Tag: criança

A fala de uma criança em impasse subjetivo e seu efeito de angústia

Capítulo de Livro: Psicanálise e Mal-estar na Universidade
(Organização: Edmundo Narracci Gasparini, Nina Virgínia de Araújo Leite e Paulo Sérgio de Souza Jr.). Editora Mercado de Letras. 2015. p. 147-161.

Cirlana Rodrigues de Souza

            Introdução

Este artigo se inscreve na clínica psicanalítica com crianças em impasse subjetivo. [1]  Esse impasse é caracterizado pelo enodamento da criança na posição de alienação subjetiva no qual seu drama constitutivo é narrado em uma fala repetitiva em sua entonação e em suas verbalizações.  Acompanhamos um menino, hoje com seis anos e que chegou ao tratamento clínico em um posicionamento na linguagem sugerindo traços psicóticos, ou seja, repetição de frases vindas do outro, mas sem inversão sintática e semântica demonstrando que ele não se apropriava da língua, em um funcionamento sem estatuto do imaginário com as coisas do mundo.

Trabalhar com os dizeres da criança como fala, portanto instância da língua (Pincerati, 2009), possibilita acompanhar seu percurso de subjetivação (e seus impasses subjetivos) com base na intrínseca relação entre língua e sujeito, de modo mais específico, da língua como constitutiva do sujeito. Sobre a questão da língua determinante da subjetividade, partimos da hipótese de Lacan (1961/1962[2003]): um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. É com base nessa proposição que Balbo (2004, p.123) discorre sobre a língua que interessa como aquela que “[…] nos causa, e que só falamos por ouvi-la da boca do Outro”. Ou seja, nos causa por vir do Outro, do campo da linguagem, tesouro dos significantes, conforme Lacan (1964[2008]).

Dos Estudos Linguísticos nos interessa o funcionamento desse significante constituído pela distinção entre seus pares formando o signo linguístico como um sistema de valor (Saussure, 1916[1995]) sustentando que é mesmo pela diferença entre sujeito e Outro que o sujeito em constituição se efetiva, após sua posição subjetiva inicial marcada no tempo da alienação nesse campo. No percurso de vir a ser sujeito do desejo, é o funcionamento da língua nos eixos sintagmático e associativo (paradigmático) que torna possível acompanhar a subjetivação da criança, em seus dizeres.

Diante da criança inicialmente mencionada, uma questão se impôs: “Quais as estratégias de linguagem ela, em impasse subjetivo, vai construindo em seu percurso de subjetivação como possibilidade de outra direção a esse impasse?”. A hipótese é a de que a criança constrói essas estratégias subjetivas a partir dos significantes que o Outro lhe oferece, em uma relação associativa, e do singular da criança com esses significantes, em uma relação sintagmática, marcando a possibilidade da diferença nesse campo de linguagem.

Especificamente, abordaremos a dificuldade em lidar com as falas dessa criança como dado linguístico considerando que o trabalho de pesquisa de doutorado se inscreve no campo dos Estudos Linguísticos. A passagem da função da fala na clínica – de nos apontar para a condição de sujeito – para sua função de dado linguístico, portanto de dizer sobre ocorrências da língua, resulta na tensão que existe entre a relação da psicanálise com o saber sobre a língua, dizendo de outro modo, com um não saber sobre a língua e a relação dos Estudos Linguísticos com o conhecimento sobre a língua, da tensão provocada pelo encontro do analista com o linguista em que o primeiro, como parte dessas investidas epistemológicas deverá – em se tratando de clínica da criança – estar na posição de subjetivação (de agente de subjetivação) e ser destituído, mais dia menos dia, de sua posição de suposto saber, e, o segundo, o linguista, como investigador sobre a linguagem que deverá sustentar um conhecimento sobre seu objeto de estudo, sobre a fala de crianças.

Como resolver essa tensão se o universal para a psicanálise é justamente o inapreensível, a condição de sujeito barrado e o universal para os Estudos Linguísticos é o que é possível apreender nas formas descritíveis da língua? Por se tratar também de psicanálise o caminho é não resolver essa tensão (o conflito), mas operacionalizá-la nessas investidas na clínica e na escuta dessa criança em seu percurso de constituição como sujeito do desejo.

 

            A tensão: a fala da criança como dado linguístico

 

Tentar reduzir o que a criança nos dizia, durante sessões clínicas, a dado linguístico (recorte, corpus de trabalho) teve um efeito muito importante no trabalho e que, durante algum tempo, nos paralisou diante dessa criança: efeito de angústia, pois literalmente não sabíamos o que fazer com esse “dado”. Sobre isso consideramos alguns pontos. A saber: essa angústia como uma espécie de parâmetro para delimitar os episódios dessas falas e o mostrar essas falas por meio da transliteração de nossas falas alçadas inicialmente a signo. De modo breve, situamos esses pontos, na sequência.

Nos estudos linguísticos temos, como tradição, o recortar as ocorrências de linguagem orais ou verbais para explicá-las por meio de descrições e/ou análises pautadas em estruturas linguísticas ou extralinguísticas. Nada que não seja apreensível deveria ser considerado e, muitas vezes, ouvimos que esta ou aquela explicação deve ser “mostrada” no dado em uma relação direta entre um conceito e a forma que o representa, algo muito próximo ao signo saussuriano e a relação significante e significado. Porém, a questão do dado linguístico merece outra visada quando o foco da investigação é o inapreensível que apenas está marcado como possibilidade de haver, ali onde há falta nos dizeres da criança, sujeito em constituição.

Um ponto difícil, dessa questão, é sobre a transcrição das falas. Primeiro essas falas foram gravadas em sessões clínicas e transcrevê-las seria impor o enunciado sobre a enunciação e, segundo, se o que interessa de uma sessão clínica à psicanálise é o inapreensível a um gravador (o sujeito), o que transcrever?  Dessa criança, poderíamos transcrever os momentos em que suas repetições insistentes tinham efeito de insuportável, de angústia, instaurando um vazio entre nossos dizeres.  Vazio que nos remetia sempre a uma falta, a uma suspensão de haver algo entre nossos dizeres – algo indizível, porém suposto – e essa suspensão sempre seguida de um retorno do sempre repetível dessa criança que começou com perguntas vindas de outros, portanto ecolálicas, até repetições da fala de outros (e nossas) que lhe permitiram, pela primeira vez, dizer o nome próprio mesmo que vindo da boca do outro.

Esses breves apontamentos sobre a transcrição nos remetem a De Lemos (2003, p.28) ao dizer que do corpus, constituído da fala de crianças, o que resta são aqueles episódios “[…] em que irrompe uma criança através de uma fala inesperada. Fala essa que, no entremeio da fala do outro a que está alienada, diz que ela, na sua singularidade, habita aquela língua, a do Outro.” E, também, nos remete a Vorcaro (2000, p.136) ao abordar o estatuto do dado linguístico como articulador de abordagens teóricas e clínicas. Para esta autora, o dado linguístico produzido na clínica deve ser tomado como uma “[…] possibilidade de recolher a singularidade através do testemunho da clínica.” E, continua ela, “[…] em cada caso, a dita patologia de linguagem[2] estabelece um método, por estar regida por leis próprias de inscrição de um sujeito na língua, língua na qual um laço discursivo o aloca.”

