Categoria: Psicanálise (Page 2 of 2)

Espaço Hæresis de Psicanálise e saúde mental

Espaço Hæresis de Psicanálise e saúde mental

Coordenado pelo membro associado Germano Almeida

 

Com realização mensal, às primeiras quintas-feiras de cada mês, com datas previstas para 09/03, 06/04, 04/05, 01/06, 03/08, 14/09, 05/10 e 09/11 das 18:00 h às 21:00h, com três horas mensais.

Com este espaço, a Hæresis inicia a leitura das articulações entre os campos da Psicanálise e da saúde mental no Brasil e em nossa região, e também as consequências de seus atravessamentos. Essa via de leitura privilegiará aquilo que a psicanálise propõe como clínica, pensando a posição do psicanalista neste campo que é o da política pública em saúde mental no Brasil.

Ler Freud quando se trata de clínica em psicanálise é uma maneira de escolher essa via de leitura, em especial no que diz respeito a traduções de sua escrita. Não se trata de iniciar nos textos primevos da metapsicologia, passando pelo desenvolvimento de sua teoria do inconsciente (que foi decantada da experiência clínica), para então supor na continuidade acumulativa que chegamos ao todo do que a psicanálise propõe como clínica. Caso tomados sob esse viés os textos podem ser ferramentas de poder, onde aquele que estudou e sabe pode agora exercer sua dominação sob outros, um risco para um campo de trabalho onde vários saberes precisam inventar um cuidado para quem sofre.

Trata-se aqui, de ler nos textos de Freud os efeitos de seu tempo, de seus diálogos com a cultura, tentando vislumbrar como a clínica que ele fazia tem consequências e efeitos no que passamos na contemporaneidade, sendo que nesse espaço privilegiaremos a saúde mental no Brasil e em nossa região como um elemento de indagação.

Fazer encontrar as perguntas que os trabalhadores de saúde mental fazem em seu cotidiano de trabalho, de maneira clara, sem falar um dialeto irreconhecível, sem evitar o encontro dos campos através do palavreado exclusivista. Evitando tomar o texto freudiano como fonte de conhecimento e de poder sobre os fazeres desses profissionais, tentamos por essa via fazer uma entrada da clínica psicanalítica, ou seja, do estranho familiar, do que vemos diariamente, mas que só é possível dizer depois.

Ler os autores que pensam e articulam a política pública de saúde mental no país e na nossa região é um modo de trazer essas questões que fazem o cotidiano de um serviço de saúde. Talvez a principal dessas questões possa ser articulada dessa maneira: Todos os dias é preciso tomar decisões técnicas sobre casos atendidos na rede de atenção psicossocial, como articular essas decisões considerando clínica psicanalítica?

Além de levar algumas questões aos textos de Freud e sua clínica, pretendemos considerar as contribuições de autores que discutem essas articulações, menos na objetivação de completude de um campo de pesquisa do que na referência necessária aos que trabalham com o tema atualmente. Dentre eles ressaltamos Luciano Elia, Christian Dunker, Fuad Kyrillos Neto, Sônia Alberti, Ângela Vorcaro, Antônio Teixeira, Aline Aguiar Mendes, dentre outros que estarão referenciados em nosso espaço.

 

Texto de Abertura do Espaço Hæresis de Psicanálise e Saúde Mental

Coordenação: Germano Almeida Faria Fortunato Pereira

 

Trabalho aqui com duas provocações. A primeira é um trecho de Christian Dunker e Fuad Kyrillos Neto em 2015, ambos pesquisadores do tema que abordo hoje: “Examinando os prontuários do asilo nacional de Barbacena, da Minas Gerais dos anos 1960, não se encontrará as formas típicas do diagnóstico psiquiátrico, tais como a paranoia, a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva ou as demências. Em vez disso, um único dado chama a atenção: o número de dentes do interno. E, pelo número de dentes, muito se podia deduzir da posição de classe e da expectativa de tratamento. Há, portanto, um dado a mais nesta conta. Um anacronismo entre aspirações discursivas de progresso e as práticas disciplinares, exercidas em instituições que não eram laicas, nem mágico-religiosas, mas movidas pelo tradicional espírito de pessoalidade, compromisso e favorecimento. Baseadas na distribuição opressiva de favores e simpatias, nossas cidadelas psiquiátricas não eram apenas lugares de maus-tratos, eram também pequenas cidades de interior, com seus caudilhos, suas virtudes privadas e seus vícios públicos, com sua “vida própria” e suas regras.” (pp 15).

Estamos no século 21, no interior de Minas Gerais, lendo as articulações da Psicanálise com a nossa política pública de Saúde Mental, são apenas 57 anos que nos separam desses prontuários lidos pelos pesquisadores. Hoje, se observarmos os prontuários dos usuários dos serviços substitutivos, o que encontraremos? O nome do paciente raramente aparece, termos técnicos de cada saber que compartilha o cuidado aparecem para dar conta dos inúmeros acontecimentos inusitados, complexos e angustiantes que esses pacientes produzem. Nos relatos contemporâneos, os que produzimos, os que lemos hoje, ainda figuram ideais de progresso, com a escritura de projetos terapêuticos singulares que soam tão disruptivos quanto o próprio funcionamento do paciente, trata-se aqui de uma certa identificação com o paciente que leva quem escreve no prontuário a uma ruptura com o que escuta?

Seguindo na primeira provocação, se antes o número de dentes assumia lugar de signo de classe, nos dias de hoje a expectativa de tratamento se vê refém do uso que cada unidade de saúde faz de seus pacientes. Não é de se espantar que, mesmo depois de tanta luta e discussão política, ainda temos pacientes institucionalizados. O problema é menos o tempo de permanência nos serviços (que para alguns beiram os 10 anos) e mais a inércia da direção de tratamento e sua ineficácia quando se trata de efeitos na vida dos atendidos. Nesse cenário, é preocupante certos acordos de compromisso que ainda bancamos com os saberes mágico-religiosos e o desmanche das equipes que trabalham com essa política pública.

Destaca-se o “tradicional espírito de pessoalidade, compromisso e favorecimento”, onde os profissionais vão fazendo uso das histórias e do sofrimento psíquico dos pacientes, para destacar sua prática e subir em palanques, para vender o peixe de suas perspectivas teóricas, para manter o louco na posição de intratável, manter-se a partir do compromisso e do favorecimento consigo mesmos. Esse essas práticas, provocam os autores, estão “Baseadas na distribuição opressiva de favores e simpatias, nossas cidadelas psiquiátricas não eram apenas lugares de maus-tratos, eram também pequenas cidades de interior, com seus caudilhos, suas virtudes privadas e seus vícios públicos, com sua “vida própria” e suas regras.”. O que isso tem haver com a prática em nossa cidadela?

Nesse sentido, não estamos vendo a lógica das daquelas cidadelas psiquiátricas de 57 anos atrás, repetindo-se hoje na distribuição de favores a quem nos interessa? Individualizando o que precisa ser público? Tentando limpar, branquear, e dessa vez pela via dos medicamentos e das hospitalidades (permanência noite em unidades de saúde) retirar o incômodo das ruas, simpatizar por alguns casos em detrimento de outros, estamos no interior de uma questão que precisa ser discutida de forma técnica e não opinativa, não se trata de uma disputa de terras em que a cada batalha discursiva ganhamos um pedaço de chão nessa nova prática manicomial.

Com essa primeira provocação, convoco os psicanalistas que trabalham nesses lugares para pensar respostas que não sejam a de disciplina da pulsão, nem a da explicação de funcionamento psicológica psicologizante, nem a de mapa da subjetividade do brasileiro. Isso nos faz evitar frases de efeito conhecidas e pouco produtivas, do tipo: “Esse aí faz tudo isso por que está fixado em coisas da sua vida”; “Ele é complexado, deixa pra lá”; “Isso e trauma da infância, ele é manhoso, isso não é crise, isso é má vontade”; ”São questões relacionais, ele está resistindo ao tratamento”; “você não percebe que pra ele a palavra é literal, então quando ele fala você precisa tentar ir para o Real dessa situação, você errou ao tentar inserir o simbólico”; etc. A direção aqui precisa ser a da singularidade com visadas ao particular, ou seja, como pensar a direção de tratamento de cada um, tanto em sua relação com a alteridade quanto com o que o causa nessa relação?

Com ajuda de Dunker e Kyrillos Neto: trata-se de sair e acompanhar o paciente do “caráter repetitivo e intrinsecamente patológico de certas relações e escolhas”, de atravessar a “gramática preponderante de como criamos determinantes para maus encontros de uma história biográfica” e interromper a sequência de narrativas hegemônicas “para produzir sentido a partir do sofrimento, seja pela intrusão de um objeto patológico, pela violação de pactos simbólicos, pela alienação da alma ou, ainda, pela dissolução da unidade do corpo político moral ou familiar”. Usando a linguagem de alguns pacientes, é “desembolar”, sair dos interesses narcísicos e totalitários, fascistas desse neo-liberalismo à brasileira. É deixar a conversa para poucos da psicanálise do cerrado e partir para o trabalho com quem ainda não viveu outras condições de invenção.

Fecho essa primeira provocação com Dunker e Kyrillos Neto: “Pensar a saúde mental é pensar o processo de institucionalização do sofrimento, bem como as políticas que elevaram o bem-estar a um fator chave na regulação de nossas formas de vida.”. Lembrando que quando cito políticas públicas, alinho-me com Amstalden, Hoffmann e Monteiro que em 2010 afirmam: a política como “o conjunto de princípios, diretrizes e normas que regulamentam as práticas sociais e a gestão dos bens públicaos, em função de um bem individual e coletivo (seja a saúde, a educação, a justiça, a cultura, etc.) – é fruto do reconhecimento e da afirmação dos direitos e das necessidades dos sujeitos (aqui compreendidos como sujeitos de direito, portanto).”.

As pessoas rompem com essa noção totalitária de política e bem comum, por que estão operando na vida a partir de uma perspectiva desejante. Isso me leva à segunda provocação de hoje, as armas que encontro e retiro do CAPSad cotidianamente.

Trouxe-as por que apesar delas não aparecerem nos relatos de prontuários, elas aparecem dentro da unidade de saúde na qual trabalho. Elas, assim como os dentes contam de um pertencimento a classe social, mas cada uma é montada de um jeito muito específico, cada uma amarrada, enferrujada e escolhida a partir de um critério.

Se nos dedicamos a passar o âmbito da escolha herética, tão falado esta noite, para o cerne de nossas práticas, não podemos desconsiderar o risco que há nesse modo de abordar o real, ou seja, é preciso estar na vertigem do que pode ser planejado, na queda do que se pode ensinar, na angústia de estar com alguém em crise e em surto sem um manual que assegure a boa prática. Trata-se de uma aposta no desejo, no desconhecido, na criação de uma direção de tratamento. Mas isso não se ensina, se inventa, e cada sujeito sabe o preço desse saber-fazer com o que não se explica, nem se define.

Mas isso não quer dizer que não há o que ler, que a invenção não precise passar pela referências dos pares, quer dizer que essa referência não garantirá os resultados apaziguadores e conformistas de uma disciplina de poder.

É por isso que convido, nesse ano, a abrir uma frente de trabalho no Espaço Hæresis de Psicanálise e Saúde Mental. É preciso fazer algumas questões à psicanálise, ainda mais quando se fala tanto da falta que uma direção de tratamento clínica faz na Rede de Atenção Psicossocial. Foi pensando em levar nossas questões enquanto trabalhadores da RAPS que escolhi ler Freud.

Ler um Freud incompleto, foi a escolha de tradução que mais se alinhou a proposta de incompletude, de não conformidade, de ruptura. Não é por que expressões em francês e homofonias e usos de linguagem são tão atrativos que eles estão aptos a dialogar com o trabalho que precisa ser feito em uma unidade de saúde.

Não se trata, portanto, de aprender o que é Neurose, Psicose e Perversão, para então defender isso que aprendemos. Trata-se de nos encontrarmos com textos que falam desses conceitos, com Freud, e outros que abordam o trabalho com a política pública em questão. Para trabalhar com eles, para pensar a partir deles e podermos nos livrar deles quando preciso, levando a frente uma posição que seja singular e particular, não passível de cópia, impossível de explicar, mas mapeável e custosa – um estilo de analista na RAPS.

Referências Bibliográficas

Amstalden, A. L. F., Hoffmann, M. C. C. L., & Monteiro, T. P. M. (2010). A política de saúde mental infantojuvenil: seus percursos e desafios. Lauridsen-Ribeiro & Tanaka, OY Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no SUS. São Paulo: Ed. Hucitec, 33-45.

Dunker, C. I. L. e Neto, F. K. (2015). Psicanálise e Saúde Mental. Porto Alegre: Editora Criação Humana. 240 p.

