setenta. A noção de corpo falante, concebida por Shoshana Felman e sustentada topologicamente por Jacques Lacan, realiza a escrita das intermináveis deformações de um corpo. Os movimentos de escrita, nodais e modais, promovem um atravessamento não apenas das fantasias imaginárias que articulam esse corpo ao sistema social, mas enfrentam, ainda, uma travessia das estruturas simbólicas de sexo-gênero e identidades que permanecem ensurdecendo analistas e analisandos no reconhecimento das monstruosas e incabíveis invenções. Os movimentos de decisão do sujeito, Preciado nomeia, à sua maneira, como dissidência. Inspirada por esse afrontamento epistêmico nos modos de leitura e escrita do corpo, na condição de monstruoso, interrogo: como a incidência do dizer, que ressoa como um desconcerto de lalíngua, pode ser traduzido a partir dos emaranhados borromeanos em uma análise?

Aline Accioly é Psicanalista, membro da Hæresis Associação de Psicanálise e Doutora em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (Fafich/UFMG). Autora do livro: Psicopatologia Psicanalítica: a partir de quando se está louco? (Editora Scriptum). Atua como psicanalista em clínica particular e coordena o Projeto “Práticas de Escrita: realizando sonhos de corpo falantes” em @escritacorpofalante

Aumentar um ponto em um conto? Dora nas línguas de Cixous e Lacan – Kaio Fidelis  (Mesa 01)

O que é conhecido pelos psicanalistas como caso Dora é uma espécie de tradução em dialeto do título original do texto em que Freud relata o caso em questão, Análise fragmentária de uma histeria. O caso Dora, contado por Freud, carrega em seu título a marca da forma com que é apresentado, uma análise fragmentária organizada a partir de dois sonhos. Hélène Cixous apresenta sua leitura como uma peça teatral, embaralhando ainda mais as vozes narrativas por vezes indefinidas apresentadas no caso clínico freudiano. Se Jacques Derrida descreve o trabalho de Cixous como um “objeto literário não identificado” o que se pode apreender da forma de sua leitura do caso Dora? Por outra via, ao mesmo passo que Lacan posiciona o caso Dora como um recurso para a apresentação de suas diferentes ferramentas teórico/clínicas, Dora também reorienta a teoria lacaniana, chegando a forçar um novo termo – a histeria rígida – para a categoria clínica da histeria a partir da encenação da peça de Cixous. De todas as visadas esparsadas de Lacan sob o caso Dora, o que se extrai? Ou ainda de outro modo, o que se conta e reconta de uma análise de uma língua a outra?

Kaio Fidelis é Psicanalista. Doutorando em Psicologia (Estudos Psicanalíticos) pela UFMG. Membro do Centro de Pesquisas Outrarte – psicanálise entre ciência e arte (IEL/UNICAMP)

Como escutar o falasser nomeado como Negro? – José Lucas Nunes (Mesa 01)

Um sujeito, cuja raça-cor foi dita negra, foi capturado, denominado e subjugado “Negro!” como sinônimo de “Escravo”. Essa transformação, através da palavra e do lugar simbólico que ela denota, aprisionou o sujeito no significante “Negro!”.Tal operação lógica, que a psicanálise lacaniana chama de alienação, acrescida à violência física e social do regime escravagista, cria impedimentos aos sujeitos (agora escravizados e marcados pelo significante Negro!) no percurso de sua constituição psíquica, cultural e humana. Impede, ainda, que estes manifestem sua escrita singular, que poderia se tornar uma marca da diferença entre seus semelhantes. Portanto, o roubo resultante de anos de escravidão foi, principalmente, dos usos e sentidos da língua. O objetivo do presente trabalho é tecer novas elaborações que surgem da investigação sobre o “aprisionamento/alienação” de um sujeito ao significante “Negro”. Afinal, quais são os efeitos desta operação na constituição da subjetividade? A psicanálise aposta em um ser que fala e se manifesta no corpo. Como escutar o falasser quando seu dizer é atravessado pelo significante que o marca no silenciamento do corpo? Como reintroduzir a função de sujeito? A hipótese é que a saída não é pela via das identificações imaginárias. Não se trata de identificar-se ao significante em seu atamento imaginário. A saída dos corpos marcados pelo silenciamento passa pelo enfrentamento do que de Real insiste no significante. Em outros termos, trata-se de retornar a possibilidade de indeterminação como lugar de causa que foi perdida e roubada.