Desse modo, é a condição subjetiva de impasse na alienação constitutiva dessa criança que estabelece o modo de transcrever e trazer nossas falas à análise, condição manifesta na insistência, inicialmente maciça, de ecoar a fala do outro e, atualmente, se alternam com falas inesperadas. Ou seja, os episódios (sincrônicos) nos mostram as repetições e, em um percurso (diacrônico), temos as possibilidades de acompanhar as substituições e deslocamentos nessas falas.

Esse modo de transcrever considera a angústia como momento direcionador da escuta da fala dessa criança. Dizendo de outro modo: como aquilo que não engana (LACAN, 1962-1963[2005]), no contexto transferencial da clínica, por ser inominável, por não fazer sentido. Por muitas vezes, não nos era possível responder às perguntas insistentes, não era possível, pela fala, incidir um ato nessa estruturação que pudesse romper com o que parecia não ter intervalos e que era incessante impedindo, até mesmo, um investimento imaginário de sentidos no que a criança dizia. O caminho foi começar a repetir suas entonações, suas sibalizações em “psipsipsipsis” e “tátátátás” nos pontos de angústia e que eram, esses pontos: um não saber o que responder a uma criança que só fazia perguntas e não se interessava por nenhuma resposta, a impossibilidade de cessar os ecos, a dificuldade de entender o que era dito, o fato de que a criança, por alguns momentos, parecia nos rejeitar como interlocutor em contraponto ao fato de que, em outros momentos, nos impunha que lhe oferecêssemos as palavras para que ela pudesse falar.

Para a linguística interessa as formas da língua que são passíveis de serem transcritas. Para a clínica, o que não é mostrado em uma transcrição é imperativo. Frente a isso, a tentativa é operacionalizar a noção de transliteração proposta por Allouch (1995, p.63):

 

A transliteração é o nome dessa maneira de ler promovida pela psicanálise com a prevalência do textual: ela é esta própria prevalência, ela a designa, a específica, e a dá pelo que é, a saber, uma operação.

 

Essa transliteração seria possível tomando, inicialmente, a fala da criança como um signo, como o signo de Pierce (na teoria geral dos signos) tal como Lacan (1960-1961[1992], p.232) sustenta no Seminário, Livro 8, A Transferência, falando do desejo do analista:

 

De fato, ele também não é sem ter um inconsciente. Sem dúvida, ele está sempre para além de tudo aquilo que o sujeito sabe, sem poder dizer isso a ele. Só pode lhe fazer um signo. Aquilo que representa alguma coisa para alguém, esta é a definição do signo. Não tendo, em suma, nada mais que o impeça de ser, este desejo do sujeito, senão justamente por tê-lo, o analista está condenado à falsa surpresa. Mas digam a si mesmos que só há eficácia se nos oferecermos à verdadeira, que é intransmissível, e da qual ele só pode dar um signo.

 

É desta noção que Lacan chegará ao significante como o que representa o sujeito para outro significante. Do signo ao significante, Lacan (Idem, p.258), na sequência desse seminário, se pergunta:

 

Um significante, simplesmente representa alguma coisa para alguém? Não está ai a definição do signo? É isso, mas não simplesmente isso. Acrescentei uma outra coisa da última vez que recordei para vocês a função do significante, é que o significante não consiste simplesmente em fazer signo para alguém, mas, no mesmo momento da mola significante, da instância significante, fazer signo de alguém – fazer com que o alguém para quem o sujeito designa alguma coisa, este signo o assimile, que o alguém se torne, ele também, este significante.

 

Considerar a fala da criança como esse signo vai possibilitando que, em algum momento (em termos de posição subjetiva), uma instância significante, uma ruptura nessa cadeia de representar alguém para alguém seja signo de haver ali sujeito em constituição.

Se impasses e dificuldades vão surgindo em um percurso de constituição do sujeito, são nesses pontos a possibilidade de escutar essa criança servindo-lhe de lugar de subjetivação: posição gerada pela dúvida e pela angústia e não pela certeza e segurança resultantes de um possível conhecimento prévio sobre a criança e sua “língua”. Mas, é válido esclarecer que isto não implica em não antecipar, pela via do Imaginário, uma aposta no sujeito em constituição.

Com base no que essa criança nos faz pensar sobre a língua (e a linguagem) a partir do modo como se relaciona com esse campo é que a tentativa é levar adiante a relação possível entre os estudos linguísticos e a psicanálise, em que o efeito é de algo que se instaura a partir da tensão que caracteriza essa relação e que tem haver, entre outros aspectos, com o fato de que o significante para a linguística é atado a um significado, enquanto que para a psicanálise o significante é definido pelo sujeito do inconsciente que é no lugar do vazio de sentido.

Frente a isso, Milner (1995) ao discorrer sobre as relações possíveis entre linguística e psicanálise, transformadas pela obra de Jacques Lacan [1901-1981], esclarece vários aspectos dessas relações. Mas, dois pontos são importantes na visada de um encontro entre a psicanálise e linguística, em um programa de pesquisa intitulado Estudos Linguísticos, dentro de uma universidade.

O primeiro ponto, como já foi abordado, se refere ao fato de que a linguística poderia considerar os dados linguísticos levantados e atualizados pela psicanálise: O que esses dizeres, falados na clínica, nos mostram sobre o funcionamento da língua?

O segundo ponto se refere à importante observação de Milner (1985) de que a fala constitui a mesma substância que tanto linguista como analista manipulam e que ambos lidam com o paradoxo de ser sujeito falante: têm que lidar com a própria língua e com o próprio inconsciente. A questão, com base no autor citado, é que a psicanálise enfrenta esse paradoxo, enquanto a linguística ainda insiste em considerá-lo uma deformação de seu objeto.

 

Análise como um enfrentamento

 

Segue-se um esboço de análise das falas da criança mencionada como um modo de enfrentamento da tensão que se instaura entre linguística e psicanálise e que direciona as questões anteriormente levantadas.

De modo geral, aquilo que, no início, aparecia como uma problemática para essa criança se mostrou sua marca singular no campo da linguagem, como suas estratégias a seu impasse subjetivo: a ecolalia que passou a repetição em que repetir a fala do outro é a primeira posição da criança, na linguagem, como sujeito falante (De Lemos, 1981, 1982, 2002). Aqui, é uma discussão que se dá pensando na especularidade da criança com a fala do Outro. Essa ecolalia inicial, que insistia como sintoma, portanto dizia da criança, seria uma dessas estratégias, a forma desse sujeito em constituição se engendrar na linguagem. Além da ecolalia sintática (o paralelismo sintático demonstrando não haver efeito da relação de oposição na cadeia), também foi possível escutar suas concatenações quando cantarolava seus “psispsispsis” e “tatatás”: significantes, muitas vezes quase inaudíveis, que essa criança oferecia e que basculava no meio dessa rigidez sintagmática, como uma emergência inesperada nas cadeias ecolálicas que possibilitou supor haver ali um sujeito se constituindo em estreita relação com o tempo da afânise e da separação subjetiva.