 

IRREVERSÍVEL, DE GASPAR NOÉ: A BELEZA NO LUGAR DO INFORTÚNIO, LUGAR ONDE CONVERGEM CINEMA E POESIA

Trabalho apresentado e publicado nos anais do Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e do Seminário de Poesia? Poesia, Filosofia e Imaginário, 2015, Uberlândia. Anais do Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e do Seminário de Poesia ? Poesia, Filosofia e Imaginário. Uberlândia: ILEEL, 2015, 2015. v. 1.

Cirlana Rodrigues de Souza

cirlanarodrigues@gmail.com

(GELP-Grupo de Estudos Linguagem e Psicanálise/ILEEL/UFU)

 

Resumo: No encontro entre poesia e cinema, é preciso ver onde, em um filme, algo corta e nos arrebata para um estado de suspensão de sentidos. A proposição é a de que a língua do cinema de poesia suposta pelo cineasta italiano Pasolini comportaria um enigma poético que nos colocaria arrebatados como a personagem literária Lol. V. Stein destacada por Lacan na homenagem à Marguerite Duras (1965). Trata-se de ser capturado nas imagens de um filme no lugar onde a incredulidade opera. Essa língua seria feita de letra, letra feita de traços que convergem com o inconsciente, a imagem como um traço que corta. Nessa língua está posto o estilo de autoria de um filme por comportar esse traço singular. O filme Irreversível (2002), do cineasta contemporâneo Gaspar Noé, cujo peso de todas as cenas e sequências é o próprio movimento da angústia marcado por cenas de sexo e violência, nos mostra isso. Mas, o arrebatamento se dá em suas cenas finais por comportarem toda a beleza do espaço, do tempo, do amor e de Alex, pois tanta beleza nos arrebata por ser o lugar do infortúnio, lugar onde convergem cinema e poesia.

 

Palavras-chave: Irreversível; Cinema; Poesia; Contemporâneo; Infortúnio; Psicanálise.


 

Introdução

 

A poesia arrebata. Seu arrebatamento é efeito da letra que nela opera, sem forjar sentidos, como afeto que faz corte inesperado em nossa harmonia.

O cinema, nas formas de um filme, pode nos causar esse afeto desde que seja ‘escrito’ em uma língua que ao cerzir uma história faz corte e nos arrebata para um estado de suspensão, inominável. Nessa direção, e conforme o argumento do grupo de trabalho para abordar o Cinema de Poesia, de Pier Paolo Pasolini, nossa proposição é a de que a língua escrita da ação cinematográfica inventada pelo cineasta italiano comportaria um efeito desse inominável, um enigma poético escrito nessa letra e que nos colocaria, como espectadores, arrebatados, tal como a personagem literária Lol. V. Stein destacada por Jacques Lacan em sua homenagem à Marguerite Duras [1965/2003] e, também, arrebatados pela escrita de Duras. Trata-se, desse modo, de ser capturado, ali nas imagens de um filme, em suas unidades básicas, em suas tomadas, justamente pelo lugar onde a incredulidade opera, onde a ordem do esperado e do compreendido falha, ponto em que somos lançados ao jouissance, o gozo de Santa Tereza D’Ávila (Lacan, 1972-1973/1983), pois a linguagem – a mesma que comporta uma língua que corta – deixa algo fora dela, fora do sentido: nem tudo faz sentido!

Nesses termos, a ‘língua de poesia’, conforme estabeleceu Pasolini, seria a língua feita de letra, letra feita de traços que convergem com o inconsciente (Lacan, 1965/2003), a imagem como um traço que corta e nesse corte algo de não realizado nos arrebata: ponto em que traço e inconsciente se tocam, causando nosso arrebatamento ante a tela de cinema. Nessa língua está posto o estilo de autoria de um filme: haveria o traço de estilo de Pasolini, de Tim Burton, de Lars Von Trier, e assim por diante, considerando que um filme é sempre estabelecido a partir do desejo de um sujeito em fazer filmes e que há uma ‘gramática’ desse sujeito que comporta esse traço singular, o que podemos ver na obra de cada um desses cineastas em que eles se propõem, ao estilo de cada um, a responder questões que vão sendo delineadas no percurso de construção de suas obras.

Luís Buñuel (1958/1991) propõe deixar as imagens, de um filme, fluírem com “liberdade” para se aproximar cinema e poesia: é essa fluência de imagens sem as amarras de sentidos pré-estabelecidos que nos levaria ao arrebatamento. Este não estaria limitado apenas a imagens em sequências surpreendentes, a viradas inesperadas no roteiro como em Menina de Ouro, ou a sequências insólitas e concretas como em Relatos Selvagens.

Levando isso em consideração, vamos ao filme Irreversível, de Gaspar Noé (Irréversible, 2002)[1], cujo peso de todas as cenas e sequências é o próprio movimento da angústia marcado por tomadas controversas e perturbadoras, por cenas de estupro e assassinato, de sexo e violência, em que o tempo é a personagem que vai nos mostrar que o pior está por vir e vem, de modo irreversível, irreparável, quando não esperamos.

O cineasta Gaspar Noé nos avisa sobre isso nas primeiras cenas do filme, cujo conteúdo é o incesto, ou seja, estamos, na sociedade ocidental contemporânea [e sua epidemia de incesto, conforme uma das personagens nos lembra] sem a lei fundamental de nossas relações civilizatórias e o sexo entre pai e filha pode ser apenas uma metáfora para nossa orla primitiva. O pai incestuoso, do filme de Noé, em seu corpo asqueroso e sob a obscuridade das cenas nos avisa (Figura 1): “O tempo destrói tudo.” Dizendo de outro modo, a personagem protagonista desse filme é impiedosa, cruel e o que nos causa é irreversível.

Figura 1. Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Em Irreversível, concluímos, na sua primeira metade, que a vida é feita de “esperma e sangue”, conforme a filosofia do cineasta, a vida é um horror de sexo, violência e vingança. Em Irreversível, é a beleza que ratifica esse infortúnio, pois conforme Lacan (1965/2008, p.204), a beleza nos arrebata precisamente por estar no “limiar do entre-duas-mortes”, o lugar do infortúnio, lugar onde confluem o cinema e a poesia e que iremos nos dar conta no final do filme, seu término, já que ele começa pelo final.

Assim como para a psicanálise, de Sigmund Freud e Jacques Lacan, a arte antecipa a matéria de nosso interesse (questões do inconsciente e de seu sujeito do desejo e de gozo), trabalhar em uma lógica subversiva de um nomeado cinema de poesia é partir do fato de que o cinema vai trabalhar com a matéria da poesia. Conforme um dos versos de Manuel de Barros (1990), no poema Matéria de Poesia, essa matéria é “O que é bom para o lixo é bom  para poesia”, matéria do cineasta Gaspar Noé em sua obra, que em Irreversível toma forma de imagens que nos dizem do sexo gay como sadomasoquista concretizando seu ideal de um mundo de ‘sangue e esperma’, em que a boate Rectum é a própria lata de lixo, no ódio entre os sexos e entre os gêneros, na xenofobia, na lei clandestina e na lei do caos, na violência a todo custo, nas drogas, na promiscuidade em uma festa no apartamento burguês, na falácia de uma filosofia francesa e assim por diante.  A matéria do cinema de poesia de Noé é o sexo, a violência e a vingança.

 

O cinema, contemporâneo e irreversível, de Gaspar Noé

 

Mais do que um conteúdo, trata-se do modo de fazer sobre essa matéria de poesia, modo esse que está traçado no estilo do diretor Gaspar Noé, estilo que faz um corte na lógica de sentidos triviais e nos lança no inesperado, nos arrebata justamente onde prevalece esse inesperado e visivelmente insuportável: algumas cenas são difíceis de ver.

Irreversível, em meio a todas às polêmicas de seu enredo, de suas sequências, de seu tempo cronológico, da voracidade de seus atores como resposta ao apelo de um diretor cujo desejo é ser “realista”, nos mostra que as imagens [frutos de um trabalho imaginário] comportam o que nomeamos de real em psicanálise: justamente aquilo que não se encobre com nomeações e com sentidos, em que os atos são resposta à angústia, aquilo que pode se estatelar em uma imagem. Isto não é pouca coisa quando lembramos que cinema é imagem, ou deveria apenas ser imagens, sequências de imagens para contar histórias com um propósito.

Em línguas [de cinema] como a de Gaspar Noé, o propósito é apenas uma justificativa que vai perdendo as vezes para a matéria de que se trata: o arrebatamento do espectador naquilo que ele julga ser possível evitar. Esse arrebatamento é afeto, efeito do inominável que para alguns é usar o cinema para provocar sensações, sensações que acabam por ter função de encobrir isso que nos afeta justamente por nos faltar nomes.

Gaspar Noé, com seu cinema, nos mostra que cinema não se presta apenas a ser objeto de análises e interpretações, mas é o lugar, um logos a mais, que nos permite compreender as questões constitutivas do sujeito do desejo. Irreversível nos mostra nossa irredutível condição de, como seres falantes, portanto desejantes [e gozantes], caminharmos para a morte e que isto é mesmo irreversível. Ele nos mostra isso da maneira mais crua possível e, mais ainda, que essa condição se situa no belo, na beleza [sempre imaginária] como lugar desse nosso infortúnio. Mérito do cinema como esse, pois com cinema corremos o risco cair no engodo de um imaginário consistente, forjado em uma estética previsível de imagens e de um final sempre feliz.

A obra de Gaspar Noé é uma apologia ao pessimismo e à violência, às drogas, à promiscuidade, a todo tipo de perversão humana? Alguém precisa falar disso. Interessa não perder de vista que ele lê nossa sociedade contemporânea, cada vez mais indistinta de um gozo tecnológico e cada vez mais primitiva em seus afetos, na direção que vai dando às suas relações. Por isso, Irreversível seria uma versão contemporânea de 2001, Uma Odisseia no espaço, de Stanley Kubrick (EUA, 1968), como vemos no cartaz desse filme na parede acima da cama da personagem Alex e no movimento da câmera em direção ao céu, para finalizar o filme: começamos pela primeva e terminamos nas luzes de uma orla organizada e feliz. Todavia, no filme de Noé, qualquer lado que se comece a contar a história, estamos diante de um horror.

Os filmes Gaspar Noé, são feitos e efeitos de nossa contemporaneidade: como poeta de imagens, ele é contemporâneo, na versão de Agamben (2008) sobre o que é ser contemporâneo:

 

O poeta – o contemporâneo – deve manter fixo o olhar em seu tempo. Mas o que vê quem vê o seu tempo? O sorriso demente do seu século […] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar em seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para aqueles que experimentam contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (AGAMBEN, 2008, p.62-63)

 

O cinema contemporâneo de Gaspar Noé interpela nosso tempo e nossa obscuridade. Agamben (2008) lembra, ainda, que essa obscuridade somente é possível mediante o reconhecimento das luzes de um tempo. Nos filmes de Gaspar Noé o que não falta é esse jogo luz e obscuro, como na escuridão vermelha [sangue] no túnel em que Alex é violentada, no exagero das luzes alucinógenas de Enter the void (2009) ou, ainda, no muito recente Love 3D (2015) com todas as cores e dimensões do sexo mortal e promíscuo possíveis de serem captadas por uma câmera, melhor dizendo, escrita por uma língua de cinema de modo visceral, que quer entrar no corpo, é invasiva e, assim, para além de agressiva, chega a ser violenta.

 

A experiência que arrebata em Irreversível

 

Irreversível é um filme escuro até por volta de seus cinquenta e cinco minutos, porém, é literalmente obscuro em sua totalidade e o quê se vê são trevas cujas sequências de imagens, em retrocesso, portanto, como todo contemporâneo, voltando às origens daquele drama, nos mostram um tempo urgente: tudo ali é urgente e intempestivo, até às cenas finais onde a luz arde na tela e vemos que é essa luz que permite, por contraste, toda a obscuridade do filme: na beleza das cenas finais, nas cores vivas da natureza e da pele da atriz Mônica Bellucci, o obscuro, lugar da metonímia desajustada e tensa do filme que chegou à metáfora de todo o sexo, a violência e vingança daquela narrativa: lugar da matéria de poesia nesse cinema.

Em Irreversível (2002), a cena de estupro, seguida do espancamento de Alex, que começa por volta dos 40 minutos, dura aproximadamente quinze minutos [uma eternidade em se tratando de cinema]. Essa cena chocou todo mundo, chocou o público do festival de Cannes que, ao deixar a sala de exibição do filme, não esperou pelo pior ainda, cedendo rapidamente ao engodo de uma cena, como se aquela cena fosse o mais obscuro do filme. Como ‘poesia’, esse filme não poderia ser óbvio e deixar condensado em uma única cena de sofrimento o lugar de nossa angústia. No filme, é o lugar da virada: Alex entra no túnel (Figura 2) e a escuridão, enquanto ela caminha, vai cedendo ao vermelho, esse túnel como lugar do infortúnio de Alex (e não o nosso ainda) que se depara com o inesperado e que parece ser inevitável.

