V Reunião Aberta da Hæresis
Inscrições abertas, vagas limitadas.
Apresentação e Convocatória escrita por Cirlana Rodrigues de Souza
Estamos em Uberlândia, Minas Gerais e, apesar de Sertão, não é bem o Sertão de Guimarães Rosa. Mas, como todo Sertão, está em nós. Faz nós, enlaça, desenlaça, amarra, solta, amordaça, liberta, afeta pessoas, embaraça. E é nesta terra, cada vez mais árida, que escutamos, como analistas, sujeitos que se propõem a falar de si, a dizer de si. Sendo cada sessão de análise uma poética e cada pessoa uma poesia, partimos disto: uma análise é uma reinvenção das línguas, de uma mesma língua enxertada de novas palavras, da língua do Outro que me causa, que herdo, traduzo, transformo e com a qual atravesso os tempos. Numa análise, torno essa forma mais humana que existe um discurso, me localizo, localizo os outros. Conduzo, como todo falante, a civilização. Quando uma criança fala, seja como for, num gesto, num grito, num silêncio, num barulhinho de voz qualquer, nas palavrinhas tortuosas e inventivas, essa civilização caminha, avança Sertão adentro. Se Guimarães nos faz (a)travessar o Sertão toda vez que se lê a instância da letra com a qual nos contou ao mundo, convidamos aos interessados na psicanálise à escuta do que temos a dizer sobre as palavras ditas e sobre os ditos por traz delas, como praticantes do inconsciente. Escutar a nós e aqueles que invocamos a contar que línguas falam e como escutam as línguas dos Outros, línguas impregnadas de ecos, memórias e associações, pois uma palavra, afinal de contas, não é apenas uma palavra, carrega sempre um segredo: carrega nosso desejo.
Data: 01/12/2023 e 02/12/2023
Evento Presencial e Gratuito em Uberlândia, MG
Local: Anfiteatro 5OA – Campus Santa Mônica/Universidade Federal de Uberlândia
Necessário inscrição prévia. Vagas limitadas.
Em breve vamos divulgar a programação completa.
LINK de Inscrição –> Sympla (As inscrições começam no dia 24/10/23 (Terça-feira)
A III Reunião Aberta – Hæresis Associação de Psicanálise foi realizada em 06/07/2019. Considerando o entrelaçamento entre a experiência clínica como nuclear da psicanálise e o discurso psicanalítico como pertencente ao campo social, histórico, cultural e de saberes da sociedade contemporânea, abordamos as formas de subjetivação na atualidade brasileira.¹ Nosso tema partiu da proposição do pesquisador e psicanalista Fábio L. F. N. Franco, membro do FCL (SP), Doutor em Filosofia (USP) e integrante do LATESFIP (USP): “O Governo do excedente: Necropolítica e formas de subjetivação“.
Buscando ampliar o debate, conversamos com Fábio Franco sobre seu trabalho e o tema de nossa reunião.
Hæresis: Durante a leitura de sua tese “Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil” ² e, retornando ao texto freudiano Luto e Melancolia (1917), é possível considerar que a melancolia como conceito estabelecido por Freud é pertencente aos tempos de gestão da vida [biopolítica] e, por isso, faz-se necessário sua atualização para nossos tempos de gestão da morte [necropolítica]? O que pode ser mostrado no enunciado: “Não bastasse a minha melancolia, agora a melancolia do mundo.”
Fábio: Não penso ser possível dizer que um conceito é necropolítico ou político. Temos exemplos de conceitos forjados para justificar formas de controle político da população que foram reconfigurados como categorias orientadoras da crítica social. Tal é o caso do próprio conceito de biopolítica, que aparece para legitimar as formas de purificação e saneamento do corpo social, mas se converte, com Foucault, num instrumento essencial para se conduzir a perspectivação crítica das tecnologias de poder a partir do século XVIII. Sendo assim, mais do que determinar se a melancolia é um conceito bio ou necropolítico, o que, insisto, não me parece nem importante, nem possível, é acompanhar os destinos dessa categoria clínica da Viena de Freud – que, é bom lembrar, não forja o conceito, mas o inscreve no campo da psicanálise – para a América Latina, para a Palestina ou para a África. Dessa forma, é possível identificar as formas como a melancolia se inscreveu em dispositivos de necrogovernamentais do sofrimento social, tornando-se, como sustentamos na tese, um afeto necessário para a organização dos vínculos em determinadas sociedades.
Hæresis: Ainda, considerando suas elaborações a partir do texto freudiano mencionado, e discutindo “as ressonâncias políticas da exclusão social do luto, e de sua reclusão como fenômeno psíquico individual” (Franco, 2018, p.175), qual sua posição frente às contundentes críticas epistemológicas feitas atualmente, dentro do próprio campo psicanalítico, sobre uma ‘espécie’ de impossibilidade de ‘seguir com Freud’, impossibilidade essa marcada por uma veemente crítica que coloca em destaque um Freud indissociável da leitura biológica em conceitos como o de ‘pulsão’?