José Lucas Nunes é Psicanalista em formação, Psicólogo Clínico graduado pela Universidade Federal de Uberlândia (IP/UFU). Possui Pós-graduação Lato Sensu em Psicanálise Clínica (UniAmérica). É Pesquisador das questões raciais e saúde mental.

A linguagem que se brinca em uma análise – Carolina Antonia Goulart de Paula (Mesa 02)

A proposta é transcorrer um pouco sobre a minha experiência de análise com crianças e adolescentes. Utilizo o brincar como meio de linguagem e atuação na transferência pelas próprias brincadeiras. Pretendo discutir como as brincadeiras com a criança situam para além das construções de sentido, pois é possível interrogar a criança na linguagem pela brincadeira e da forma que ela produz enunciados, fala de si e suas invenções nos enredos do “faz de conta”. A proposta da minha clínica com crianças é uma condução teórica e prática diferente dos conhecimentos psicológicos e da própria psicanálise inglesa que acredita que há um saber já dado sobre a criança enclausurado no sentido, e também, busco interrogar as interpretações que já foram oferecidas às crianças. Para isso acredito que é possível desenvolver uma análise com crianças atuando com os significantes que aparecem no decorrer das brincadeiras, como os fenômenos do inconsciente aparecem na linguagem com a criança. Para trazer algumas problematizações dessa aposta, pretendo traçar algumas cenas da minha experiência clínica e discorrer sobre como esta materialidade discursiva fica evidenciada na minha leitura. Algumas das perguntas que me interrogam para essa elaboração são sobre o lugar do analista e a condução do tratamento a partir dos discursos que trazem significantes fundamentais. O analista busca localizar questões: por onde o desejo da criança se situa? Quais as formas de gozo? Como ela constrói laços? Quando ela se angustia ou não? Quais as repetições que ela traz? Por isso, a fala com a criança é fundamental para que ela possa interrogar e buscar elementos da sua própria leitura do enunciado, isso é potente principalmente nas brincadeiras. O analista atua com seu próprio corpo, atende a espontaneidade da criança, sugere outras formas de brincar e utiliza a energia que pulsa no cenário analítico.

Carolina Antonia Goulart de Paula é Psicanalista. Possui graduação em Psicologia pela UFU. Atualmente, cursa o mestrado acadêmico em Estudos Linguísticos (ILEEL/UFU). Atua na clínica desde de 2017.

Na língua do Faz-de-conta, o tempo na onomatopeia – Cirlana Rodrigues de Souza (mesa 02)

O brincar não se reduz a uma técnica na clínica psicanalítica com crianças. Trata-se de seu fundamento. Ao analista de crianças, a transferência é a própria imersão numa dimensão simbólica na qual uma criança está se inserindo e sendo inserida. Brincar com um objeto qualquer, com um som qualquer, com um movimento qualquer, com um outro, com uma parte do corpo, é brincar com a linguagem que existe e que lhe antecede. Dentro disso, faço um recorte em três elementos do brincar, dentro do manejo de análise com a criança. O primeiro elemento é o de escrita do ausente sem aprisionar-se no imaginário, ao que se entrelaça o segundo elemento: o tempo do brincar da criança, condicional que ordena a estruturação, de um futuro que não depende de sua realização, valendo a força da ficção, do jogo, da narrativa-introdutória da criança, quando voltar ao início é já lançar-se no recomeço, num tempo sem anterioridade, localizada na origem de seu encontro com a linguagem. Desse tempo de escrita do desejo, decanta-se a figurabilidade como o complexo funcionamento de linguagem de transformar uma palavra em imagem, tornar uma estrutura várias formas, mantendo-a como traço original. Essa forma em movimento se realiza no enlaçamento forma-figura-ritmo, onde o significante marca a dimensão de provisoriedade, do tempo condicional, marca a incompletude da linguagem, portanto, o ausente. Desse movimento, como terceiro elemento, a onomatopeia é o lugar de alternâncias, escolhas, escritas e (re)invenção, um resto de objeto antes do signo na língua de brincar da criança em análise, língua que cria mundos.