A fala dessa criança ia do paralelismo sintático, insistindo na entonação, na ecolalia até o ponto, nesse percurso marcado pela repetição, em que, como ocorre nos episódios abaixo, a referenciação por meio de uma forma nominal sustentou a possibilidade de haver sujeito em constituição, como estratégia de linguagem para seu impasse. Atualmente questionamos essa referência a um terceiro como um fenômeno de linguagem comum à estrutura psicótica, a inversão pronominal, em que o falante se refere a si como um outro, na terceira pessoa do singular: trata-se, como hipótese clínica, de uma referência da criança a si mesma em que repetir o que o outro diz dela é começar a reconhecer-se na fala desse outro.[3]

Na sequência, alguns episódios de nossos dizeres. Lembrando que a criança apresenta um impasse subjetivo que aponta para a possibilidade de psicose, o que é possível sustentar em um diagnóstico estrutural considerando a inscrição desse sujeito já no tempo da alienação subjetiva, portanto no campo da linguagem e, também, pelo fato de haver interesse por parte dele pelo Outro e pelos outros, que são sempre trazidos por suas ecolalias e repetições que, direcionadas ao outro em posição de escuta, vêm acompanhadas do olhar que não é evasivo, mas afetivo e vinculador. É com base nesse diagnóstico que sustento que essa ecolalia não é parte de um quadro de autismo infantil e, por isso, é possível pensar nas diferentes tomadas, pela criança, da fala do Outro, do modo como ela toma os significantes que lhes são oferecidos na hipótese de psicose infantil.

Os movimentos ecolálicos do menino, muito maciços no início do tratamento, não eram apenas imediatos, ou seja, não reproduziam o que lhe era dito apenas no momento da sessão. Os blocos, difíceis de desmontar de sua fala, vinham de outro lugar. Essas ecolalias conhecidas como tardias acabavam por instaurar, entre nós, um circuito de diálogo que correspondia a pergunta-resposta-pergunta-resposta até que um significante (seus psisipsis) promovesse algum deslocamento nesse eixo. Também, lhe é ainda singular o paralelismo sintático que, mesmo deslocando e substituindo significantes que lhe são oferecidos, estes se ‘encaixam’ nessa estrutura sintagmática rígida. Aqui é possível pensar que, em seu percurso subjetivo, estaria havendo uma determinação da posição psicótica? Todavia, ao acompanhar seu percurso podemos ver o inesperado rompendo nessa estrutura que ecoa e depois se repete mudando esse entrelaçamento alienante do sujeito com a linguagem.

 


Episódio 1: Primeira sessão, em que ele mexia em uma caixa com brinquedos, de costa, porém não era possível a ele brincar com o que manipulava, sem imaginário. Esta estrutura sintagmática permaneceu sem deslocamentos durante muitos meses antes que os signos tivessem efeito de corte, alçados ao estatuo de significante, produzindo uma diferença nessa estrutura.

 


Cadu: Qué blincá.

T:[4] De que vc vai brincar?

Cadu: Cê batí?

T: O que é?

Cadu: Cê batí?

T: Não, eu não bato não.

Cadu: Cê vai batê não?

T:  Não.

Cadu: Qué blincá.

T:  De que você vai brincar? (Oferencendo caixa de brinquedos)

Cadu: Vai batê. Qué blincá. Cê vai batê chinelo?

 

 

Nesse episódio é possível supor que o eco que vai fazendo da fala do outro – eco naquele momento angustiado – no dito Cê batí? substituiu o Qué blincá devido a uma associação, no campo da linguagem, entre bater e brincar, sendo possível, então, a substituição no sintagma, mas uma substiuição que não aponta para uma diferença. Esse funcionamento ecolálico permite supor o enodamento do sujeito no ponto da alienação, pois ao tomar o que vem do Outro não produz a diferença. Mas, é esse mesmo funcionamento ecolálico que nos permitiu escutar e insistir em lhe oferecer signos e, como se lê nesse breve episódio, ele foi ecoando – na forma imediata – nossas palavras como ao se apropriar de bater não em Cê batí? Não, eu não bato não. Cê vai batê não?, momento em que foi possível hipotetizar um diagnóstico diferencial com o autismo, pois ele, mesmo ecoando sintaticamente, estabeleceu um diálogo comigo. Vale uma referência ao jogo sonoro entre batê/brinca/batê ditos sempre na mesma entonação, enfatizando a última sílaba. Diante desse jogo o modo como lhe oferecíamos palavras enfatizava essa entonação também. Acreditamos que nossa entrada nesse jogo sonoro teve como efeito estabelecer as relações associativas entre o que o campo da linguagem lhe oferecia e o que, desse campo, ele se apropriava: ênfase na semelhança como antecedendo à diferença.

Na continuidade, a ecolalia, até então a serviço da alienação, mostrou-se a serviço de uma possibilidade de diferença, de deslocamento no eixo da fala. Quando lhe digo De que você vai brincar? e ele reponde Vai batê. Qué blincá. Cê vai batê chinelo? ainda temos blocos sintáticos que se repetem, mas em termos associativos ele traz, para cadeia, tudo o que foi lhe dito anteriormente e acrescenta um novo significante: chinelo. Também, a referência a si de forma invertida com o uso da terceira pessoa do singular lhe é característica e merece um destaque, pois, nos primeiros meses, vinha sobre uma forma vazia o lugar, na sentença, do pronome ele. Ou seja, nem mesmo pelo espelhamento no outro era possível referir-se a si mesmo, pois não havia uma inscrição que lhe fosse singular dada sua alienação subjetiva. Mas, sabemos que é na falta que o sujeito se constitui e esse vazio – essa afânise – será, posteriormente, como será mostrado nos próximos episódios, preenchido por significantes vindos do Outro que dirão dessa criança deixando lhe inscrito quem é ele.

 

Episódio 2:  Nesse episódio Cadu está correndo pela sala no ritmo de uma música cantada por nós. Ao brincar pela sala acompanhando o ritmo da canção que cantávamos ele imaginariamente nos diz que está se movimentando no campo do Outro a partir dos significantes que esse Outro lhe oferece, em termos transferenciais que supõe, no Outro, um saber.

 


Cadu: Cabô. Caiu. Bateu. Tô pegandu.

T:  Cadu caiu, bateu nu chão e tá pegandu o sapato.

Cadu: Caiu.

T:  Cadu caiu nu chão.

Cadu: É rosa.

T: O que é rosa?(Continuo cantarolando)

Cadu: Tá cantandu? Ela tá cantandu.

T:  É. Eu estou cantando. Você vai cantar comigo?

 

 

Nesse episódio, o menino mantém sua rigidez sintagmática e há inversão pronominal quando a referência é a si mesmo – ainda não se reconhece, pois não há o especular, a especularidade, o espelho de Lacan. Porém, um deslocamento é primordial na ocorrência Tá cantandu? Ela tá cantandu. Como uma bascula na cadeia significante esse Ela vem demarcar uma diferenciação com o Outro e o reconhecimento, por parte dessa criança, desse Outro. É possível ter havido uma imitação sintática por parte dele? Pois, antecedendo esse dito nos referimos a ele narrando o que ele fazia em terceira pessoa: Cadu caiu, bateu nu chão e tá pegandu o sapato. Nesse ponto, o que era eco da fala do Outro e de outros dá lugar a uma imitação desse Outro: ele passa a se apropriar da língua como o Outro faz. Também, ao trazer a heterogeneidade para sua fala, Cadu nos mostra como a diferença – resultante de uma associação advinda do campo da linguagem – instaura um limite entre o que é eco e o que poderá vir a ser repetição, ou seja, reconhecimento de si pelo que o Outro lhe oferece.