Fábio: Essa frase citada da minha tese se inscreve no momento que apresento a leitura de Jean Allouche sobre Luto e Melancolia, de 1917. De fato, para Allouche, esse texto de Freud pode ser compreendido como um esforço de resgatar o estatuto normal do luto enquanto fenômeno psíquico individual. No mesmo capítulo da tese, recupero a interpretação que a filósofa estadudinense Judith Butler constrói sobre o mesmo artigo freudiano. Ela, contudo, interessa-se por colocar em relevo exatamente o contrário do que preocupava Allouche. Para Butler, Luto e melancolia é um texto clínico com evidentes ressonâncias políticas, que teriam passado despercebidas talvez para o seu próprio autor. De certo modo, essa significativa diferença nas interpretações de Luto e Melancolia empreendidas por dois qualificados estudiosos de Freud revela que a relação entre um leitor e uma determinada obra não pode tomar a forma de um mero decisionismo consumista do tipo: “quero isso, não quero aquilo”.
O filósofo político contemporâneo, Claude Lefort, no seu magnífico estudo sobre Maquiavel, intitulado O trabalho da obra, publicado originalmente em 1972, insiste que uma obra de pensamento não existe fora das relações que tecem entre si texto, escritor e intérpretes. Não se trata, porém, de relações pacíficas, harmônicas. Ao contrário, a obra de pensamento se caracteriza pela negação de um suposto saber, que assumia o lugar de verdade absoluta, abrindo espaço para a emergência do novo, de perguntas até então obstruídas, de lacunas que darão a pensar e a dizer na posteridade, na história. Mas, observava Lefort a respeito dos intérpretes do pensador florentino, há sempre o risco iminente de que os leitores tentem colocar a obra no antigo lugar que fora ocupado pela verdade absoluta destronada, tamponando a indeterminação produtiva da obra. Acontece, porém, que ao tentar determinar a indeterminação que pulsa na obra, o intérprete, paradoxalmente, faz aparecer nelas novas zonas obscuras, irrepresentáveis. Assim, por mais que se queira reduzir a obra ao silêncio de uma verdade idêntica a si mesma, a indeterminação irrompe, projetando-a novamente na história.
Fiz essa longa digressão pois creio que as considerações de Lefort lançam importantes considerações sobre a pergunta que vocês me colocam. Nós, psicanalistas, conhecemos bem esse preconceito realista, denunciado por Lefort, que anima muitos dos nossos colegas, leitores de Freud e Lacan. Eles pressupõem que sob a obra, há a verdade da obra; que sob as indeterminações, lacunas, rasuras, contradições dos textos, há Um sentido inscrito no seu âmago, que está à espera dos melhores leitores para ser finalmente posto à luz. “Ao menos, deve existir um não lacunar”, fantasiam, apesar das análises concluídas. Contudo, os textos de Freud, Lacan e outros resistem a todos esses esforços, continuando a nos fazer pensar e dizer.
À luz dessas considerações, parece-me que é insustentável dizer que “não é possível seguir com Freud”, uma vez que Freud, enquanto nome da obra, não é capaz de unificar a indeterminação que insiste nos seus textos, forçando a abertura de novas possibilidades interpretativas, como as que eu apresento na tese.
Quanto a isso, um excelente exemplo é justamente o conceito de pulsão. A partir de Lacan, pode-se interpretá-lo de maneira radicalmente oposta a toda tentativa de identificá-lo com uma espécie de resíduo biologizante no interior da metapsicologia freudiana que apontaria para a tendência a um estado bruto inorgânico. A pulsão de morte, segundo alguns autores na esteira de Lacan, é uma violência contra o Eu entendido como unidade sintética da personalidade e, portanto, modelo da organização psíquica dita normal. ³ Estaria contida nessa pulsão o que permitiria indeterminar as formas fixas, identitárias e egológicas por meio das quais os sujeitos se socializariam.
Hæresis: Sobre isso, sua visada é da psicanálise, assim como a antropologia, dentro do campo das ciências sociais. Você poderia discorrer, brevemente, sobre que impasses teria para a psicanálise e o quão produtivo seria esse tipo de articulação?