Cirlana Rodrigues de Souza é psicanalista e membro da Haeresis Associação de Psicanálise (Uberlândia-MG) com formação acadêmica em Psicologia e Letras, e doutora em Estudos Linguísticos pelo Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais. Fez Residência Pós-Doutoral no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Autora do livro O autismo como estrutura subjetiva. Estudo sobre a experiência do autista na linguagem e com a palavra (Editora Blucher, 2023).

Quatro voltas ao brincar mirando a (de)formação do analista – Germano Almeida Faria Fortunato Pereira (mesa 02)

Situar as diversas línguas que discorrem sobre a criança em nosso tempo e que produzem vocabulário, gramática e semântica sobre ela, tomada como objeto de estudo, é um gesto que pode ajudar a mostrar o percurso que leva o analista a insistir ao brincar com o sujeito em constituição. Se o Psiquiatrisquês, o Psicologisquês, o Pedagogisquês apontam para vivências de infância extremamente idealizadas, cabe a nossa língua psicanalitisquesa se localizar como estrangeira em qualquer língua que os falantes nos dirigem, isso inclui a criança em seu momento de constituição subjetiva, ou seja, momento no qual está sendo inserida em uma lógica que lhe antecede e no mesmo gesto se colocando nela a seu modo. Esse gesto de situar as diversas línguas visa nos conduzir, na reunião sobre “Em que língua se conta de uma análise?”, à insistência ao brincar para contar da análise de crianças. E aqui insistir-se-á quatro vezes, serão quatro voltas ao brincar: Uma volta para questionar as línguas que falam de uma criança no texto de um relatório, outra volta para citar uma obra literária que nos ensina sobre deformação e brincadeira, uma terceira volta sobre a teoria psicanalítica do brincar e uma última volta para acompanhar algumas deformações de Lacan. Nessas quatro voltas do brincar na (de)formação de um analista, buscou-se questionar a possibilidade de que, na caminhada pela Psicanálise (estudo teórico, supervisão e análise pessoal) está-se sempre às voltas com uma autorização: poder deformar nossa língua psicanalítica. Tal interrogação poderia avançar sobre o que Lacan produziu com suas deformações dos matemas, esquemas, figuras topológicas e com a própria língua francesa (em neologismos, por exemplo) e o nó borromeano?

Germano Almeida Faria Fortunato Pereira é psicanalista, mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia, membro associado e co-fundador da Hæresis Associação de Psicanálise e Uberlândia, trabalha em clínica particular e pública (Centro de Atenção Psicossocial) e como professor de Psicologia na UNINOVE em São Paulo.

A Inabilidade com a palavra – Cirlana Rodrigues de Souza (mesa 03)