Figura 2: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Tênia, o estuprador, em seu ódio às mulheres, ratifica a condição da beleza de Alex como lugar de seu infortúnio. Ele diz a ela (Figura 3): “Sabia que você é muito gostosa para ser uma mulher? Sabia?” Ou, ainda, depois do estupro, justificando o espancamento (Figura 4): “Acha que pode tudo? Acha que pode tudo, só porque é bonita?”

Figura 3: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

Figura 4: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Da extensa cena de estupro e espancamento (Figura 5), e Noé a faz longa para testar o que suportamos de tanta violência e como reagimos a essa violência, se destacam os urros de Alex, que não pode falar nos lembrando dos sons de dor de animais sendo abatidos, mas ela estende a mão em nossa direção [dos espectadores] e nada podemos fazer, a não ser assistir ou, então, sair da sala de cinema: seria a nossa passividade ou nossa covardia ante as questões da contemporaneidade? Nosso egoísmo velado em sentimentos de compaixão? Resta nos sair de cena, como o homem que entra no túnel e ao se deparar com o estupro recua, e dizer: “Coitada de Alex” ou, quem sabe, “Esse cineasta é um pervertido e isso não é cinema!”

Figura 5: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Toda essa cena nos choca ante um realismo fatal, efeito do trabalho dos atores ali envolvidos e de seu diretor, mas, seria isso o arrebatamento da poesia? Em poesia, ao sermos tomados pelo nonsense, efeito do literal, não conseguimos sair da cena e essa letra nos deixa um traço, como um corte que vai sempre nos fazer perguntar, em um depois, o por quê, pois no tempo de sua ruptura ficamos sim ‘paralisados’ e, em caso de um filme, ficamos só olhando, não saímos da sala de exibição.

Esse arrebatamento nos surpreende pelo inesperado infortúnio das personagens de Vincent Cassel (Marcus) e Bellucci: é ao final de tudo, onde o horror do filme, a violência, a vingança, se justificariam é que se inscreve nosso arrebatamento, a luz faz ali um corte: a beleza como lugar do infortúnio, da personagem de Bellucci cujo infortúnio é ser bela, na personagem de Marcus de ter se apaixonado pelo belo e agora lhe resta restituir pelo ódio a beleza não mais imaculada. Na cena final, a sensual e provocativa personagem torna-se quase intocável, inviolável, intensificando a impotência dos homens diante do abuso da amada que torna ainda mais cruel o desfecho do filme.

O filme está sempre por nos enganar: nos enganamos com Pierre (Albert Duponel), ex-namorado de Alex sempre racional e filósofo [aos moldes da arrogante filosofia francesa] que acaba por se tornar o mais irracional de todos; também, nos engamos com Marcus, promíscuo, violento e sedutor, pois de fato foi um homem apaixonado; e nos enganamos com Alex que sempre foi imaculada, como uma mulher grávida e, finalmente, nos engamos que a maior violência de nosso tempo sejam os atos de violência, pois nossa maior violência é constatar que a direção em que caminhamos, pela vida, é irreversível, é o túnel vermelho.

No emaranhado de língua-imagem que vai montando, Noé nos submete ao filme e espera que nos percamos nele, porque sua intenção é “recriar uma espécie de sensibilidade ou estado de consciência alterado, por meio de armas cinematográficas – som, imagem, edição, o que for preciso”, ele destaca.  Noé, como sujeito gozador, fará o que for preciso, em suas experiências estéticas, para nos lançar ao confronto com o imponderável. Coisa que faz desde Sozinho contra todos (1999), fundamentado em uma espécie de crueldade filosófica aliada a um pessimismo evidente. Essa filosofia é recitada pela boca de seu cruel açougueiro em A carne (1991), sem nos poupar como espectadores: “Por que, afinal, os filhos mostram amor pelos pais?”, “Pode um pai ser amante de sua filha?”, “O único sentido da vida é foder”, lamenta o açougueiro, em que sexo e violência, esta masculina e destrutiva, é a resposta do cineasta a um feminino que todos comportamos: é o ódio a nossa fatídica descompletude subjetiva.

 

 Cinema e literatura

 

A relação do cinema de Gaspar Noé com o cinema de poesia de Pasolini é a proposta de ambos em fazer uma poética da realidade.  Para Pasolini, a linguagem verbal e visual utilizadas nessa representação poética da realidade vão além de um formalismo estético homogeneizado. O cinema autoral de Gaspar Noé rompe com a estética, com a proposição temporal do cinema e esse retorno que se vê não é recordação de um passado, nessa estética é como o diretor vai nos prendendo dentro de um emaranhado, sem uma convenção narrativa, onde o protagonista [conforme Pasolini] é o próprio estilo do cineasta, o traço escrito em um filme. Assim, todo cineasta poeta tem uma letra que é só sua, não pode ser copiada: não se trata, desse modo, de contar uma história de trás pra frente, isso, desde Amnésia (Memento, 2001), de Christopher Nolan, deixou de ser novidade.

Pasolini, experimentador e inventor desse cinema de poesia, não fez de seus filmes modelos da realidade, representações dessa realidade.  Sua realidade não é modelo, pois para ele o cinema “expressa a realidade pela realidade” (PASOLINI, 1982, p107), é realidade em si mesma, e caso exista mesmo uma língua de cinema ela não é homogênea: haveria uma estrutura universal dessa língua estabelecida justamente a partir da problematização dos recursos da língua(gem) cinematográfica. O cinema de poesia não é, assim, uma ilusão sobre a realidade.

Como é possível um cinema que não nos iluda sobre a vida? Brayner (2008) nos lembra de que para Pasolini não se trata de diálogo entre literatura e cinema, mas de outra ‘língua’ mesmo, ou seja, não é o modo de dizer sobre a realidade da literatura aplicada ao cinema. Possivelmente Pasolini, em seu cinema de poesia, buscasse o universal de seu tempo, mas que somente se apresenta na singularidade de cada leitor/espectador/cineasta, pois poesia não é apenas escrever poemas, é um gesto, um ato feito em língua para dar um basta na angústia de cada um.

Um filme que se permite ousar a partir de expressões subjetivas alegóricas e justapostas caracterizam esse cinema de poesia, de acordo com Nachery (2012):

 

Dentre as primeiras impressões do que vem a ser cinema de poesia, podemos citar o aspecto descontínuo e fragmentado no texto e na organização das imagens, os procedimentos alegóricos, os acontecimentos que existem além da experiência ordinária do tempo e do espaço, a força com que são colocadas as sensações, a acentuação da subjetividade, o caráter transcendente, a insubordinação dos elementos lançados na obra, o que vai além do que poderíamos chamar de incoerência, uma vez que o parâmetro não é a coerência em si. […]. (NANCHERY, 2012, p.03)

 

Sobre essa relação cinema e literatura, Pasolini, cuja língua literária não deu conta do que ele desejava dizer em seu tempo, esclarece que existe uma diferença essencial entre literatura e o cinema. Segundo ele:

 

Para que possam ser expressas por meio da literatura, as ideias devem ser representadas por símbolos convencionais, quer dizer, por letras e palavras. No cinema, a técnica é outra, a realidade é representada por signos vivos e significativos. Num filme, se quero mostrar esta árvore aqui, tenho que vir aqui com a câmera para filmar esta árvore. (PASOLINI, 1985, p.10/11)

 

Mas, de todo modo, a língua de cinema mata a coisa, coisa que o verbo faz também, pois é função de toda linguagem.

Silva (2007), ao investigar Pasolini e seu cinema como língua escrita da ação, nos esclarece que:

 

Diferente dos outros meios expressivos, o cinema “não evoca” a realidade como o faz a língua, seja ela literária ou fônica, muito menos a “copia” como o faz a pintura, e por fim como o teatro não a “mima”. O cinema, ao contrário desses outros meios expressivos, também não representa a realidade, uma vez que não constitui em si um meio, um instrumento do qual o sujeito apresenta aos espectadores o mundo externo e preexistente. O cinema “re-produz” a realidade: imagem e som, ou seja, ele a produz novamente, o espaço, o tempo, as relações; e para fazê-lo se serve da mesma realidade material e física: dos corpos, dos gestos, dos objetos e inclusive da temporalidade que pretende reproduzir. À diferença dos outros modos de expressão, que ao retraduzirem o mundo distanciam-se da linguagem das ações e de seu código original, o cinema tem a peculiaridade de reproduzi-lo fielmente. O cinema permite assim estar dentro da realidade sem nunca sair dela: permitindo expressá-la por meio dela própria os seus aspectos mais ocultos, sua dimensão “sagrada”, não naturalizada. (SILVA, 2007, p.32)

 

 

 O arrebatamento

 

Na cena final, Alex está tomando sol, observando crianças em um ambiente bucólico, pueril e solar, enquanto a Terra gira (Figura 6).

Figura 6. Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

Nesse fechamento do emaranhado de nó do filme de Gaspar Noé, a beleza da cena arrebatada, evocando toda beleza no filme, encarnada em Alex: “Arrebatadora é também a imagem que nos será imposta por essa figura de fenda, exilada das Coisas, em quem não se ousa tocar, mas que faz de nos sua presa” (LACAN, 1965/2003, p.198). Noé é arrebatador e nós os arrebatados seguindo os passos de Alex desde sua entrada no túnel até seu lançar-se ao céu, aos moldes de uma odisseia no espaço. Lembremos que Tênia ousou não somente tocar, mas destruir essa figura de nosso infortúnio.

Desde a cena no túnel, lugar de torção dessa língua de cinema que está voltando sobre si mesma, o emaranhado de nó dessa narrativa passa a ser desatado em nosso arrebatamento final e cuja violência nos salta aos nossos olhos nesse nó de língua. Contudo, é preciso ir além disso que nos salta aos olhos: nossa angústia nos salta no desfecho desse emaranhado, quando Noé coloca a nossa frente o infortúnio da beleza de Alex: as cenas finais são reluzentes, mas toda essa beleza já está manchada de sangue. Nossos olhos, de espectadores, chegam ao desfecho de Irreversível manchados de sangue, obscuros de vermelho. Importante lembrar que após o estupro e o espancamento, no tempo retrovertido do filme, Alex desaparece, como acontece com o sujeito contemporâneo: ela não é mencionada em toda a primeira parte do filme, além do reconhecimento de Marcus de que aquela face destruída era sua mulher. Alex está perdida? O que vemos nas cenas finais está perdido, não tem mais volta.

O poeta cineasta ao fazer seu filme indo do fim ao início não teria, assim, desejado reviver Alex? Não seria isso, um feixe de um cineasta assim esperançoso, não de todo pessimista e, portanto, pelo menos no cinema, será tudo mesmo irreversível?

Olhar Alex, assim, é nos deparar com o “[…] o limite em que o olhar se converte em beleza, [com] o limiar do entre-duas-mortes, lugar do infortúnio”, conforme Lacan (1965/2003, p.204).

Esse limiar entre nosso caminho ordinário e o lugar que nele nos deparamos com nosso infortúnio, é o mesmo onde gravitam as personagens de Gaspar Noé, personagens situados entre nós, gente comum, para nos mostrar que existem em todas as partes a crueldade, que o ódio e a violência não é mérito dos homens socialmente classificados como violentos, criminosos, e que nossos atos, irreversíveis em um tempo também irreversível, mancham a luz de nosso tempo e nos oferecem, nos deixam à mercê de nós mesmos e da ilusão de que podemos nos defender de nós mesmos.

Alex foi oferecida à “morte” em nome de quê? Em seu cinema, Gaspar Noé sublima [função de toda arte] o fato de que a dor de qualquer tempo é efeito, antes de tudo, de nós mesmos.

O sujeito contemporâneo aparece nas experiências estéticas atuais sempre como dissolvendo uma lógica rasa de estereótipos sociais e culturais, dissolvendo esse imaginário egóico e iludido em uma unidade idealizada. Em Gaspar Noé, o sujeito contemporâneo, e seu inconsciente que comporta um não realizado, para além da linguagem, se apresenta em uma estética, em uma língua que corta essa unidade: não somos o que parecemos ser e nos lançamos, vamos mesmo na direção da dor, de encontro a um gozo pela dor. Porém, é na língua (e nas linguagens) a possibilidade de cerzir borda a essa drama subjetivo de nosso tempo.

 

Considerações finais

 

As questões do cineasta Gaspar Noé vão se desdobrando ao longo de seus filmes sob formas obscuras que se debatem com as luzes. Para compreender sua lógica é preciso, antes de qualquer coisa, nos desfazer da lógica da linearidade, da crença que temos de que caminhamos em caminhos retos, é preciso não ter pressa, fazendo-se necessário ir até o final, ou até o começo, de seus filmes. O cineasta nos mostra que caminhamos no caos e que caos não significa ausência de ordem simbólica, significa vários vetores e, de fato, em direções surpreendentes, inesperadas.

Irreversível (2002), como Cinema de Poesia, como a expressão da vida contemporânea, se escreve por uma letra torta, obscura, iluminada, manchada de sangue, marcada pelo amor, destruída pelo ódio, explicada pela razão, confrontada com a desrazão, mas sempre tentando dar conta do fatídico encontro entre sexo, violência, sangue e vingança, afetos banais em nossos tempos, como aposta Noé ao nos mostrar que toda nossa história é escrita em letra de esperma e sangue, de sexo e morte.