Fábio: Não é incomum ouvirmos colegas psicanalistas sustentando a irredutibilidade radical da psicanálise a qualquer outro campo de conhecimento, como se houvesse uma barreira de intradutibilidade epistemológica, ética e política a separá-los. Todavia, parece-me que essa posição não condiz com o próprio processo de formação da teoria e da clínica psicanalítica, nas quais as trocas com outras áreas do saber são essenciais, seja porque fornecem hipóteses teóricas e instrumentos conceituais incorporados pela psicanálise, seja pelo fato de colocarem problemas capazes de indeterminarem o que parecia bem assentado como evidente na teoria e na prática psicanalítica. Os exemplos são incontáveis: Totem e tabu e a antropologia; Psicologia das massas e a psicologia social; O Seminário, livro 16, e a lógica, a matemática; o retorno lacaniano a Freud possibilitado pela virada estruturalista na antropologia, com Lévi-Strauss, na linguística, com Saussure, Jakobson e outros, na crítica literária, com Barthes; além de muitos outros casos, cujos rastros, nem sempre explicitados pela pena dos teóricos da psicanálise, podem ser localizados de Freud ao chamados pós-lacanianos. Afirmar que a psicanálise está numa ilha teoria e prática, a meu ver, seria o mesmo que pretender encerrá-la numa espécie de condomínio fechado, com todo o mal-estar, sofrimento e sintomas decorrentes disso, como vem sendo explicitado pelo trabalho de Christian Dunker.
Hæresis: Acerca da clínica psicanalítica, quais são os impactos na direção de tratamento e na escuta dessas formas de subjetivação efeitos da necropolítica, na medida em que a individualização da prática de cuidado individual por vezes silencia o coletivo, como sustentam muitas críticas feitas à psicanálise (a partir de um entendimento tradicional e elitizado da disciplina)?
Fábio: Por um lado, não acredito ser possível responder a essa questão sobre a clínica desde uma perspectiva teórica, que, normalmente, tende a ser generalizante. No limite, é a clínica, entendida como diferentes experiências clínicas singulares, que pode fornecer fragmentos de articulações a respeito de se e como os efeitos de subjetivação da necropolítica organizam processos de identificação, aparecem na transferência etc.Por outro lado, a pergunta que vocês me colocam aponta para um problema mais complexo, a respeito do qual apenas posso esboçar alguns caminhos para atravessá-lo: trata-se da questão sobre as relações entre a prática clínica psicanalítica e as elaborações teóricas, embasadas psicanaliticamente ou não, que se dedicam a analisar criticamente o campo social a partir dos circuitos de afetos que constituem sua verdadeira base normativa, como tem insistido Vladimir Safatle. ⁴ Há anos, o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, da Universidade de São Paulo, o LATESFIP/USP, vem desenvolvendo pesquisas mobilizadas por esse problema. ⁵ Na minha tese, é a essas pesquisas a que me refiro quando, no último capítulo, procuro sustentar, apoiado sobretudo em Butler, Freud e Lacan, que a melancolia é uma das patologias do social da necrogovernamentalidade. ⁶⁷⁸
O conceito patologia do social tem uma longa história de utilização em diferentes ambientes teóricos. Por isso, vale dizer, muito resumidamente, que, no LATESFIP, temos construído o entendimento de que uma patologia do social consiste numa forma de funcionamento social a partir da gestão do sofrimento psíquico. Como já havia mostrado Canguilhem, uma patologia, particularmente as patologias psíquicas, não é uma realidade natural identificada a partir das suas manifestações sintomáticas. Uma patologia é, antes, um conflito normativo entre o organismo e o seu meio, entre uma forma de vida e as normas sociais, com os valores que lhe subjazem. Por isso, toda patologia é vivida primeiramente como mal-estar, no sentido de algo que exprime uma certa condição existencial de não-lugar, vinculada à experiência de estar ou absolutamente preso ou demasiadamente fora, a ponto de não saber se localizar. No âmbito social, este mal-estar procura se nomear precariamente por meio das narrativas que lhe inserem na história e nas relações com o outro. Contudo, como bem sabemos a partir da nossa escuta clínica, as narrativas de sofrimento são reconhecidas socialmente de formas diferentes. Enquanto algumas são consideradas normais ou saudáveis, isto é, conforme as expectativas normativas que, num dado contexto, regem o mundo do desejo, do trabalho e da linguagem, outras são diagnosticadas como patológicas, ameaçadoras tanto para quem as sofre quanto para os que o circundam, justificando, assim, intervenções terapêuticas as mais variadas. ⁶ Vê-se, portanto, que determinar quais modos de sofrer são saudáveis e quais não são, quais dinâmicas afetivas podem ser comunicadas segundo uma certa gramática de sofrimento e quais precisam ser tratadas, com remédios ou confinamento, é uma decisão profundamente política e moral, ao mesmo tempo que clínica. No limite, isso quer dizer que todo diagnóstico clínico é indissociável dos seus efeitos políticos e sociais, uma vez que eles estabelecem a partilha entre como se deve sofrer e como não se deve sofrer, quais formas de experiência são saudáveis e quais são patológicas. Governar o social gerindo o sofrimento psíquico significa, então, por um lado, determinar os quadros patológicos e a gramática do sofrimento que orientará a diagnóstica, entendida em sentido amplo, ⁷ e, por outro lado, administrar a incidência maior ou menor de certas formas de sofrer a partir da necessidade de se produzir formas de vínculo social. É, nesse sentido, que devemos entender, por exemplo, as afirmações de Adorno e Horkheimer sobre o interesse da propaganda nazista estimular a paranoia como uma forma de sofrimento psíquico, expressa na narrativa da ameaça do objeto intrusivo e da dissolução da unidade do Eu, necessária para a reprodução do fascismo e das suas dinâmicas de intervenção social. O mesmo pode se aplicar ao que eu escrevo sobre a função de se gerir a melancolização social no âmbito da necrogovernamentalidade contemporânea.