Trago a análise como espaço-tempo de desamordaçar a palavra e, para isso, o que o analista decide que escutou é fundamental na soltura disso que o amor ao Outro amarra, amansa, silencia, amedronta e pesa. Partirei do imaginário, de uma fotografia da coleção “Mr Steinberg’s Model: A 1940s – Fetish Photography Mystery”, onde a mulher, como objeto amoroso, precisa estar amarrada e a boca encerrada. Especificamente, a fotografia que circula com o nome de Palavra amordaçada, onde uma provável Mrs. Steinberg está atada aos moldes da técnica erótica oriental Shibari, a boca selada por um lenço entre os dentes e posta deitada em um divã. Vale dizer que o divã, dado a Freud por Mdme. Benveniste, é parte da imagem de uma análise, ali onde há quem se perca no prazer, na dor e no gozo. As pessoas chegam às análises assim, amordaçadas, mesmo no falatório e na falação. Se o que ressoa aos ouvidos do analista é o que retorna como o corte nas cordas que amordaçam e adoecem as pessoas, como Freud nos conta desde Ana O. e Dora, cabe perguntar: De que lugar, na linguagem, um analista toma a decisão sobre o que escutou do que lhe foi endereçado? Qual lógica opera para ouvir, ser ouvido e fazer-se ouvir? Ele se lembra que tem à sua frente um falante de uma língua e que não é uma língua qualquer? Basta recolher um ‘significante’, associar um sentido e enunciá-lo no decorrer da sessão? Para esse que decide o que escutou, o que é linguagem? O que é língua? O que é discurso? O que se diz? O que foi esquecido? Quem aqui fala? O sujeito sabe que não é livre no dizer, está ali para subverter as formas possíveis, ir desamarrando aos poucos cada nó, pois, afinal, foi construído às semelhanças e dessemelhanças pela língua do Outro, é muito a expressão da língua materna, a primeira escutada. Ao introduzir o lugar e o para que serve a fala, na psicanálise, Jacques Lacan lembrou aos analistas que funcionamento da língua como o que estrutura o inconsciente interessa enquanto a língua é falada, sugerindo escutar as formas linguageiras, as poéticas, as cantigas populares, escutar a língua em circulação como fato social, concordando com um linguista de envergadura estrutural como Ferdinand de Saussure. E, deste nosso português imposto e tornado a única língua de um país do tamanho do Brasil, devemos nos atentar que ele arrasta expressões que nos dizem desses falantes imersos em uma memória histórica e social não muito afoita àquilo que psicanalistas deveriam amar nas línguas, as mudanças e as transformações. Como é possível que se diga “Você segue reto toda a vida”? Assim, a proposta é não confundir reprimido, esquecimentos, não saber como e o que diz, a psicopatologia da vida cotidiana, e o que ainda resta dela, os equívocos com a inabilidade com a palavra, com a palavra amordaçada. Lembro que a genialidade de Freud e Lacan foi articular, na palavra, o significante, a morte e a sexualidade.

Cirlana Rodrigues de Souza é psicanalista e membro da Haeresis Associação de Psicanálise (Uberlândia-MG) com formação acadêmica em Psicologia e Letras, e doutora em Estudos Linguísticos pelo Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais. Fez Residência Pós-Doutoral no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Autora do livro O autismo como estrutura subjetiva. Estudo sobre a experiência do autista na linguagem e com a palavra (Editora Blucher, 2023).

Proposta de contrato ou contrato de aposta – segmento das contraintes para um texto psicanalítico – Estanislau Alves da Silva Filho (mesa 03)

Eis uma aposta. E também um pacto. Não pode não fazer. O que não quer dizer que não se desfaça. O tempo todo é assim. Lacan, nos conta Millot, reescreveu ao menos três vezes o seu Aturdito, tendo o recomeçado do zero a cada vez, pois jogava mesmo no lixo a prévia terminada. Ela, que leu cada uma delas, diz que a primeira era a mais compreensível, e cada uma das seguintes acrescentava um grau de “complicação”, sempre mais ambíguo, condensado e sobredeterminado, de modo ter que ser desembrulhado. Bion gostava de considerar que as teorias psicanalíticas são ótimas, mas que Freud deveu suas descobertas mais à utilização inconsciente – do mito edípico, por exemplo –, do que a quaisquer outros métodos ou aspectos mais facilmente reconhecíveis de seu trabalho. Não é um caminho diurno, óbvio, consciente. O que não quer dizer que não haja forma, jeito e causa. Há que causá-lo! Lançar um facho de intensa escuridão (pois só de noite se veem as estrelas)? A origem do ‘desejo’, pelo latim ‘de’ (queda) e ‘sidĕrĭvm’ (estrela), remonta às noites sem nuvens ou luas cheias, quando se podia ver leite derramando espaço no céu escuro, estrelas cadentes riscando o infinito, isso, sim, servindo de farol. Trabalho de leituras. Entre ou estre linhas. (mas “Estre” já tem outro sentido: 1. deitar uma camada de palha ou mato seco sobre o estrume, nos currais do gado; 2. estender pelo chão; juncar) Valerá minuciar com calma uns modos e outros. Respeitando a inteligência do leitor: não explicando demais.