 

Episódio 3: Nesse momento, Cadu está pegando um carrinho e duas bonequinhas e já, desde algum tempo, é possível vê-lo tentando criar histórias com os brinquedos, juntando os brinquedos da sala, selecionando alguns e rejeitando outros, nos oferecendo alguns e aceitando um ou outro que lhe é oferecido. Nesse episódio, de modo específico, ele vem brincando com algumas bonequinhas de pano em uma casinha de madeira.

 


T:  Você vai brincar com o carrinho?

Cadu: Caiu! Caiu!

T: Caiu ou o Cadu jogou?

Cadu: Cabô.

T: Acabou o quê? Leva o carrinho para passear.

Cadu: O bixim foi nu clube. Ele voltou.

T:  Pega.

Cadu: Tô pegandu.

T:  Coloca ela sentada. Onde o Cadu vai levar ela para passear?

Cadu: Ela mordi. Qué pô ela. Caiu! Caiu!Caiu! Caiu!

T: Vamos colocar ela sentada.

Cadu: A Marinha.

T: Quem? O nome dela é Marina?

Cadu: Marinha.

T: Você disse que o nome dela é Marinha.

Cadu: Cabô. Caiu.


 

Nesse recorte, temos uma marca importante das tentativas da criança em tomar a palavra. Pela primeira vez escutamos uma nomeação proferida por ele e o significante não foi tomado pela ecolalia. Primeiro, o Ela, em referência à boneca nos mostra, na narrativa, o que ele vai fazendo de sua brincadeira, em uma possível dialética entre os diferentes sujeitos dessa história. Na ocorrência anterior, O bixim foi nu clube. Ele voltou temos uma substituição na forma nominal que nos mostra como seu paralelismo sintático, antes ecolálico, foi cedendo lugar a um funcionamento associativo entre bixim e ele, colocando essa criança no campo do sentido – do produzir sentido – ou seja, uma possibilidade de que, estruturalmente a afânise vá dando lugar à inscrição de sentido e não mais ao vazio.

Notoriamente, o significante – encarnado nos fonemas por ele falado – foi escutado, resultado de uma homofonia, por mim como Marina quando ele a nomeia. O importante foi sua recusa à minha significação, fazendo-se, então, um lugar de sentido para ele, indícios de uma relação com a língua marcada pela diferença em que o que vem do Outro tem seu lugar diferenciado do que vem dele. Ao oferecer significantes, Cadu não está mais à mercê dos significantes que lhe oferecemos. A mudança nos mostra a possibilidade da diferença. Há, inclusive, nesse recorte, um diálogo, uma dialética do sujeito na qual nos apresentamos como faltante, na medida em que lhe demando respostas e ele responde, a partir de sua falta, nos oferecendo significantes. O que se escuta é uma mudança que pode apontar para uma saída de sua condição inicial de impasse, porém não a resolução desse impasse, ainda. Transferecialmente, pensando em uma ordem paradigmática, é possível ver a movimentação para além de um enodamento inicial. Em relação ao ritmo repetitivo e silábico de sua fala, enfatizando sempre a última sílaba, nesse ponto de seu percurso, esse aspecto começa a se perder não havendo mais essa entonação singular de nossos encontros iniciais e que foram fundamentais para que, de algum modo, entrássemos nesse funcionamento de Cadu, pelas repetições desse ritmo.  Ou, talvez, o modo pelo qual ele entrou no campo transferencial que ali se instaurava.

 

Epsódio 4: Enquanto coloríamos desenhos de palhaços que fazem um programa de televisão.

 


T:: O que vc tem no olho?

Cadu: Machucô o olhu. Cadê a Marinha vermelha?

T:  Hoje ela não está aqui.

Cadu: Tá Marinha rosa. Cadê o PatatiPatatá?

T:  Tá aqui. Qual você quer?

Cadu: Fazê PatatiPatatá.

T:  Vermelhu e azul.

Cadu: Machucô o olhu. Vovó machucou u olhu.

T: Sabe o que pode ter acontecido? Ela foi enxugar seu cabelo e encostou em seu olho.

Cadu: Machucô o olhu. Vovó bateu chinelo.

T:  Você está me contando que vovó bateu o chinelo em seu olho?

Silêncio

Cadu: Cabô. Cadu não foi pra escola.

 

 

Nesse episódio a ecolalia e a imitação dão lugar à repetição da fala do Outro. Para contextualizar esse funcionamento, vale dizer que alguns momentos antes do início da sessão a avó da criança conta que naquele dia ele não foi para a escola. Toda a sequência de fala é Cadu estabelecendo relações associativas e de diferenciação (já que vai substituindo os termos na cadeia de sua fala) entre o que ele dizia e o que eu dizia, para nos dizer o por quê não foi para a escola para, ao final, repetir o que ouviu da boca da avó: Cadu não foi pra escola.

O sujeito se enuncia nesse recorte, esta poderia ser minha aposta: é a primeira vez em que ele faz referência explícita a si mesmo, ainda em terceira pessoa. Agora há um nome, uma criança nomeada. Também, nesse ponto, parece haver uma dimensão de posicionamento subjetivo. Primeiro, há uma recusa, um corte de minha leitura sobre a causa do olho machucado; em segundo, denuncia o outro, marcando a separação, a diferença e isto tanto em relação à figura do cuidador, da avó, quanto a nós. Há, nesse episódio, o fato singular de dizer sobre si, de reconhecer na fala do outro o equívoco e, pela primeira vez, ele fala seu nome – mesmo vindo da boca do outro – para dizer sobre seu movimento por diferentes contextos, lugares no mundo: o menino fala si e dá indícios de poder vir a sustentar seus dizeres, portanto ser falante, quando recusa nossa palavra e coloca outras palavras no lugar. Ou seja, reconhece a fala do Outro e, em termos de constituição, nos mostra que reconhece a diferença com esse Outro. Na fala de Cadu, parece ser o momento de encontro com a diferença, com a heterogeneidade constitutiva. Falar seu nome, dizer que não foi à escola é a repetição das palavras dos outros, da avó materna. Todavia, dizer (mesmo que repetindo o que vem da boca do Outro) seu nome não é da alienação e nossa hipótese é de uma possível saída estrutural, um momento onde o simbólico passa a incidir, novamente, nesse percurso, conforme a especularidade na fala da criança.