 

 Referências Bibliográficas

 

AGMBEN, G. O que é o contemporâneo? In: ______. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. V. N. Honesko. Chapecó (SC): Argos, 2009. p. 55-76.

BARROS, M. de. Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1990.

BRAYNER, M. G. Pier Paolo Pasolini: uma poética da realidade. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília (UNB), 2008. 110 f.

BRUNEL, L. Cinema: instrumento de poesia.  In: XAVIER, I. (org.) A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1991[1958] p. 333-337.

IRREVERSÍVEL. Direção de Gaspar Noé.  Produção de Intérpretes: Monica Bellucci, Vincent Cassel, Albert Dupontel,  Jo Prestia. França: Europa Filmes, 2002. DVD (99 minutos), son., color.

LACAN, J. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento Lol.V.Stein. In: ______. Outros Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003[1965]. p. 198-205.

NANCHERY, C. Cinema de Poesia – Atravessamentos e gestos observados na obra de Júlio Bressane. Anais do III Congresso Internacional de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual. 2012.

PASOLINI, P. P. Empirismo hereje. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982.

______. Entrevista cedida por Pasolini à Eugênia Wolfowicz.  Folhetim 10/11. 1985, publicada também na revista Antaeus em fev/1976 e na francesa Quinzaine Litteraire.

SILVA, A.F. da. Pier Paolo Pasolini: O cinema como língua escrita da Ação. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2007. 163 f.

[1] Dirigido por Gaspar Noé, “Irreversível” foi realizado na França e estreou no Festival de Cannes de 2002. A distribuição é da Lions Gate Films Inc., a fotografia é de Benoît Debie e Gaspar Noé e a produção é de autoria de Christophe Rossignon. O diretor também é responsável pela edição e pelo roteiro. A atriz Monica Bellucci interpreta Alex, Vincent Cassel faz o papel de Marcus e Albert Dupontel é Pierre.

 

A fala de uma criança em impasse subjetivo e seu efeito de angústia

Capítulo de Livro: Psicanálise e Mal-estar na Universidade
(Organização: Edmundo Narracci Gasparini, Nina Virgínia de Araújo Leite e Paulo Sérgio de Souza Jr.). Editora Mercado de Letras. 2015. p. 147-161.

Cirlana Rodrigues de Souza

            Introdução

Este artigo se inscreve na clínica psicanalítica com crianças em impasse subjetivo. [1]  Esse impasse é caracterizado pelo enodamento da criança na posição de alienação subjetiva no qual seu drama constitutivo é narrado em uma fala repetitiva em sua entonação e em suas verbalizações.  Acompanhamos um menino, hoje com seis anos e que chegou ao tratamento clínico em um posicionamento na linguagem sugerindo traços psicóticos, ou seja, repetição de frases vindas do outro, mas sem inversão sintática e semântica demonstrando que ele não se apropriava da língua, em um funcionamento sem estatuto do imaginário com as coisas do mundo.

Trabalhar com os dizeres da criança como fala, portanto instância da língua (Pincerati, 2009), possibilita acompanhar seu percurso de subjetivação (e seus impasses subjetivos) com base na intrínseca relação entre língua e sujeito, de modo mais específico, da língua como constitutiva do sujeito. Sobre a questão da língua determinante da subjetividade, partimos da hipótese de Lacan (1961/1962[2003]): um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. É com base nessa proposição que Balbo (2004, p.123) discorre sobre a língua que interessa como aquela que “[…] nos causa, e que só falamos por ouvi-la da boca do Outro”. Ou seja, nos causa por vir do Outro, do campo da linguagem, tesouro dos significantes, conforme Lacan (1964[2008]).

Dos Estudos Linguísticos nos interessa o funcionamento desse significante constituído pela distinção entre seus pares formando o signo linguístico como um sistema de valor (Saussure, 1916[1995]) sustentando que é mesmo pela diferença entre sujeito e Outro que o sujeito em constituição se efetiva, após sua posição subjetiva inicial marcada no tempo da alienação nesse campo. No percurso de vir a ser sujeito do desejo, é o funcionamento da língua nos eixos sintagmático e associativo (paradigmático) que torna possível acompanhar a subjetivação da criança, em seus dizeres.

Diante da criança inicialmente mencionada, uma questão se impôs: “Quais as estratégias de linguagem ela, em impasse subjetivo, vai construindo em seu percurso de subjetivação como possibilidade de outra direção a esse impasse?”. A hipótese é a de que a criança constrói essas estratégias subjetivas a partir dos significantes que o Outro lhe oferece, em uma relação associativa, e do singular da criança com esses significantes, em uma relação sintagmática, marcando a possibilidade da diferença nesse campo de linguagem.

Especificamente, abordaremos a dificuldade em lidar com as falas dessa criança como dado linguístico considerando que o trabalho de pesquisa de doutorado se inscreve no campo dos Estudos Linguísticos. A passagem da função da fala na clínica – de nos apontar para a condição de sujeito – para sua função de dado linguístico, portanto de dizer sobre ocorrências da língua, resulta na tensão que existe entre a relação da psicanálise com o saber sobre a língua, dizendo de outro modo, com um não saber sobre a língua e a relação dos Estudos Linguísticos com o conhecimento sobre a língua, da tensão provocada pelo encontro do analista com o linguista em que o primeiro, como parte dessas investidas epistemológicas deverá – em se tratando de clínica da criança – estar na posição de subjetivação (de agente de subjetivação) e ser destituído, mais dia menos dia, de sua posição de suposto saber, e, o segundo, o linguista, como investigador sobre a linguagem que deverá sustentar um conhecimento sobre seu objeto de estudo, sobre a fala de crianças.

Como resolver essa tensão se o universal para a psicanálise é justamente o inapreensível, a condição de sujeito barrado e o universal para os Estudos Linguísticos é o que é possível apreender nas formas descritíveis da língua? Por se tratar também de psicanálise o caminho é não resolver essa tensão (o conflito), mas operacionalizá-la nessas investidas na clínica e na escuta dessa criança em seu percurso de constituição como sujeito do desejo.

 

            A tensão: a fala da criança como dado linguístico

 

Tentar reduzir o que a criança nos dizia, durante sessões clínicas, a dado linguístico (recorte, corpus de trabalho) teve um efeito muito importante no trabalho e que, durante algum tempo, nos paralisou diante dessa criança: efeito de angústia, pois literalmente não sabíamos o que fazer com esse “dado”. Sobre isso consideramos alguns pontos. A saber: essa angústia como uma espécie de parâmetro para delimitar os episódios dessas falas e o mostrar essas falas por meio da transliteração de nossas falas alçadas inicialmente a signo. De modo breve, situamos esses pontos, na sequência.

Nos estudos linguísticos temos, como tradição, o recortar as ocorrências de linguagem orais ou verbais para explicá-las por meio de descrições e/ou análises pautadas em estruturas linguísticas ou extralinguísticas. Nada que não seja apreensível deveria ser considerado e, muitas vezes, ouvimos que esta ou aquela explicação deve ser “mostrada” no dado em uma relação direta entre um conceito e a forma que o representa, algo muito próximo ao signo saussuriano e a relação significante e significado. Porém, a questão do dado linguístico merece outra visada quando o foco da investigação é o inapreensível que apenas está marcado como possibilidade de haver, ali onde há falta nos dizeres da criança, sujeito em constituição.

Um ponto difícil, dessa questão, é sobre a transcrição das falas. Primeiro essas falas foram gravadas em sessões clínicas e transcrevê-las seria impor o enunciado sobre a enunciação e, segundo, se o que interessa de uma sessão clínica à psicanálise é o inapreensível a um gravador (o sujeito), o que transcrever?  Dessa criança, poderíamos transcrever os momentos em que suas repetições insistentes tinham efeito de insuportável, de angústia, instaurando um vazio entre nossos dizeres.  Vazio que nos remetia sempre a uma falta, a uma suspensão de haver algo entre nossos dizeres – algo indizível, porém suposto – e essa suspensão sempre seguida de um retorno do sempre repetível dessa criança que começou com perguntas vindas de outros, portanto ecolálicas, até repetições da fala de outros (e nossas) que lhe permitiram, pela primeira vez, dizer o nome próprio mesmo que vindo da boca do outro.

Esses breves apontamentos sobre a transcrição nos remetem a De Lemos (2003, p.28) ao dizer que do corpus, constituído da fala de crianças, o que resta são aqueles episódios “[…] em que irrompe uma criança através de uma fala inesperada. Fala essa que, no entremeio da fala do outro a que está alienada, diz que ela, na sua singularidade, habita aquela língua, a do Outro.” E, também, nos remete a Vorcaro (2000, p.136) ao abordar o estatuto do dado linguístico como articulador de abordagens teóricas e clínicas. Para esta autora, o dado linguístico produzido na clínica deve ser tomado como uma “[…] possibilidade de recolher a singularidade através do testemunho da clínica.” E, continua ela, “[…] em cada caso, a dita patologia de linguagem[2] estabelece um método, por estar regida por leis próprias de inscrição de um sujeito na língua, língua na qual um laço discursivo o aloca.”

Desse modo, é a condição subjetiva de impasse na alienação constitutiva dessa criança que estabelece o modo de transcrever e trazer nossas falas à análise, condição manifesta na insistência, inicialmente maciça, de ecoar a fala do outro e, atualmente, se alternam com falas inesperadas. Ou seja, os episódios (sincrônicos) nos mostram as repetições e, em um percurso (diacrônico), temos as possibilidades de acompanhar as substituições e deslocamentos nessas falas.

Esse modo de transcrever considera a angústia como momento direcionador da escuta da fala dessa criança. Dizendo de outro modo: como aquilo que não engana (LACAN, 1962-1963[2005]), no contexto transferencial da clínica, por ser inominável, por não fazer sentido. Por muitas vezes, não nos era possível responder às perguntas insistentes, não era possível, pela fala, incidir um ato nessa estruturação que pudesse romper com o que parecia não ter intervalos e que era incessante impedindo, até mesmo, um investimento imaginário de sentidos no que a criança dizia. O caminho foi começar a repetir suas entonações, suas sibalizações em “psipsipsipsis” e “tátátátás” nos pontos de angústia e que eram, esses pontos: um não saber o que responder a uma criança que só fazia perguntas e não se interessava por nenhuma resposta, a impossibilidade de cessar os ecos, a dificuldade de entender o que era dito, o fato de que a criança, por alguns momentos, parecia nos rejeitar como interlocutor em contraponto ao fato de que, em outros momentos, nos impunha que lhe oferecêssemos as palavras para que ela pudesse falar.

Para a linguística interessa as formas da língua que são passíveis de serem transcritas. Para a clínica, o que não é mostrado em uma transcrição é imperativo. Frente a isso, a tentativa é operacionalizar a noção de transliteração proposta por Allouch (1995, p.63):

 

A transliteração é o nome dessa maneira de ler promovida pela psicanálise com a prevalência do textual: ela é esta própria prevalência, ela a designa, a específica, e a dá pelo que é, a saber, uma operação.

 

Essa transliteração seria possível tomando, inicialmente, a fala da criança como um signo, como o signo de Pierce (na teoria geral dos signos) tal como Lacan (1960-1961[1992], p.232) sustenta no Seminário, Livro 8, A Transferência, falando do desejo do analista:

 

De fato, ele também não é sem ter um inconsciente. Sem dúvida, ele está sempre para além de tudo aquilo que o sujeito sabe, sem poder dizer isso a ele. Só pode lhe fazer um signo. Aquilo que representa alguma coisa para alguém, esta é a definição do signo. Não tendo, em suma, nada mais que o impeça de ser, este desejo do sujeito, senão justamente por tê-lo, o analista está condenado à falsa surpresa. Mas digam a si mesmos que só há eficácia se nos oferecermos à verdadeira, que é intransmissível, e da qual ele só pode dar um signo.

 

É desta noção que Lacan chegará ao significante como o que representa o sujeito para outro significante. Do signo ao significante, Lacan (Idem, p.258), na sequência desse seminário, se pergunta:

 

Um significante, simplesmente representa alguma coisa para alguém? Não está ai a definição do signo? É isso, mas não simplesmente isso. Acrescentei uma outra coisa da última vez que recordei para vocês a função do significante, é que o significante não consiste simplesmente em fazer signo para alguém, mas, no mesmo momento da mola significante, da instância significante, fazer signo de alguém – fazer com que o alguém para quem o sujeito designa alguma coisa, este signo o assimile, que o alguém se torne, ele também, este significante.

 

Considerar a fala da criança como esse signo vai possibilitando que, em algum momento (em termos de posição subjetiva), uma instância significante, uma ruptura nessa cadeia de representar alguém para alguém seja signo de haver ali sujeito em constituição.