Estanislau Alves da Silva Filho é analisante, ex-psicanalista e traidor em psicanálise. Mais bem: antes analista e analisante, agora pirata e com puta dor de ouvido, sempre herético por voca(liza)ção, sem não tradicionalizar. Ainda, doutorando em psicologia (USP), organizador dos livros da coleção O que é ser lacaniano/a? (Calligraphie, 2023), Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais (Editora Fi, 2022) e autor do livro Regras para o parque lacaniano. Contraintes do discurso psicanalítico (Editora Fi, 2021). Também, não faltam textos ensaísticos espalhados por este universo de linguagem.

Em que língua se experimenta a satisfação de uma análise? – Laerte de Paula (mesa 03)

O trabalho propõe articular uma série de achados que joguem luz sobre as possibilidades de transmissão dos efeitos de uma análise, indicando alguns de seus acontecimentos primeiros – chamemos de abertura, ou de entrada em análise –, passando por aqueles que poderíamos chamar de travessia das repetições e insistências, até chegar a algumas coordenadas para se pensar os parâmetros que permitiriam interrogar em que medida uma análise pode ou não tornar legível uma conclusão. Retomando a pergunta freudiana: o que seria legítimo esperar daquele que atravessou uma análise? Em Análise Terminável e Interminável, Freud responde que o Eu daquele que passou por uma análise seria um Eu transformado. Ainda que sua leitura dos limites de uma análise tenha sido criticada e mesmo ultrapassada por Lacan, sua proposição pode ser defendida, desde que tentemos indicar de que transformações se trataria. Em Nota Italiana, Lacan indica que sem entusiasmo, não seria possível atestar que uma análise levou a termo a produção de um analista. Libertação, destituição, de que truque se trataria para que o entusiasmo possa comparecer e, minimamente, justificar algum tipo de satisfação digna de tamanho empreendimento? Assim, falar de efeitos e fins e, ao mesmo tempo, meditar sobre a própria linguagem são tarefas indissociáveis. O que um analisante que perfez uma trajetória de análise teria a indicar sobre sua relação com a língua? Para recuperarmos a pergunta que convida a este evento, acrescentaríamos: o que determina uma língua? Profusão de línguas com as quais se pode brincar, já que, disse Lacan, só se diz de uma língua em outra língua. Um analisante, tocado pelo tipo de análise que me interessa debater, precisaria favorecer para seu desejo (isto é, seu buraco, sua divisão) o efeito de contágio. Precisa? Haveria alguma possibilidade de fazer desse procedimento um ato antecipável ou mesmo formalizável? Não se trataria tanto de saber em que língua fala, mas em como fala aquele que foi marcado pelos efeitos de uma travessia analítica. Alguns lacanianos chamariam tal acontecimento de passe, ferramenta degradada que parece servir mais à neutralização do espanto que de exibir alguma descoberta. Assim, como formalizar algo que só pode se produzir como acidente, como contingência, como ato não decidido pela vontade, escandaloso, a cada vez, um a um? A única tese a se sustentar é a seguinte: não se trata tanto de contar o que se passou, mas de fazer algo acontecer no próprio ato em que se conta. Vejamos se este trabalho poderia aclarar tais provocações.

Laerte de Paula é psicanalista e escritor. Mestre em Psicopatologia Fundamental pela PUC-SP. Membro do Instituto VOX, onde coordena, em 2023, o seminário Desdobramentos Clínicos e Políticos da Sedução. É um dos coordenadores do Projeto Vociferarte. Participa de variadas atividades de transmissão. Publicou O Vento, A Chama (2019, Editora 106) e A Casca do Tempo Nascente – Ensaio sobre a Sedução (2022, Editora Zagodoni).

Membros Hæresis e Comissão organizadora