Lacan (1946[1998], p. 181) em suas Formulações sobre a causalidade psíquica, retomando o ponto zero como o tempo da matriz simbólica que antecede à identificação da criança com o outro, apresenta uma singular “forma de relação com o mundo”, o transitivismo, “[…] fase primordial em que a criança adquire essa consciência de seu indivíduo que sua linguagem traduz, vocês sabem, na terceira pessoa, antes de fazê-lo na primeira.”  Em posição alienante – fundadora do sujeito, porém, um impasse para Cadu – a criança, por identificação, toma do outro elementos (significantes, afetos) como seus. Falar de si em terceira pessoa é, portanto, tomar-se do Outro primeiramente. Nessa direção, uma possibilidade seria considerar o que Cadu ouviu de si e tomou para si (no sentido de ter sido capturado por), mas ainda na terceira pessoa do singular, pois se encontra justamente na posição alienante, mas dando indícios de uma relação com o mundo em Cadu não foi para a escola e de uma “consciência de si”.         Cadu pode ter atribuído a si uma nomeação feita pelo outro?  É possível que, ao se identificar ao outro da fala da avó (ao Cadu que não foi para a escola como ela nos conta), ele reconheça que esse outro é ele mesmo? Desse modo, a fala repetitiva – e não mais ecolálica – teria a função do espelho no processo de identificação primária, nas primeiras identificações de Cadu: Eu e o Outro (que é dito) somos um.

 

Episódio 5: Durante essa sessão Cadu volta repetitivo, e não ecolálico, porém com novos conteúdos, pois fala sobre seus colegas da escola nos dizendo, então, que está na escola. O que vai dizendo é sobre um menino que ainda não consegue sustentar o laço com as outras crianças, porém, ao dizer sobre elas começa a lhe direcionar uma demanda e responder, ao seu modo, ao que os outros lhe demandam. Interessa-se sobre algumas ferramentas de brinquedo e, enquanto vai falando, passa a sessão tentando brincar com as ferramentas conosco. Cantarola os “psipsipsis” entre um movimento e outro e entre os dizeres. Quase ao final dessa sessão, o menino aceita as palavras que vamos oferecendo para que substitua as palavras que vem repetindo. Por ter recebido essas palavras elas passaram de signo a significante fazendo com que a criança, pela repetição da fala do Outro, caminhe no campo da linguagem.

 


Cadu: Paulo é feiu. Vô batê Juaum Vitor. Vô batê Paulo.

T:  Você está me contando os nomes de seus colegas de escola. Mas vai bater em todos por quê?

Cadu: Vô batê ….. Gabriel é feiu. Vô batê Gabriel.

T:  Gabriel é colega. Gabriel é bonito. E Cadu vai brincar com Gabriel.

Cadu: Vitor é feiu e fi da puta. Vô batê Vitor.

T: Vitor é colega e bonito. Cadu vai brincar com Vitor.

Depois de uma longa sequência, quando arrumávamos a mesa para terminar a sessão, ele diz, me olhando:

Cadu: Vitor é colega bonitu. Vai brincar Vitor.

T:  E o Paulo?

Cadu: Paulu é colega bunitu.

 

 

 

Nesse episódio, o fato de se dirigir a nós, pelo olhar, para falar dos colegas tomando os significantes oferecidos, nos possibilita sustentar não se tratar da ecolalia da fala do outro e nem imitação, pois não nos imitou sem nenhuma alteração. Ao repetir o que lhe dizíamos foi possível a ele associar as palavras vindas do outro, ser marcado por elas e, depois de algum tempo, retomá-las. Esse percurso entre o que dissemos e o que ele disse – nos repetindo – nos faz supor que, na relação com a língua dessa criança, há significantes inscritos e que são retomados, como signo, no eixo das associações constituido de traços mnêmicos, inscrições advindas do Outro. Apostamos, nesse momento sincrônico, haver uma repetição, uma tomada da fala do outro e deslocar esses significantes no sintagma mostrou o heterogêneo na cadeia.

 

 

            Considerações finais

 

Retomando a difícil relação linguística e psicanálise que abordamos e que resulta, impreterivelmente, em uma tensão no limite entre os dois campos de saber, podemos, para finalizar, trazer de volta a questão feita anteriormente: o que os dizeres, dessa criança, falados na clínica, nos mostra sobre o funcionamento da língua?

Primeiro,  não nos parece que a problemática de tomar a fala da criança, realizadas na clínica, como dado linguística resultaria na perda do singular caro à questão do sujeito em constituição. De fato, essa fala, quando retirada da clínica, já passa a ter um estatuto de dado linguístico passível de recorte, descrição e análise. Porém, pela versão da psicanálise, a ênfase é justamente dar esse estatuto de dado linguístico aos pontos de opacidade da língua, em que é possível descrever e dizer sobre as regularidades e funcionamento dessa língua, tomando a fala a partir de sua função de dizer sobre esse sujeito do desejo.

Segundo, e nos parece primordial, a clínica nos impõe uma regularidade singular e irrepetível no funcionamento da língua dessas crianças e isto implica que os estudos linguísticos podem dizer sobre o paradoxo chamado sujeito do inconsciente, que nasce no campo da linguagem.

 

Referências Bibliográficas

 

ALLOUCH, Jean. (1995). Letra a letra: transcrever, traduzir, transliterar. Rio de         Janeiro:           Campo Matêmico.

 

BALBO, G.(2004). “A língua que nos causa”. In: VORCARO, A.M.R. (orgs.). Quem fala na língua? Salvador: Ágalma Psicanálise Editora, pp.123-150.

 

BERNARDINO, L. M. F. (2004). As psicoses não decididas da infância: um estudo      psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo.

 

DE LEMOS, C. T. G. (1982). “Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado)        original.” Boletim da Abralin, nº 3. Recife, Editora Universidade Estadual de       Pernambuco.

 

DE LEMOS, C. T. G. (1985).  “On Specularity as a Constitutive Process in Dialogue and          Language        Acquisition.” In: CAMAIONI, L. e LEMOS, C.T.G. (orgs). Questions   on social         explanation: piagetian themes reconsidered. Amsterdan, John       Benjamins.

 

DE LEMOS, C. T. G. (2002). “Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação.”           Cadernos de Estudos Linguísticos, nº 42, pp. 41-69. Campinas.

 

DE LEMOS, C.T.G. (2003).  Corpo & Corpus. In: Mercado de Letras. In: LEITE, N.V.A.         (Org.). Corpo e Linguagem – gestos e afetos. Campinas: Mercado de Letras, pp.    21-      30.

 

LACAN, J. (1946[1998]). “Formulações sobre a causalidade psíquica.” In: LACAN, J.  Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, pp.152-196.

 

 

LACAN, J. (1960-1961[1992]).  O Seminário, Livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro:           Zahar Editor.

 

LACAN, J. (1961-1962[2003]). O Seminário, Livro 9. A identificação (1961-1962[2003]).       Publicação não comercial. Centros de Estudos Freudianos do Recife.

 

LACAN, J.  (1962-1963[2005]).   O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro:    Zahar   Editor.

 

 

LACAN, J. (1964[2008]). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da           psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editor.

 

MILNER, J.C. (1995). Linguistique et psychanalyse. Disponível em http://www.lutecium.org.

 

SAUSSURE, F. de. (1916[1995]) Curso de Linguística geral. Organizado por Charles Baley   e Albert Sechehaye. São Paulo: Cultrix.