Se impasses e dificuldades vão surgindo em um percurso de constituição do sujeito, são nesses pontos a possibilidade de escutar essa criança servindo-lhe de lugar de subjetivação: posição gerada pela dúvida e pela angústia e não pela certeza e segurança resultantes de um possível conhecimento prévio sobre a criança e sua “língua”. Mas, é válido esclarecer que isto não implica em não antecipar, pela via do Imaginário, uma aposta no sujeito em constituição.

Com base no que essa criança nos faz pensar sobre a língua (e a linguagem) a partir do modo como se relaciona com esse campo é que a tentativa é levar adiante a relação possível entre os estudos linguísticos e a psicanálise, em que o efeito é de algo que se instaura a partir da tensão que caracteriza essa relação e que tem haver, entre outros aspectos, com o fato de que o significante para a linguística é atado a um significado, enquanto que para a psicanálise o significante é definido pelo sujeito do inconsciente que é no lugar do vazio de sentido.

Frente a isso, Milner (1995) ao discorrer sobre as relações possíveis entre linguística e psicanálise, transformadas pela obra de Jacques Lacan [1901-1981], esclarece vários aspectos dessas relações. Mas, dois pontos são importantes na visada de um encontro entre a psicanálise e linguística, em um programa de pesquisa intitulado Estudos Linguísticos, dentro de uma universidade.

O primeiro ponto, como já foi abordado, se refere ao fato de que a linguística poderia considerar os dados linguísticos levantados e atualizados pela psicanálise: O que esses dizeres, falados na clínica, nos mostram sobre o funcionamento da língua?

O segundo ponto se refere à importante observação de Milner (1985) de que a fala constitui a mesma substância que tanto linguista como analista manipulam e que ambos lidam com o paradoxo de ser sujeito falante: têm que lidar com a própria língua e com o próprio inconsciente. A questão, com base no autor citado, é que a psicanálise enfrenta esse paradoxo, enquanto a linguística ainda insiste em considerá-lo uma deformação de seu objeto.

 

Análise como um enfrentamento

 

Segue-se um esboço de análise das falas da criança mencionada como um modo de enfrentamento da tensão que se instaura entre linguística e psicanálise e que direciona as questões anteriormente levantadas.

De modo geral, aquilo que, no início, aparecia como uma problemática para essa criança se mostrou sua marca singular no campo da linguagem, como suas estratégias a seu impasse subjetivo: a ecolalia que passou a repetição em que repetir a fala do outro é a primeira posição da criança, na linguagem, como sujeito falante (De Lemos, 1981, 1982, 2002). Aqui, é uma discussão que se dá pensando na especularidade da criança com a fala do Outro. Essa ecolalia inicial, que insistia como sintoma, portanto dizia da criança, seria uma dessas estratégias, a forma desse sujeito em constituição se engendrar na linguagem. Além da ecolalia sintática (o paralelismo sintático demonstrando não haver efeito da relação de oposição na cadeia), também foi possível escutar suas concatenações quando cantarolava seus “psispsispsis” e “tatatás”: significantes, muitas vezes quase inaudíveis, que essa criança oferecia e que basculava no meio dessa rigidez sintagmática, como uma emergência inesperada nas cadeias ecolálicas que possibilitou supor haver ali um sujeito se constituindo em estreita relação com o tempo da afânise e da separação subjetiva.

A fala dessa criança ia do paralelismo sintático, insistindo na entonação, na ecolalia até o ponto, nesse percurso marcado pela repetição, em que, como ocorre nos episódios abaixo, a referenciação por meio de uma forma nominal sustentou a possibilidade de haver sujeito em constituição, como estratégia de linguagem para seu impasse. Atualmente questionamos essa referência a um terceiro como um fenômeno de linguagem comum à estrutura psicótica, a inversão pronominal, em que o falante se refere a si como um outro, na terceira pessoa do singular: trata-se, como hipótese clínica, de uma referência da criança a si mesma em que repetir o que o outro diz dela é começar a reconhecer-se na fala desse outro.[3]

Na sequência, alguns episódios de nossos dizeres. Lembrando que a criança apresenta um impasse subjetivo que aponta para a possibilidade de psicose, o que é possível sustentar em um diagnóstico estrutural considerando a inscrição desse sujeito já no tempo da alienação subjetiva, portanto no campo da linguagem e, também, pelo fato de haver interesse por parte dele pelo Outro e pelos outros, que são sempre trazidos por suas ecolalias e repetições que, direcionadas ao outro em posição de escuta, vêm acompanhadas do olhar que não é evasivo, mas afetivo e vinculador. É com base nesse diagnóstico que sustento que essa ecolalia não é parte de um quadro de autismo infantil e, por isso, é possível pensar nas diferentes tomadas, pela criança, da fala do Outro, do modo como ela toma os significantes que lhes são oferecidos na hipótese de psicose infantil.

Os movimentos ecolálicos do menino, muito maciços no início do tratamento, não eram apenas imediatos, ou seja, não reproduziam o que lhe era dito apenas no momento da sessão. Os blocos, difíceis de desmontar de sua fala, vinham de outro lugar. Essas ecolalias conhecidas como tardias acabavam por instaurar, entre nós, um circuito de diálogo que correspondia a pergunta-resposta-pergunta-resposta até que um significante (seus psisipsis) promovesse algum deslocamento nesse eixo. Também, lhe é ainda singular o paralelismo sintático que, mesmo deslocando e substituindo significantes que lhe são oferecidos, estes se ‘encaixam’ nessa estrutura sintagmática rígida. Aqui é possível pensar que, em seu percurso subjetivo, estaria havendo uma determinação da posição psicótica? Todavia, ao acompanhar seu percurso podemos ver o inesperado rompendo nessa estrutura que ecoa e depois se repete mudando esse entrelaçamento alienante do sujeito com a linguagem.

 


Episódio 1: Primeira sessão, em que ele mexia em uma caixa com brinquedos, de costa, porém não era possível a ele brincar com o que manipulava, sem imaginário. Esta estrutura sintagmática permaneceu sem deslocamentos durante muitos meses antes que os signos tivessem efeito de corte, alçados ao estatuo de significante, produzindo uma diferença nessa estrutura.

 


Cadu: Qué blincá.

T:[4] De que vc vai brincar?

Cadu: Cê batí?

T: O que é?

Cadu: Cê batí?

T: Não, eu não bato não.

Cadu: Cê vai batê não?

T:  Não.

Cadu: Qué blincá.

T:  De que você vai brincar? (Oferencendo caixa de brinquedos)

Cadu: Vai batê. Qué blincá. Cê vai batê chinelo?

 

 

Nesse episódio é possível supor que o eco que vai fazendo da fala do outro – eco naquele momento angustiado – no dito Cê batí? substituiu o Qué blincá devido a uma associação, no campo da linguagem, entre bater e brincar, sendo possível, então, a substituição no sintagma, mas uma substiuição que não aponta para uma diferença. Esse funcionamento ecolálico permite supor o enodamento do sujeito no ponto da alienação, pois ao tomar o que vem do Outro não produz a diferença. Mas, é esse mesmo funcionamento ecolálico que nos permitiu escutar e insistir em lhe oferecer signos e, como se lê nesse breve episódio, ele foi ecoando – na forma imediata – nossas palavras como ao se apropriar de bater não em Cê batí? Não, eu não bato não. Cê vai batê não?, momento em que foi possível hipotetizar um diagnóstico diferencial com o autismo, pois ele, mesmo ecoando sintaticamente, estabeleceu um diálogo comigo. Vale uma referência ao jogo sonoro entre batê/brinca/batê ditos sempre na mesma entonação, enfatizando a última sílaba. Diante desse jogo o modo como lhe oferecíamos palavras enfatizava essa entonação também. Acreditamos que nossa entrada nesse jogo sonoro teve como efeito estabelecer as relações associativas entre o que o campo da linguagem lhe oferecia e o que, desse campo, ele se apropriava: ênfase na semelhança como antecedendo à diferença.

Na continuidade, a ecolalia, até então a serviço da alienação, mostrou-se a serviço de uma possibilidade de diferença, de deslocamento no eixo da fala. Quando lhe digo De que você vai brincar? e ele reponde Vai batê. Qué blincá. Cê vai batê chinelo? ainda temos blocos sintáticos que se repetem, mas em termos associativos ele traz, para cadeia, tudo o que foi lhe dito anteriormente e acrescenta um novo significante: chinelo. Também, a referência a si de forma invertida com o uso da terceira pessoa do singular lhe é característica e merece um destaque, pois, nos primeiros meses, vinha sobre uma forma vazia o lugar, na sentença, do pronome ele. Ou seja, nem mesmo pelo espelhamento no outro era possível referir-se a si mesmo, pois não havia uma inscrição que lhe fosse singular dada sua alienação subjetiva. Mas, sabemos que é na falta que o sujeito se constitui e esse vazio – essa afânise – será, posteriormente, como será mostrado nos próximos episódios, preenchido por significantes vindos do Outro que dirão dessa criança deixando lhe inscrito quem é ele.

 

Episódio 2:  Nesse episódio Cadu está correndo pela sala no ritmo de uma música cantada por nós. Ao brincar pela sala acompanhando o ritmo da canção que cantávamos ele imaginariamente nos diz que está se movimentando no campo do Outro a partir dos significantes que esse Outro lhe oferece, em termos transferenciais que supõe, no Outro, um saber.

 


Cadu: Cabô. Caiu. Bateu. Tô pegandu.

T:  Cadu caiu, bateu nu chão e tá pegandu o sapato.

Cadu: Caiu.

T:  Cadu caiu nu chão.

Cadu: É rosa.

T: O que é rosa?(Continuo cantarolando)

Cadu: Tá cantandu? Ela tá cantandu.

T:  É. Eu estou cantando. Você vai cantar comigo?

 

 

Nesse episódio, o menino mantém sua rigidez sintagmática e há inversão pronominal quando a referência é a si mesmo – ainda não se reconhece, pois não há o especular, a especularidade, o espelho de Lacan. Porém, um deslocamento é primordial na ocorrência Tá cantandu? Ela tá cantandu. Como uma bascula na cadeia significante esse Ela vem demarcar uma diferenciação com o Outro e o reconhecimento, por parte dessa criança, desse Outro. É possível ter havido uma imitação sintática por parte dele? Pois, antecedendo esse dito nos referimos a ele narrando o que ele fazia em terceira pessoa: Cadu caiu, bateu nu chão e tá pegandu o sapato. Nesse ponto, o que era eco da fala do Outro e de outros dá lugar a uma imitação desse Outro: ele passa a se apropriar da língua como o Outro faz. Também, ao trazer a heterogeneidade para sua fala, Cadu nos mostra como a diferença – resultante de uma associação advinda do campo da linguagem – instaura um limite entre o que é eco e o que poderá vir a ser repetição, ou seja, reconhecimento de si pelo que o Outro lhe oferece.

 

Episódio 3: Nesse momento, Cadu está pegando um carrinho e duas bonequinhas e já, desde algum tempo, é possível vê-lo tentando criar histórias com os brinquedos, juntando os brinquedos da sala, selecionando alguns e rejeitando outros, nos oferecendo alguns e aceitando um ou outro que lhe é oferecido. Nesse episódio, de modo específico, ele vem brincando com algumas bonequinhas de pano em uma casinha de madeira.

 


T:  Você vai brincar com o carrinho?

Cadu: Caiu! Caiu!

T: Caiu ou o Cadu jogou?

Cadu: Cabô.

T: Acabou o quê? Leva o carrinho para passear.

Cadu: O bixim foi nu clube. Ele voltou.

T:  Pega.

Cadu: Tô pegandu.

T:  Coloca ela sentada. Onde o Cadu vai levar ela para passear?

Cadu: Ela mordi. Qué pô ela. Caiu! Caiu!Caiu! Caiu!

T: Vamos colocar ela sentada.

Cadu: A Marinha.

T: Quem? O nome dela é Marina?

Cadu: Marinha.

T: Você disse que o nome dela é Marinha.

Cadu: Cabô. Caiu.


 

Nesse recorte, temos uma marca importante das tentativas da criança em tomar a palavra. Pela primeira vez escutamos uma nomeação proferida por ele e o significante não foi tomado pela ecolalia. Primeiro, o Ela, em referência à boneca nos mostra, na narrativa, o que ele vai fazendo de sua brincadeira, em uma possível dialética entre os diferentes sujeitos dessa história. Na ocorrência anterior, O bixim foi nu clube. Ele voltou temos uma substituição na forma nominal que nos mostra como seu paralelismo sintático, antes ecolálico, foi cedendo lugar a um funcionamento associativo entre bixim e ele, colocando essa criança no campo do sentido – do produzir sentido – ou seja, uma possibilidade de que, estruturalmente a afânise vá dando lugar à inscrição de sentido e não mais ao vazio.

Notoriamente, o significante – encarnado nos fonemas por ele falado – foi escutado, resultado de uma homofonia, por mim como Marina quando ele a nomeia. O importante foi sua recusa à minha significação, fazendo-se, então, um lugar de sentido para ele, indícios de uma relação com a língua marcada pela diferença em que o que vem do Outro tem seu lugar diferenciado do que vem dele. Ao oferecer significantes, Cadu não está mais à mercê dos significantes que lhe oferecemos. A mudança nos mostra a possibilidade da diferença. Há, inclusive, nesse recorte, um diálogo, uma dialética do sujeito na qual nos apresentamos como faltante, na medida em que lhe demando respostas e ele responde, a partir de sua falta, nos oferecendo significantes. O que se escuta é uma mudança que pode apontar para uma saída de sua condição inicial de impasse, porém não a resolução desse impasse, ainda. Transferecialmente, pensando em uma ordem paradigmática, é possível ver a movimentação para além de um enodamento inicial. Em relação ao ritmo repetitivo e silábico de sua fala, enfatizando sempre a última sílaba, nesse ponto de seu percurso, esse aspecto começa a se perder não havendo mais essa entonação singular de nossos encontros iniciais e que foram fundamentais para que, de algum modo, entrássemos nesse funcionamento de Cadu, pelas repetições desse ritmo.  Ou, talvez, o modo pelo qual ele entrou no campo transferencial que ali se instaurava.

 

Epsódio 4: Enquanto coloríamos desenhos de palhaços que fazem um programa de televisão.

 


T:: O que vc tem no olho?

Cadu: Machucô o olhu. Cadê a Marinha vermelha?

T:  Hoje ela não está aqui.

Cadu: Tá Marinha rosa. Cadê o PatatiPatatá?

T:  Tá aqui. Qual você quer?

Cadu: Fazê PatatiPatatá.

T:  Vermelhu e azul.

Cadu: Machucô o olhu. Vovó machucou u olhu.

T: Sabe o que pode ter acontecido? Ela foi enxugar seu cabelo e encostou em seu olho.

Cadu: Machucô o olhu. Vovó bateu chinelo.

T:  Você está me contando que vovó bateu o chinelo em seu olho?

Silêncio

Cadu: Cabô. Cadu não foi pra escola.

 

 

Nesse episódio a ecolalia e a imitação dão lugar à repetição da fala do Outro. Para contextualizar esse funcionamento, vale dizer que alguns momentos antes do início da sessão a avó da criança conta que naquele dia ele não foi para a escola. Toda a sequência de fala é Cadu estabelecendo relações associativas e de diferenciação (já que vai substituindo os termos na cadeia de sua fala) entre o que ele dizia e o que eu dizia, para nos dizer o por quê não foi para a escola para, ao final, repetir o que ouviu da boca da avó: Cadu não foi pra escola.

O sujeito se enuncia nesse recorte, esta poderia ser minha aposta: é a primeira vez em que ele faz referência explícita a si mesmo, ainda em terceira pessoa. Agora há um nome, uma criança nomeada. Também, nesse ponto, parece haver uma dimensão de posicionamento subjetivo. Primeiro, há uma recusa, um corte de minha leitura sobre a causa do olho machucado; em segundo, denuncia o outro, marcando a separação, a diferença e isto tanto em relação à figura do cuidador, da avó, quanto a nós. Há, nesse episódio, o fato singular de dizer sobre si, de reconhecer na fala do outro o equívoco e, pela primeira vez, ele fala seu nome – mesmo vindo da boca do outro – para dizer sobre seu movimento por diferentes contextos, lugares no mundo: o menino fala si e dá indícios de poder vir a sustentar seus dizeres, portanto ser falante, quando recusa nossa palavra e coloca outras palavras no lugar. Ou seja, reconhece a fala do Outro e, em termos de constituição, nos mostra que reconhece a diferença com esse Outro. Na fala de Cadu, parece ser o momento de encontro com a diferença, com a heterogeneidade constitutiva. Falar seu nome, dizer que não foi à escola é a repetição das palavras dos outros, da avó materna. Todavia, dizer (mesmo que repetindo o que vem da boca do Outro) seu nome não é da alienação e nossa hipótese é de uma possível saída estrutural, um momento onde o simbólico passa a incidir, novamente, nesse percurso, conforme a especularidade na fala da criança.

Lacan (1946[1998], p. 181) em suas Formulações sobre a causalidade psíquica, retomando o ponto zero como o tempo da matriz simbólica que antecede à identificação da criança com o outro, apresenta uma singular “forma de relação com o mundo”, o transitivismo, “[…] fase primordial em que a criança adquire essa consciência de seu indivíduo que sua linguagem traduz, vocês sabem, na terceira pessoa, antes de fazê-lo na primeira.”  Em posição alienante – fundadora do sujeito, porém, um impasse para Cadu – a criança, por identificação, toma do outro elementos (significantes, afetos) como seus. Falar de si em terceira pessoa é, portanto, tomar-se do Outro primeiramente. Nessa direção, uma possibilidade seria considerar o que Cadu ouviu de si e tomou para si (no sentido de ter sido capturado por), mas ainda na terceira pessoa do singular, pois se encontra justamente na posição alienante, mas dando indícios de uma relação com o mundo em Cadu não foi para a escola e de uma “consciência de si”.         Cadu pode ter atribuído a si uma nomeação feita pelo outro?  É possível que, ao se identificar ao outro da fala da avó (ao Cadu que não foi para a escola como ela nos conta), ele reconheça que esse outro é ele mesmo? Desse modo, a fala repetitiva – e não mais ecolálica – teria a função do espelho no processo de identificação primária, nas primeiras identificações de Cadu: Eu e o Outro (que é dito) somos um.

 

Episódio 5: Durante essa sessão Cadu volta repetitivo, e não ecolálico, porém com novos conteúdos, pois fala sobre seus colegas da escola nos dizendo, então, que está na escola. O que vai dizendo é sobre um menino que ainda não consegue sustentar o laço com as outras crianças, porém, ao dizer sobre elas começa a lhe direcionar uma demanda e responder, ao seu modo, ao que os outros lhe demandam. Interessa-se sobre algumas ferramentas de brinquedo e, enquanto vai falando, passa a sessão tentando brincar com as ferramentas conosco. Cantarola os “psipsipsis” entre um movimento e outro e entre os dizeres. Quase ao final dessa sessão, o menino aceita as palavras que vamos oferecendo para que substitua as palavras que vem repetindo. Por ter recebido essas palavras elas passaram de signo a significante fazendo com que a criança, pela repetição da fala do Outro, caminhe no campo da linguagem.

 


Cadu: Paulo é feiu. Vô batê Juaum Vitor. Vô batê Paulo.

T:  Você está me contando os nomes de seus colegas de escola. Mas vai bater em todos por quê?

Cadu: Vô batê ….. Gabriel é feiu. Vô batê Gabriel.

T:  Gabriel é colega. Gabriel é bonito. E Cadu vai brincar com Gabriel.

Cadu: Vitor é feiu e fi da puta. Vô batê Vitor.

T: Vitor é colega e bonito. Cadu vai brincar com Vitor.

Depois de uma longa sequência, quando arrumávamos a mesa para terminar a sessão, ele diz, me olhando:

Cadu: Vitor é colega bonitu. Vai brincar Vitor.

T:  E o Paulo?

Cadu: Paulu é colega bunitu.

 

 

 

Nesse episódio, o fato de se dirigir a nós, pelo olhar, para falar dos colegas tomando os significantes oferecidos, nos possibilita sustentar não se tratar da ecolalia da fala do outro e nem imitação, pois não nos imitou sem nenhuma alteração. Ao repetir o que lhe dizíamos foi possível a ele associar as palavras vindas do outro, ser marcado por elas e, depois de algum tempo, retomá-las. Esse percurso entre o que dissemos e o que ele disse – nos repetindo – nos faz supor que, na relação com a língua dessa criança, há significantes inscritos e que são retomados, como signo, no eixo das associações constituido de traços mnêmicos, inscrições advindas do Outro. Apostamos, nesse momento sincrônico, haver uma repetição, uma tomada da fala do outro e deslocar esses significantes no sintagma mostrou o heterogêneo na cadeia.

 

 

            Considerações finais

 

Retomando a difícil relação linguística e psicanálise que abordamos e que resulta, impreterivelmente, em uma tensão no limite entre os dois campos de saber, podemos, para finalizar, trazer de volta a questão feita anteriormente: o que os dizeres, dessa criança, falados na clínica, nos mostra sobre o funcionamento da língua?

Primeiro,  não nos parece que a problemática de tomar a fala da criança, realizadas na clínica, como dado linguística resultaria na perda do singular caro à questão do sujeito em constituição. De fato, essa fala, quando retirada da clínica, já passa a ter um estatuto de dado linguístico passível de recorte, descrição e análise. Porém, pela versão da psicanálise, a ênfase é justamente dar esse estatuto de dado linguístico aos pontos de opacidade da língua, em que é possível descrever e dizer sobre as regularidades e funcionamento dessa língua, tomando a fala a partir de sua função de dizer sobre esse sujeito do desejo.

Segundo, e nos parece primordial, a clínica nos impõe uma regularidade singular e irrepetível no funcionamento da língua dessas crianças e isto implica que os estudos linguísticos podem dizer sobre o paradoxo chamado sujeito do inconsciente, que nasce no campo da linguagem.

 

Referências Bibliográficas

 

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[1] A expressão impasse subjetivo é uma alternativa aos diagnósticos fechados para as variadas condições de sofrimento psíquico da criança e que são incoerentes com sua condição de sujeito em constituição. Sobre essa condição do infantil, na psicanálise, Bernardino (2004), situando as dificuldades de delimitação do diagnóstico em categorias definidas, propõe a expressão psicoses não-decididas para a infância em referência à posição subjetiva da criança no campo da Linguagem e seus impasses nesse campo. Vorcaro (1999, 2004) utiliza-se dos termos acidentes e desastres como referência às condições psicopatológicas denominadas de autismos, psicoses, fenômenos psicossomáticos e a debilidade mental, considerado-as como hipóteses clínicas.

[2] Referência às questões abordadas pela clínica da linguagem.

[3] Frente a isso, a criança é nomeada de Cadu: nome de ficção.

[4]  Terapeuta.

Em tempos de retrocessos, o resto de infância

Psicologia em Foco, CRP 04, de 13/07/2016

 

(* Trata-se de uma conversa sobre a temática, sem outros propósitos. Os termos Infância/criança por vezes se sobrepõe na mesma função semântica**Autores mencionados no corpo do texto.)

 

Lacan (1953) afirmou que aqueles praticantes da psicanálise que não considerem a subjetividade de sua época deveriam desistir de praticar a psicanálise, por isso, trabalhar na clínica com crianças, seus impasses constitutivos e sofrimento psíquico é localizar a criança na contemporaneidade, é atualizar os discursos sobre a criança já que nestes convergem os sintomas da criança e o que é uma criança.

O crítico Neil Postman, no livro O Desaparecimento da infância (1982), nos mostra os deslocamentos que a    ‘ideia’ de infância vem passando considerando as relações entre essa ideia, a tecnologia de comunicação, a consciência, os valores culturais e os sentimentos. O autor retoma a linha dos estudos sobre os costumes, na linha traçada por Norbert Elias, Ariès Philippe e outros, expondo sua tese do desaparecimento da infância. No prefácio à edição mais recente, o autor reafirma a mesma tese e se declara não ser capaz de apontar saídas para interromper a tendência por ele identificada anos antes.

O termo “desaparecimento”, no título da obra de Postman, expressa que as crianças estão se tornando seres adultos precoces ou pseudo-adultos.  A argumentação recupera as semelhanças e distinções entre crianças e adultos no que tange ao vestuário, a linguagem, as atitudes e os desejos, em diferentes contextos históricos.

A tempos vê-se, em diferentes áreas, autores colocando em questão a infância como o lugar discursivo, histórico, social, cultural e subjetivo de crianças e adolescentes. Se olharmos as pinturas de todas as épocas, é possível ver, desde antes a idade média, a ausência de crianças e adolescentes nas pinturas e como, pela via da religiosidade, ela começa a aparecer lentamente nas pinturas em raras situações de cuidado, de educação entre outros. Mas algumas pinturas se destacam: aquelas em que as crianças sempre apareciam de mãos das com figuras de morte, pois, entre outras situações, ficava-se sempre a dúvida se aquele bebê, aquela criança iria ou não sobreviver, devido à mortalidade infantil. Essa morte da criança, para alguns, se apresenta em retorno e, podemos dizer, de modo pessimista, não apenas de modo figurativo. Questões se apresentam como ‘O que se espera de uma criança?’, feita por Claúdia Mascarenhas ou,  equivocadas confusões se estabelecem como a feita entre a queda de ideais parentais e de referências de lei (simbólica) com um ‘suposto’ fim da metáfora paterna.

São tempos em que é preciso perguntar a que imaginário social essa noção de infância estaria submetida (De a-criança ao real infantil: reflexões psicanalíticas acerca da infância/Eric Ferdinando Kanai Passone/2016/Estilos da Clínica). Esse imaginário está submetido à evidência científica, evidência que é apenas consistência, segundo minha hipótese. É a cruel evidência do Você é isto, tamponando o Você poderia ser isto ou aquilo ou aquilo outro, da alteridade.