 

VORCARO, A.M.R. (1999). Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Rio de   Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

 

VORCARO, A.M.R. (2000). O estatuto do dado linguístico como articulador de abordagens      teóricas e clínicas. Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas, n.38, pp. 131-13

 

VORCARO, A.M.R. (2004).  A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia     de        Freud.

 

PINCERATI, W. D. (2009). O estatuto da palavra que tem efeito neológico na   construção      do delirante. Dissertação de Mestrado. Campinas: Instituto de      Estudos           Linguísticos da Universidade de Campinas.

 

 

[1] A expressão impasse subjetivo é uma alternativa aos diagnósticos fechados para as variadas condições de sofrimento psíquico da criança e que são incoerentes com sua condição de sujeito em constituição. Sobre essa condição do infantil, na psicanálise, Bernardino (2004), situando as dificuldades de delimitação do diagnóstico em categorias definidas, propõe a expressão psicoses não-decididas para a infância em referência à posição subjetiva da criança no campo da Linguagem e seus impasses nesse campo. Vorcaro (1999, 2004) utiliza-se dos termos acidentes e desastres como referência às condições psicopatológicas denominadas de autismos, psicoses, fenômenos psicossomáticos e a debilidade mental, considerado-as como hipóteses clínicas.

[2] Referência às questões abordadas pela clínica da linguagem.

[3] Frente a isso, a criança é nomeada de Cadu: nome de ficção.

[4]  Terapeuta.

Em tempos de retrocessos, o resto de infância

Psicologia em Foco, CRP 04, de 13/07/2016

 

(* Trata-se de uma conversa sobre a temática, sem outros propósitos. Os termos Infância/criança por vezes se sobrepõe na mesma função semântica**Autores mencionados no corpo do texto.)

 

Lacan (1953) afirmou que aqueles praticantes da psicanálise que não considerem a subjetividade de sua época deveriam desistir de praticar a psicanálise, por isso, trabalhar na clínica com crianças, seus impasses constitutivos e sofrimento psíquico é localizar a criança na contemporaneidade, é atualizar os discursos sobre a criança já que nestes convergem os sintomas da criança e o que é uma criança.

O crítico Neil Postman, no livro O Desaparecimento da infância (1982), nos mostra os deslocamentos que a    ‘ideia’ de infância vem passando considerando as relações entre essa ideia, a tecnologia de comunicação, a consciência, os valores culturais e os sentimentos. O autor retoma a linha dos estudos sobre os costumes, na linha traçada por Norbert Elias, Ariès Philippe e outros, expondo sua tese do desaparecimento da infância. No prefácio à edição mais recente, o autor reafirma a mesma tese e se declara não ser capaz de apontar saídas para interromper a tendência por ele identificada anos antes.

O termo “desaparecimento”, no título da obra de Postman, expressa que as crianças estão se tornando seres adultos precoces ou pseudo-adultos.  A argumentação recupera as semelhanças e distinções entre crianças e adultos no que tange ao vestuário, a linguagem, as atitudes e os desejos, em diferentes contextos históricos.

A tempos vê-se, em diferentes áreas, autores colocando em questão a infância como o lugar discursivo, histórico, social, cultural e subjetivo de crianças e adolescentes. Se olharmos as pinturas de todas as épocas, é possível ver, desde antes a idade média, a ausência de crianças e adolescentes nas pinturas e como, pela via da religiosidade, ela começa a aparecer lentamente nas pinturas em raras situações de cuidado, de educação entre outros. Mas algumas pinturas se destacam: aquelas em que as crianças sempre apareciam de mãos das com figuras de morte, pois, entre outras situações, ficava-se sempre a dúvida se aquele bebê, aquela criança iria ou não sobreviver, devido à mortalidade infantil. Essa morte da criança, para alguns, se apresenta em retorno e, podemos dizer, de modo pessimista, não apenas de modo figurativo. Questões se apresentam como ‘O que se espera de uma criança?’, feita por Claúdia Mascarenhas ou,  equivocadas confusões se estabelecem como a feita entre a queda de ideais parentais e de referências de lei (simbólica) com um ‘suposto’ fim da metáfora paterna.

São tempos em que é preciso perguntar a que imaginário social essa noção de infância estaria submetida (De a-criança ao real infantil: reflexões psicanalíticas acerca da infância/Eric Ferdinando Kanai Passone/2016/Estilos da Clínica). Esse imaginário está submetido à evidência científica, evidência que é apenas consistência, segundo minha hipótese. É a cruel evidência do Você é isto, tamponando o Você poderia ser isto ou aquilo ou aquilo outro, da alteridade.

Ouvimos que hoje, no agora da sincronia, do tempo mesmo da infância, são tempos de retrocessos e de conservadorismo. Estes  termos  não têm a ver com algo do tipo “naquele tempo era melhor”. O que estaria na cena contemporânea como seu obscuro (Giorgio Agamben) é justamente uma espécie de retorno a aspectos culturais e históricos em que os processos civilizatórios imaginariamente retomam seus equívocos históricos higienistas e sócioeducativos, enganando-se novamente sobre a inabalável eficácia do saber biológico.

Em francês, retrocesso traz o sentido de recaída e figurativamente “reculée”, de algo remoto. Também, é recochete [a volta que um corpo faz quando é atingindo]. Portanto, o que é do sujeito volta sobre ele mesmo, porém sem o corte da linguagem. Estaria a infância, esse objeto cultural e social ricocheteando, retornando a algo remoto, como aquilo da presença de uma morte nas pinturas? Ou mesmo a antes, a esse ‘reculée’, onde não haveria nem mesmo essa noção de infância, frente ao número de mortes cotidianas de todas as formas? Portanto, valeria perguntar se realmente a mortalidade infantil estaria sob controle, se não estaria em pleno desenrolar uma mortalidade infantil do tipo social, histórica e cultural? Por isso, em tempos de retrocesso, o resto de infância.

Estou considerando a construção histórica e social de infância, em que crianças e adolescentes passam  a ser de interesse dos processos de construção de saber, articulada com o ‘fato’ constituinte de que ‘infância’ é tempo lógico do psiquismo/da constituição do sujeito, e isso diz, entre outras coisas, que há um risco desses processos se encontrarem com o cerne de um sujeito do desejo, que é sua condição de subversão: subverter, fazer outra versão ao que está aí, fazer outra versão ao seu direito de gozar, de ser gozador. Qual versão temos em um tempo determinado pelas leis de consumo, estas em substituição às leis de produção? Aquilo que produzimos como ‘sujeitos’ tinha um excesso, um resto que não se consumia, pois deveríamos abrir mão, cedê-lo ao outro como pagamento a nossa condição de desejar: seria um preço qualquer, um valor não contável que pagamos por isso [uma alegoria ao objeto a], o resto em presença vazia e que encerraria nosso engodo de totalidade. Essa é a condição nuclear da infância, de ir escrevendo em seu percurso isso que é resto, inscrevendo a incompletude. Porém, como se dá essa inscrição em tempos de uma completude gozante, como a infância vem inscrevendo esse resto pelas vias de uma espécie de obrigação ao gozo em que devemos consumir o que produzimos em excesso, na nova ordem e, assim, não ceder mais ao desejo, à falta?