Ouvimos que hoje, no agora da sincronia, do tempo mesmo da infância, são tempos de retrocessos e de conservadorismo. Estes  termos  não têm a ver com algo do tipo “naquele tempo era melhor”. O que estaria na cena contemporânea como seu obscuro (Giorgio Agamben) é justamente uma espécie de retorno a aspectos culturais e históricos em que os processos civilizatórios imaginariamente retomam seus equívocos históricos higienistas e sócioeducativos, enganando-se novamente sobre a inabalável eficácia do saber biológico.

Em francês, retrocesso traz o sentido de recaída e figurativamente “reculée”, de algo remoto. Também, é recochete [a volta que um corpo faz quando é atingindo]. Portanto, o que é do sujeito volta sobre ele mesmo, porém sem o corte da linguagem. Estaria a infância, esse objeto cultural e social ricocheteando, retornando a algo remoto, como aquilo da presença de uma morte nas pinturas? Ou mesmo a antes, a esse ‘reculée’, onde não haveria nem mesmo essa noção de infância, frente ao número de mortes cotidianas de todas as formas? Portanto, valeria perguntar se realmente a mortalidade infantil estaria sob controle, se não estaria em pleno desenrolar uma mortalidade infantil do tipo social, histórica e cultural? Por isso, em tempos de retrocesso, o resto de infância.

Estou considerando a construção histórica e social de infância, em que crianças e adolescentes passam  a ser de interesse dos processos de construção de saber, articulada com o ‘fato’ constituinte de que ‘infância’ é tempo lógico do psiquismo/da constituição do sujeito, e isso diz, entre outras coisas, que há um risco desses processos se encontrarem com o cerne de um sujeito do desejo, que é sua condição de subversão: subverter, fazer outra versão ao que está aí, fazer outra versão ao seu direito de gozar, de ser gozador. Qual versão temos em um tempo determinado pelas leis de consumo, estas em substituição às leis de produção? Aquilo que produzimos como ‘sujeitos’ tinha um excesso, um resto que não se consumia, pois deveríamos abrir mão, cedê-lo ao outro como pagamento a nossa condição de desejar: seria um preço qualquer, um valor não contável que pagamos por isso [uma alegoria ao objeto a], o resto em presença vazia e que encerraria nosso engodo de totalidade. Essa é a condição nuclear da infância, de ir escrevendo em seu percurso isso que é resto, inscrevendo a incompletude. Porém, como se dá essa inscrição em tempos de uma completude gozante, como a infância vem inscrevendo esse resto pelas vias de uma espécie de obrigação ao gozo em que devemos consumir o que produzimos em excesso, na nova ordem e, assim, não ceder mais ao desejo, à falta?

Não concordo com o fim da infância, mas é preciso fazer questões em torno disso que ainda é resto dos restos da infância e dos modos contemporâneos e obscuros das tentativas de fazer essa ‘morte’, tentativas de calar o choro e o grito original de uma criança, praticamente aquilo que dá início à vida. Conto duas cenas de filmes sobre isso.

Primeira cena do filme Filhos da esperança (EUA/2006). Estamos na Terra, 2027. As mulheres não conseguem engravidar por algum motivo misterioso. O ser humano mais novo morreu aos 18 anos e estamos, então, em um risco concreto de extinção da humanidade. Theodore é uma jovem que misteriosamente aparece grávida [um milagre que não tem explicação religiosa, pois não há mais um Deus a se ter fé], e o filme gira em torno de protegê-la e proteger o bebê que consegue nascer e ir sobrevivendo em meio à miséria e à guerra, em um tempo destituído de todo traço de civilização. Destaco a cena do choro misturado ao grito, nesse mundo sem criança. Quando o bebê nasce é preciso escondê-lo. Durante um tiroteio, o bebê começa a chorar de modo intenso, quase como gritos. Aos poucos, vemos como esse choro se sobrepõe aos tiros e todos, abismados, param diante daquele som, pois havia sido a 18 anosa última vez que um choro de criança havia sido escutado. Incrédulos, as personagens esfarrapadas se aglomeram em torno desse chamado à vida.

Na segunda cena, do filme Perfume, história de um assassino (2006), a mãe do pequeno Jean-Baptiste o abandona logo após o parto, no meio do lixo, no meio do esgoto do mercado de peixes, na fétida Paris de 1738, o abandona para a morte. O bebê chora, grita forte como apelo de amor a um resto de cheiro daquele objeto que ficou como promessa de ser objeto de amor. Choro que naquela história anuncia a morte, e as pessoas se aglomeram em torno desse chamado à morte, pois é a isso que Jean Baptiste vai se dedicar em vida.

Dessas duas cenas destaco apenas como pode ser fácil a uma criança morrer e desaparecer, todavia é da infância e dos corpos de meninos e meninas que essa noção vai tomando forma e se tornando a presença que exala a vida no meio das obscuridades: pode ser difícil de uma criança morrer.

A infância é tempo, lugar sincrônico do aqui e agora, de mudanças, transformações, perdas e ganhos, da passagem de um sujeito que não fala para aquele que vai sustentar seu dizer, é o caminho que percorremos para entrar na cultura, dela ser efeito e sobre ela ter efeitos. É o processo civilizatório de Freud, do mal-estar como resposta à nossa hostilidade pulsional. A infância é o caminho de (des)encontro com a sexuação, encontro com a partilha dos sexos pelas vias dessa sexualidade que é pura cultura.

Conservadorismo tem como sinônimo conservantismo que soa e ressoa de modo duro em tempos em que não se quer deixar restos/que não se quer sujeitos, em que a fala toma função imaginária e perde seu estatuto simbólico, perde sua opacidade.

Quais tentativas de impedir essa ascensão à linguagem, no contemporâneo da infância? Pode-se enumerar várias: tornar patológica a lei básica de constituição do psiquismo, que é a repetição, a persistência em sair de sua passividade para a atividade, pelas vias da criatividade, do brincar e tornamos isso agitação, hiperatividade em um mundo de excesso de excitações; não erogeinizamos seu corpo, pela significação, mas violentamos esse corpo, passamos ao ato; tornamos crianças e adolescentes consumidores e autoconsumidores, mesmo sem oferecer-lhes condições subjetivas e sociohistóricas para isso, sem lhes dar a possibilidade de escolher entre o ter e o renunciar a algo; não falamos com elas, o que barra a transmissão simbólica, a transmissão de ideais parentais [apostas que fazemos nesses pequenos sujeitos]; matamos o pai [não a metáfora paterna] como aquele que nomeia e não possibilitamos aos pequenos ir sem esse pai; destituímos os espaços primordiais de supor saber sobre esse sujeito nas versões falidas da família e da escola em que afetos são patologizados; vemos isso na questão sobre a agressividade em nome da segurança, de riscos gerenciáveis; os movimentos são cerceados e o corpo da criança deixa de ser convocado; o sofrimento psíquico é tamponado [abafado!] por todas as formas de comportamentos observáveis tratáveis e intratáveis: não há pathos, não há mais paixão na infância; as crianças escolhem e na adolescência não há mais escolhas a serem feitas, ideais a serem transgredidos.

Como a noção de infância, revolucionária em seu fundamento, não irá sucumbir a esses tempos de tradicionalismo quando o direito à diferença é negado, de criatividade eletrônica que sufoca a criação, de invenções ao contrário [brinquedos prontos], de um higienismo sob a tutela do biopoder, de insistência em velhas fórmulas familiares, em uma educação que se nega à transmissão histórica e nega veementemente a sexualidade infantil; de um sistema que começa a assumir não querer incluir o outro, de um cotidiano imediato e forjado em imagens enganadoras, em facadinhas que viram facadinhas de nada como na pintura de Frida Khalo, de hostilidades ao singular, de silenciamento do que produz riscos de ruídos e de uma afetividade sentimentalista que barra a circulação de afetos?

Tempos em que a ciência da evidência é gestora da vida e dos riscos de viver. Podemos perguntar, por exemplo, considerando alguns trabalhos feitos, que relação tem a criança e o adolescente com a cidade em que vive, em que deveria circular? Qual o tempo do tempo da infância nesses tempos de urgências? O que é urgente? É possível que infância seja uma evidência? O projeto de felicidade não é garantido pela norma que diz ‘você deve ser feliz’, e ser feliz é ser eficiente, ser igual, hoje em dia.

Diante disso, começo por citar um verso de Hilda Hilst: “Tempo de cegueira, quando os homens não se veem”, tempo, aliás, confirmado por José Saramago no Ensaio sobre a cegueira. Tempo de surdez e tempo de mudez, acrescentaria. O filósofo Giorgio Agamben diz que repetir é a lei da infância, nos termos freudianos: repetir, persistir, reconhecer-se e estranhar-se como semelhante, o que não é negar a semelhança, se separar, diferenciar-se, ser alteridade, ir-se do outro, mas levar as marcas e os traços dessa experiência simbólica [desamparo], perguntar o que quer, criar, recusar, verter sua nomeação, atuar e dizer, acolher no corpo a língua que lhe causa, alocar a falta sexuada no corpo.

Jacques Lacan e Manuel de Barros ajudam a ver e compreender esse resto. Dois que nos retornam pela poesia. Lacan, em Duas notas sobre a criança, entregues a Sra. Jenny Aubry em outubro de 1968, diz que o sintoma da criança é o ‘representante da verdade’ [não é A verdade]. Na criança esse sintoma se encontra na situação de responder por aquilo que há de sintomas/de verdade na estrutura familiar [correlato das estruturas simbólicas]: criança é o correlato de uma fantasia do outro, sendo aí a presença do terceiro para assegurar essa mediação e o que esse Outro quer que eu deseje e o que eu quero desejar. Duas faltas. É dessa não mediação pelo desejo, pela linguagem, que temos a criança objeto, a criança resto do desejo do Outro. Ser esse resto da fantasia do Outro com seu desejo nomeado aprisiona a criança. Esse sintoma é sexual e faz laço. A criança faz sintoma, vai dizer o que se passa, pois  é “um corpo, mas um corpo que não consegue fazer a aprendizagem da satisfação, que não consegue regrar seu prazer segundo as vias previstas pelo Outro [sempre é muito pouco, ou demais ou não é assim]; em suma, é um corpo ineducável que faz fracassar todas as ideias concebidas sobre uma progressão harmoniosa” (Yolanda Mourão Meira, As estruturas clínicas e a criança, p.19).  Criança parece um ser destinado a gozar. De fato, é. Todavia, é justamente a direção dada a essa polimorfa perversão, como disse Freud sobre a sexualidade infantil, que seria a condição humanizante.

Na Alocução sobre as psicoses da criança (1967), Lacan, dizendo não haver gente grande, cria a expressão ‘criança generalizada’ e, sendo todos crianças, todos destinados a gozar, quem responderia pelos modos de gozar de cada um de nós? Quem responderia pela incompletude? Essa criança generalizada [que mata um pouco a lógica estrutural da infância como distinta da do adulto, e  Lacan parece chamar a atenção para isso] é a criança objeto, efeito do encontro entre o capital/mercado e a ciência, do discurso universalizante da ciência. Assim, é essa dupla que responde pelos nossos modos de gozar dizendo, Goza! Cada um irá responder a essa condição de ser-para-o-sexo via a fantasia, vias as tentativas de saber-fazer com o que goza. Ou não.

Nessas condições, que lugar tem hoje os devaneios criativos de uma criança lembrados por Freud, para verter essa condição de gozo, para ser resto e fazer o resto? Quem vai dizer isso é Manuel de Barros, pelas vias das ‘disfunções líricas’ no brincar da criança, no laço que faz com o Outro, na circulação dos afetos nas cenas sociais e culturais, do corpo convocado a comportar algum sexo, não todo sexo, a incompletude, no que diz e no que lhe é interdito.

De início, Manuel de Barros diz que seria bom ter “um parafuso a menos”, como um poeta, aquele que faz e se atreve a mexer com a rigidez das formas da língua, da língua de brincar. Mas, ele continua, não sendo possível ter um parafuso a menos: “o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos. ” A sugestão do poeta é trocar o parafuso, valor poético do fazer, pois é isso que vai provocar uma disfunção na lírica poética. Trocar:  trocamos com o diferente e o valor é essa diferença, ação infantil transgressora nesse tempo de sintomas universalizantes e de generalizações.

Há um poema de Manuel de Barros chamado “A disfunção” e é dele que podemos ver os restos da infância, seus sintomas que dizem da verdade. Lembro que Freud, no texto sobre escritores e devaneios, diz que o processo criativo de um poeta é o mesmo de uma criança ao brincar e todos se dão em torno da insistência de algo inacessível. Esse poema está lá, perto do “Tratado geral das grandezas do Íntimo” (2001), de poesias que são guardadas nas palavras: é tudo que o poeta diz saber, pois gosta de não saber quase tudo. Nós, ainda mais,  e a infância também é guardada nas palavras, sujeito é guardado na linguagem que o carrega. O poeta assume que mente. Uma criança não mente mais? Deveria.

Manuel de Barros escreve poemas desconfiados. Com ele, aprendemos que é preciso desconfiar da evidência, do harmonioso, daquele que gosta de saber o tudo: comecemos daí. Crianças questionadoras [de seu desejo] fazem questões, desconfiam de nossas promessas. Em um tempo de funções de toda ordem transmitidas por neurotransmissores, o poeta nos conta d’A disfunção, daquilo que funciona diferente, um mal-estar impossível de funcionar.

 O poema A disfunção, de Manuel de Barros: “Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso a menos/Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos./ A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica./Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica. 1 – A aceitação da inércia para dar movimentos às palavras/2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais/ 3 – Percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos/ 4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras /5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes/ 6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra/ 7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros. Essas disfunções líricas acabam por nos dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.”

Dessa série sintomática que nos enlaçam, escrita pelo poeta, temos os modos de ‘trocar’ os parafusos, fazer na diferença, fazer sintoma cujo valor está exatamente nesse fazer – não no produto. Esse fazer, para fazer valor, gasta tempo, é preciso que nele se demore, que se insista e persista. Essa demora é a aceitação da inércia, que se pare: em tempos velozes [e furiosos], esse sintoma 1 é o de paralisar, é o modo de ‘dar movimento às palavras’, em que uma criança deveria parar-se em seus devaneios criativos, repetir e repetir. Nosso sintoma 2 é o de ‘vocação para explorar os mistérios irracionais’, resposta contundente à poderosa evidência da razão tecnológica e científica: quem melhor explora mistérios irracionais que uma criança? Sintoma 3: ver as seriações anômolas entre as palavras é ofender a ordem própria da língua, é brincar com a língua, ver o que está para além da norma forjada e estabelecida: ousado não seguir as regras, ousado, por exemplo, gozar menos, ou voltar a gozar naquilo que mais valia. 5: ‘fazer casamentos incestuosos’, jogar abaixo padrões vigentes. Sintoma atualíssimo. Como se transmite a diferença sexual a uma criança, diferença que é o resto do impuro, do sexo, para além das normas vigentes? Nosso sintoma 6 é o de transformar o que se mostra impossível, tornar a pedra um canto é um trabalho criativo de uma criança em seu brincar, todo seu faz-de-conta gira em torno de tornar a pedra um canto, tornar qualquer coisa em qualquer coisa. E o sintoma 7, que encerra a série, é essa mania de ‘comparecer aos próprios desencontros’: é o ir e vir, em ausência e em presença, um estranhamento consigo mesmo e um perder-se de si e do Outro, coisa que criança deve saber-fazer.

São sintomas, tentativas de saber fazer com esses obscuros conservadores, disciplinadores, opressores, inspetores, vigilantes, asfixiadores de nossos tempos, conhecedores paranoicos do todo. Seria bom, na língua do poeta, trocar os sintomas criteriosos de um DSM pelos sintomas da disfunção, da troca de parafusos. É essa infância, com um parafuso em constante troca que alocaremos em nosso discurso. São esses os sintomas daquela criança sintoma, cuja saída é trocar os parafusos, é ser desarmoniosa como condição ética da infância.

Para terminar, ainda com o poeta, no “Retrato do artista quando coisa”: “A maior riqueza/ do homem/ é sua incompletude/Nesse ponto sou abastado. ” O que resta de infância, em nossos tempos de retrocessos, é ser abastada de incompletude, rica é ser o que resta, ser ‘completa de vazios’, nos termos de Manuel de Barros, que nos apontou saídas para interromper a tendência ao desaparecimento da infância.

 

Cirlana Rodrigues de Souza

Psicóloga e psicanalista, doutora em Estudos Linguísticos, na linha de pesquisa Linguagem e constituição do sujeito. Trabalha na Rede de Atenção Psicossocial do Município de Uberlândia e em consultório particular.

E-mail: cirlanarodrigues@gmail.com

Espaço Hæresis de Psicanálise com crianças e adolescentes

Espaço Hæresis de Psicanálise com crianças e adolescentes

Coordenação: Cirlana Rodrigues de Souza (membro associado)

 

Com realização mensal às quintas-feiras, das 18:00 às 21:00 h, nas seguintes datas 16/03, 27/04, 18/05, 22/06; 24/08, 28/09, 26/10, 23/11,  com o tema de investigação, para 2017, sobre Atualidade (ou não) da clínica de Françoise Dolto em convergência com os fundamentos da psicanálise de Jacques Lacan, privilegiando o estudo teórico e a apresentação de caso, pelos participantes.

A clínica psicanalítica de Françoise Dolto (1908-1988) com crianças e adolescentes pode ser mostrada nestas suas palavras: “Sempre há pessoas, mesmo advertidas, que acham loucura falar com bebês, entretanto, a partir do momento em que começamos a fazê-lo, nos damos conta de que loucura é não tê-lo feito antes.” Lê-se não apenas o indicativo de uma técnica de trabalho desenvolvida por ela em seus casos clínicos, mas o cerne da psicanálise: falar com bebês (e escutar bebês) é o que faz a psicanálise, falar e escutar sujeitos.

A história de Dolto é uma história de romper paradigmas: como médica, psicanalista e mulher que viveu 80 anos no século XX viu revoluções de toda ordem, viu expulsões e fundações dentro do campo psicanalítico, mas manteve-se na posição de sempre estar com as crianças e com os adolescentes (e suas famílias) que lhe chegavam. Como pediatra, foi a melhor psicanalista que uma criança, um bebezinho e sua linguagem poderiam ter a seu favor. Como psicanalista, foi a melhor pediatra que uma criança, um bebezinho e seu corpo poderiam ter a seu favor. Há aqueles que sequer reconhecem nas proposições de Françoise Dolto, em suas técnicas e em suas teorias a radicalidade da psicanálise: torcem o nariz a sua pediatria educativa, a sua psicanálise “de orientações aos pais”, como já ouvi por aí. Ainda, existem aqueles que só fazem por destacar equivocadamente uma clínica que se sustenta na ‘castração’, na linguagem, na imagem inconsciente que uma criança vai formando de si, apostam que ela não entendia o que era um autismo, uma psicose e que cuidava de “deliquentes”. Equívocos de quem tem uma leitura superficial e psicologizante das noções desenvolvidas pela psicanalista e não conhece as transformações dentro da psicanálise. Ademais, é preciso não perder de vista que todo campo epistemológico é atravessado pela cultura que o institui socialmente e cabe aos campos deixar ir o que o desatualiza e atualizar o que é imposto pelos novos sujeitos, pelos novos tempos. Mas, é preciso antecipar um cuidado: esses equívocos podem, hoje, servir de pretexto para uma falsa clínica psicanalítica buscando a educação moralista e autoritária e a pediatria engolida pela neurociência como resposta a muitos de nossos fracassos simbólicos, por isso traremos algumas noções de Jacques Lacan que podem contribuir para compreender o trabalho de Françoise Dolto.

Acompanhando a pergunta feita pela imprensa francesa, diante dos 25 anos de sua morte, “Qual a herança deixada por Françoise Dolto para a psicanálise com crianças?”

Ao trazer Françoise Dolto e sua obra para inaugurar o Espaço Hæresis de Psicanálise com crianças e adolescentes já está posto que há uma herança deixada por Françoise Dolto na clínica da psicanálise com crianças e adolescentes em tempos de Real, de psicanálise sem Édipo, de sujeitos impossíveis de serem enredados nas estruturas. Sobre este último ponto, destaco que isso não é novidade para aqueles que lidam com os impasses e os paradoxos constitutivos, não classificáveis, não definidos na infância. Ainda, ao longo de sua vida, ela se manteve sempre em diálogo com Jacques Lacan.  Sobre o que tanto falavam, se a história do campo lacaniano nos mostra algumas direções que se afastam das proposições de Françoise Dolto? Assim, partiremos do contexto da psicanálise no qual Dolto começou a trabalhar sua psicanálise, o que pode ser acompanhado a partir de obras como sua tese, Pediatria e Psicanálise, e no Caso Dominique e na relação com seus contemporâneos como Melaine Klein e  Donald Winnicott, no que se distanciou deles, entre outras possibilidades de leitura dentro da construção dessa obra.

Iremos nos debruçar, em cada encontro, sobre destaques das obras Pediatria e Psicanálise, O caso Dominique, Tudo é linguagem, A Imagem Inconsciente do Corpo e o Seminário de Psicanálise com crianças, e dialogar com nossos casos clínicos. Ainda, os destaques de textos de Jacques Lacan serão definidos conforme as delimitações das obras citadas. Quando oportuno, lançaremos mão de materiais como filmes e documentários de Dolto e, ainda, sobre La Maison Verte (A casa Verde), espaço de cuidado fundado por Françoise Dolto. Da Casa Verde, será possível ampliarmos a discussão sobre a clínica de cuidado em serviços prestados a crianças que temos, buscando marcar a diferença entre um espaço de cuidado abusivo e violento, pois estão a serviço de vários interesses, menos da criança e do adolescente e um espaço de cuidado onde, de fato, se busca falar com e escutar as crianças e suas famílias.

Hoje temos a relação medicina, educação e psicanálise levada a cabo. Vemos surgir coisas como ‘neuropedagogia, neuropsicanálise’, a desconstrução do saber parental, o apagamento da voz de crianças e adolescentes, o pathos da psique e do corpo sendo apagado pelo excessivo uso de medicação, de medidas de opressão de comportamentos, tudo isso aniquilando as saídas subjetivas dessas crianças e adolescentes: proposições eugenistas em tempos de uma avalanche de cérebros e transtornos que a educação e a clínica com crianças e adolescentes compram e vendem.

Diante de tal cenário, fica uma outra questão: Como a clínica psicanalítica de Françoise Dolto poderia colaborar para o estabelecimento entre pediatria, psicanálise e educação de modos singulares e éticos de cuidar de crianças e adolescentes, nos impedindo de ir na direção de propostas que servem ao fim da infância?

Espaço Hæresis: Espaço de Circulação da Psicanálise

 

Espaço Hæresis de Seminário Geral: Ano de 2017

Seminário, livro 7, A Ética em psicanálise, Jacques Lacan (1959-1960)

 

Dentro das atividades técnicas propostas pela Associação Hæresis de Psicanálise teremos o Seminário Geral que será conduzido, de modo alternado, pelos seus três membros associados.

O Espaço Hæresis de Seminário Geral privilegiará a leitura de um texto do psicanalista Jacques Lacan, com articulação com o texto freudiano, e, também, com outros trabalhos de diferentes setores da cultura, quando houver essa demanda. Será semanal, com uma hora e trinta minutos, aos sábados, das 10:00 às 11:30 h, com datas previstas para 11, 18 e 25 de março, 01, 08 e 29 de abril, 06, 13, 20 e 27 de maio, 03, 10 e 24 de junho, 05, 12, 19 e 26 de agosto, 02, 16, 23 e 30 de setembro, 07, 21 e 28 de outubro e 04 e 25 de novembro.

Sobre esse Espaço de Seminário Geral, esperamos que a letra lacaniana circule entre todos os participantes. Para este primeiro ano, em convergência com a proposição da Associação, vamos trazer o Seminário de Jacques Lacan, Livro 7, A Ética em psicanálise, dos anos de 1959-1960, que nos permitirá colocar a trabalho a clínica, o fazer da psicanálise, as noções contemporâneas da psicopatologia, da moral, do dever e das impossibilidades de nosso fazer na experiência psicanalítica. Esse Seminário sucede as elaborações de Jacques Lacan sobre imaginário e simbólico (sucede como continuidade e não como substituição), em específico o Seminário sobre o “desejo” e antecede os seminários sobre a transferência, a identificação e a angústia, seminários onde Lacan, respectivamente, faz cair o amor ideal, a predicação imaginária e simbólica e nos apresenta o objeto a. Ou seja, nesse Seminário sobre a Ética, Jacques Lacan fará elaborações em torno do que nos causa, chegando ao Real: a experiência psicanalítica é uma experiência atravessada pelo Real. Elaboração que terá efeitos pelos próximos vinte anos na obra do psicanalista francês. Cada um dará o tom de sua leitura e nos colocaremos na escuta dessa leitura. Ainda, importante destacar que é um texto que impõe o diálogo com textos como O Eu e o Id, de Sigmund Freud, Antígona, de Sófocles, Sade com Kant, de Jacques Lacan, e as obras do Marquês de Sade.

É interessante que materiais como filmes e obras de arte [contemporâneas], e casos clínicos, nos ajudaram a ler esse Seminário. Ainda, serão sugeridas leituras complementares como obras filosóficas de Kant, o trabalho de Alain Badiou, Ética: um ensaio sobre a consciência do mal, os trabalhos de Vladimir Safatle, O grande Hotel: Abismo e o Dever se seus impasses, que abordar a ética.

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