Não concordo com o fim da infância, mas é preciso fazer questões em torno disso que ainda é resto dos restos da infância e dos modos contemporâneos e obscuros das tentativas de fazer essa ‘morte’, tentativas de calar o choro e o grito original de uma criança, praticamente aquilo que dá início à vida. Conto duas cenas de filmes sobre isso.

Primeira cena do filme Filhos da esperança (EUA/2006). Estamos na Terra, 2027. As mulheres não conseguem engravidar por algum motivo misterioso. O ser humano mais novo morreu aos 18 anos e estamos, então, em um risco concreto de extinção da humanidade. Theodore é uma jovem que misteriosamente aparece grávida [um milagre que não tem explicação religiosa, pois não há mais um Deus a se ter fé], e o filme gira em torno de protegê-la e proteger o bebê que consegue nascer e ir sobrevivendo em meio à miséria e à guerra, em um tempo destituído de todo traço de civilização. Destaco a cena do choro misturado ao grito, nesse mundo sem criança. Quando o bebê nasce é preciso escondê-lo. Durante um tiroteio, o bebê começa a chorar de modo intenso, quase como gritos. Aos poucos, vemos como esse choro se sobrepõe aos tiros e todos, abismados, param diante daquele som, pois havia sido a 18 anosa última vez que um choro de criança havia sido escutado. Incrédulos, as personagens esfarrapadas se aglomeram em torno desse chamado à vida.

Na segunda cena, do filme Perfume, história de um assassino (2006), a mãe do pequeno Jean-Baptiste o abandona logo após o parto, no meio do lixo, no meio do esgoto do mercado de peixes, na fétida Paris de 1738, o abandona para a morte. O bebê chora, grita forte como apelo de amor a um resto de cheiro daquele objeto que ficou como promessa de ser objeto de amor. Choro que naquela história anuncia a morte, e as pessoas se aglomeram em torno desse chamado à morte, pois é a isso que Jean Baptiste vai se dedicar em vida.

Dessas duas cenas destaco apenas como pode ser fácil a uma criança morrer e desaparecer, todavia é da infância e dos corpos de meninos e meninas que essa noção vai tomando forma e se tornando a presença que exala a vida no meio das obscuridades: pode ser difícil de uma criança morrer.

A infância é tempo, lugar sincrônico do aqui e agora, de mudanças, transformações, perdas e ganhos, da passagem de um sujeito que não fala para aquele que vai sustentar seu dizer, é o caminho que percorremos para entrar na cultura, dela ser efeito e sobre ela ter efeitos. É o processo civilizatório de Freud, do mal-estar como resposta à nossa hostilidade pulsional. A infância é o caminho de (des)encontro com a sexuação, encontro com a partilha dos sexos pelas vias dessa sexualidade que é pura cultura.

Conservadorismo tem como sinônimo conservantismo que soa e ressoa de modo duro em tempos em que não se quer deixar restos/que não se quer sujeitos, em que a fala toma função imaginária e perde seu estatuto simbólico, perde sua opacidade.

Quais tentativas de impedir essa ascensão à linguagem, no contemporâneo da infância? Pode-se enumerar várias: tornar patológica a lei básica de constituição do psiquismo, que é a repetição, a persistência em sair de sua passividade para a atividade, pelas vias da criatividade, do brincar e tornamos isso agitação, hiperatividade em um mundo de excesso de excitações; não erogeinizamos seu corpo, pela significação, mas violentamos esse corpo, passamos ao ato; tornamos crianças e adolescentes consumidores e autoconsumidores, mesmo sem oferecer-lhes condições subjetivas e sociohistóricas para isso, sem lhes dar a possibilidade de escolher entre o ter e o renunciar a algo; não falamos com elas, o que barra a transmissão simbólica, a transmissão de ideais parentais [apostas que fazemos nesses pequenos sujeitos]; matamos o pai [não a metáfora paterna] como aquele que nomeia e não possibilitamos aos pequenos ir sem esse pai; destituímos os espaços primordiais de supor saber sobre esse sujeito nas versões falidas da família e da escola em que afetos são patologizados; vemos isso na questão sobre a agressividade em nome da segurança, de riscos gerenciáveis; os movimentos são cerceados e o corpo da criança deixa de ser convocado; o sofrimento psíquico é tamponado [abafado!] por todas as formas de comportamentos observáveis tratáveis e intratáveis: não há pathos, não há mais paixão na infância; as crianças escolhem e na adolescência não há mais escolhas a serem feitas, ideais a serem transgredidos.

Como a noção de infância, revolucionária em seu fundamento, não irá sucumbir a esses tempos de tradicionalismo quando o direito à diferença é negado, de criatividade eletrônica que sufoca a criação, de invenções ao contrário [brinquedos prontos], de um higienismo sob a tutela do biopoder, de insistência em velhas fórmulas familiares, em uma educação que se nega à transmissão histórica e nega veementemente a sexualidade infantil; de um sistema que começa a assumir não querer incluir o outro, de um cotidiano imediato e forjado em imagens enganadoras, em facadinhas que viram facadinhas de nada como na pintura de Frida Khalo, de hostilidades ao singular, de silenciamento do que produz riscos de ruídos e de uma afetividade sentimentalista que barra a circulação de afetos?

Tempos em que a ciência da evidência é gestora da vida e dos riscos de viver. Podemos perguntar, por exemplo, considerando alguns trabalhos feitos, que relação tem a criança e o adolescente com a cidade em que vive, em que deveria circular? Qual o tempo do tempo da infância nesses tempos de urgências? O que é urgente? É possível que infância seja uma evidência? O projeto de felicidade não é garantido pela norma que diz ‘você deve ser feliz’, e ser feliz é ser eficiente, ser igual, hoje em dia.

Diante disso, começo por citar um verso de Hilda Hilst: “Tempo de cegueira, quando os homens não se veem”, tempo, aliás, confirmado por José Saramago no Ensaio sobre a cegueira. Tempo de surdez e tempo de mudez, acrescentaria. O filósofo Giorgio Agamben diz que repetir é a lei da infância, nos termos freudianos: repetir, persistir, reconhecer-se e estranhar-se como semelhante, o que não é negar a semelhança, se separar, diferenciar-se, ser alteridade, ir-se do outro, mas levar as marcas e os traços dessa experiência simbólica [desamparo], perguntar o que quer, criar, recusar, verter sua nomeação, atuar e dizer, acolher no corpo a língua que lhe causa, alocar a falta sexuada no corpo.

Jacques Lacan e Manuel de Barros ajudam a ver e compreender esse resto. Dois que nos retornam pela poesia. Lacan, em Duas notas sobre a criança, entregues a Sra. Jenny Aubry em outubro de 1968, diz que o sintoma da criança é o ‘representante da verdade’ [não é A verdade]. Na criança esse sintoma se encontra na situação de responder por aquilo que há de sintomas/de verdade na estrutura familiar [correlato das estruturas simbólicas]: criança é o correlato de uma fantasia do outro, sendo aí a presença do terceiro para assegurar essa mediação e o que esse Outro quer que eu deseje e o que eu quero desejar. Duas faltas. É dessa não mediação pelo desejo, pela linguagem, que temos a criança objeto, a criança resto do desejo do Outro. Ser esse resto da fantasia do Outro com seu desejo nomeado aprisiona a criança. Esse sintoma é sexual e faz laço. A criança faz sintoma, vai dizer o que se passa, pois  é “um corpo, mas um corpo que não consegue fazer a aprendizagem da satisfação, que não consegue regrar seu prazer segundo as vias previstas pelo Outro [sempre é muito pouco, ou demais ou não é assim]; em suma, é um corpo ineducável que faz fracassar todas as ideias concebidas sobre uma progressão harmoniosa” (Yolanda Mourão Meira, As estruturas clínicas e a criança, p.19).  Criança parece um ser destinado a gozar. De fato, é. Todavia, é justamente a direção dada a essa polimorfa perversão, como disse Freud sobre a sexualidade infantil, que seria a condição humanizante.

Na Alocução sobre as psicoses da criança (1967), Lacan, dizendo não haver gente grande, cria a expressão ‘criança generalizada’ e, sendo todos crianças, todos destinados a gozar, quem responderia pelos modos de gozar de cada um de nós? Quem responderia pela incompletude? Essa criança generalizada [que mata um pouco a lógica estrutural da infância como distinta da do adulto, e  Lacan parece chamar a atenção para isso] é a criança objeto, efeito do encontro entre o capital/mercado e a ciência, do discurso universalizante da ciência. Assim, é essa dupla que responde pelos nossos modos de gozar dizendo, Goza! Cada um irá responder a essa condição de ser-para-o-sexo via a fantasia, vias as tentativas de saber-fazer com o que goza. Ou não.

Nessas condições, que lugar tem hoje os devaneios criativos de uma criança lembrados por Freud, para verter essa condição de gozo, para ser resto e fazer o resto? Quem vai dizer isso é Manuel de Barros, pelas vias das ‘disfunções líricas’ no brincar da criança, no laço que faz com o Outro, na circulação dos afetos nas cenas sociais e culturais, do corpo convocado a comportar algum sexo, não todo sexo, a incompletude, no que diz e no que lhe é interdito.

De início, Manuel de Barros diz que seria bom ter “um parafuso a menos”, como um poeta, aquele que faz e se atreve a mexer com a rigidez das formas da língua, da língua de brincar. Mas, ele continua, não sendo possível ter um parafuso a menos: “o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos. ” A sugestão do poeta é trocar o parafuso, valor poético do fazer, pois é isso que vai provocar uma disfunção na lírica poética. Trocar:  trocamos com o diferente e o valor é essa diferença, ação infantil transgressora nesse tempo de sintomas universalizantes e de generalizações.

Há um poema de Manuel de Barros chamado “A disfunção” e é dele que podemos ver os restos da infância, seus sintomas que dizem da verdade. Lembro que Freud, no texto sobre escritores e devaneios, diz que o processo criativo de um poeta é o mesmo de uma criança ao brincar e todos se dão em torno da insistência de algo inacessível. Esse poema está lá, perto do “Tratado geral das grandezas do Íntimo” (2001), de poesias que são guardadas nas palavras: é tudo que o poeta diz saber, pois gosta de não saber quase tudo. Nós, ainda mais,  e a infância também é guardada nas palavras, sujeito é guardado na linguagem que o carrega. O poeta assume que mente. Uma criança não mente mais? Deveria.

Manuel de Barros escreve poemas desconfiados. Com ele, aprendemos que é preciso desconfiar da evidência, do harmonioso, daquele que gosta de saber o tudo: comecemos daí. Crianças questionadoras [de seu desejo] fazem questões, desconfiam de nossas promessas. Em um tempo de funções de toda ordem transmitidas por neurotransmissores, o poeta nos conta d’A disfunção, daquilo que funciona diferente, um mal-estar impossível de funcionar.

 O poema A disfunção, de Manuel de Barros: “Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso a menos/Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos./ A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica./Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica. 1 – A aceitação da inércia para dar movimentos às palavras/2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais/ 3 – Percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos/ 4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras /5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes/ 6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra/ 7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros. Essas disfunções líricas acabam por nos dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.”

Dessa série sintomática que nos enlaçam, escrita pelo poeta, temos os modos de ‘trocar’ os parafusos, fazer na diferença, fazer sintoma cujo valor está exatamente nesse fazer – não no produto. Esse fazer, para fazer valor, gasta tempo, é preciso que nele se demore, que se insista e persista. Essa demora é a aceitação da inércia, que se pare: em tempos velozes [e furiosos], esse sintoma 1 é o de paralisar, é o modo de ‘dar movimento às palavras’, em que uma criança deveria parar-se em seus devaneios criativos, repetir e repetir. Nosso sintoma 2 é o de ‘vocação para explorar os mistérios irracionais’, resposta contundente à poderosa evidência da razão tecnológica e científica: quem melhor explora mistérios irracionais que uma criança? Sintoma 3: ver as seriações anômolas entre as palavras é ofender a ordem própria da língua, é brincar com a língua, ver o que está para além da norma forjada e estabelecida: ousado não seguir as regras, ousado, por exemplo, gozar menos, ou voltar a gozar naquilo que mais valia. 5: ‘fazer casamentos incestuosos’, jogar abaixo padrões vigentes. Sintoma atualíssimo. Como se transmite a diferença sexual a uma criança, diferença que é o resto do impuro, do sexo, para além das normas vigentes? Nosso sintoma 6 é o de transformar o que se mostra impossível, tornar a pedra um canto é um trabalho criativo de uma criança em seu brincar, todo seu faz-de-conta gira em torno de tornar a pedra um canto, tornar qualquer coisa em qualquer coisa. E o sintoma 7, que encerra a série, é essa mania de ‘comparecer aos próprios desencontros’: é o ir e vir, em ausência e em presença, um estranhamento consigo mesmo e um perder-se de si e do Outro, coisa que criança deve saber-fazer.

São sintomas, tentativas de saber fazer com esses obscuros conservadores, disciplinadores, opressores, inspetores, vigilantes, asfixiadores de nossos tempos, conhecedores paranoicos do todo. Seria bom, na língua do poeta, trocar os sintomas criteriosos de um DSM pelos sintomas da disfunção, da troca de parafusos. É essa infância, com um parafuso em constante troca que alocaremos em nosso discurso. São esses os sintomas daquela criança sintoma, cuja saída é trocar os parafusos, é ser desarmoniosa como condição ética da infância.

Para terminar, ainda com o poeta, no “Retrato do artista quando coisa”: “A maior riqueza/ do homem/ é sua incompletude/Nesse ponto sou abastado. ” O que resta de infância, em nossos tempos de retrocessos, é ser abastada de incompletude, rica é ser o que resta, ser ‘completa de vazios’, nos termos de Manuel de Barros, que nos apontou saídas para interromper a tendência ao desaparecimento da infância.

 

Cirlana Rodrigues de Souza

Psicóloga e psicanalista, doutora em Estudos Linguísticos, na linha de pesquisa Linguagem e constituição do sujeito. Trabalha na Rede de Atenção Psicossocial do Município de Uberlândia e em consultório particular.

E-mail: cirlanarodrigues@gmail.com

© 2024 Hæresis

Theme by Anders NorenUp ↑