Parece-me, então, que considerações dessa natureza sobre a patologia do social têm efeitos maiores sobre a clínica, uma vez que põe a baixo tanto pretensões epistemológicas realistas, quanto exortações pífias à neutralidade axiológica do clínico, revelando, ao mesmo tempo, que o setting analítico tradicional, o consultório com seu divã, não está isolado dos demais dispositivos diagnósticos de gestão social do sofrimento, seja porque contribui para reforçar certas patologias, seja porque permite que se abra espaço para o reconhecimento de outras narrativas do sofrimento, bloqueadas pela gramática social, enquanto produtoras de formas de vida singulares.
Hæresis: Você define Necrogovernamentalidade como “técnicas de gestão da morte que se disseminam por diversas instituições e suas articulações com os processos de subjetivação” (Franco, 2018). Essa definição coaduna com as formas de sofrimento, no século XXI, que são, de modo geral, problemáticas no laço social, no encontro com o outro semelhante e com o Outro como discurso, como alteridade, dentre as quais: a epidemia de diagnóstico de autismo (e não de autismo), as depressões, o suicídio, a paranoia como modalizadora do discurso político e social, as insistentes demandas – na clínica – em torno de um desamparo crônico, e o número elevado de crianças com as mais variadas dificuldades de (e na) linguagem. Trata-se de um arranjo estrutural onde, no sintagma freudiano ‘pulsão de morte’, a imaginarização dos discursos fez apagar a pulsão, restando a morte como o centro do laço social?
Fábio: É preciso entender a melancolia e a sua gramática do sofrimento como modos de produção de subjetividades cada vez mais determinadas pelos imperativos superegóicos. O melancólico sofre porque, identificado com a falta, com o objeto rejeitado, sente-se baixo e indigno de atender às expectativas normativas das quais dependem seu reconhecimento social. Assim, retomando o que disse anteriormente sobre a pulsão de morte, tal como Lacan nos permite interpretá-la, parece-me que a saída da melancolia dependeria da indeterminação do horizonte normativo fornecido pela forma-indivíduo, indeterminação esta que, justamente, diz respeito ao trabalho da força disruptiva da pulsão de morte.
Hæeresis: A Vala Clandestina de Perus é tomada, por você, como um paradigma, um modelo de inteligibilidade [e de criação] da economia contemporânea de poder, nos termos do filósofo italiano Giorgio Agamben, como o que nos permite compreender nossa realidade, onde o singular e o universal se realizam. Você a apresenta como um caso paradigmático. Esta questão se insere sobre o significante ‘caso’. Para a psicanálise, sem entrar em todas as especificidades que o termo impõe ao campo psicanalítico, um caso é aquilo que se escreve em torno de um enigma, do resto não redutível à teoria, aos conceitos. O que permanece irredutível no caso Vala de Perus?
Fábio: Essa é uma excelente pergunta. De fato, a minha tese é a tentativa de circundar a vala, cuja associação com o furo do Real é quase imediata. A ditadura civil-militar brasileira dedica-se a montar um complexo dispositivo de desaparecimento justamente para desrealizar não apenas as resistências políticas diretamente mobilizadas na luta contra o regime autoritário, mas, principalmente, aquelas formas de vida consideradas ou ameaçadoras, porque colocavam em risco moral ou socialmente a segurança nacional, ou simplesmente descartáveis, pois, no Brasil do nacional desenvolvimentismo – mas, não apenas –, não há lugar para moradores de rua, pacientes psiquiátricos etc. Para que a desrealização fosse completa, descaracterizaram os corpos, apagaram ou adulteram os registros, perderam os documentos, mudaram os nomes, proibiram as manifestações rituais de luto público, bloquearam os obituários, em suma, como diz Butler a respeito dos mortos nas guerras do Iraque e Afeganistão, foracluíram essas perdas. Porém, esses cadáveres retornaram, não dois ou três, mas cerca de 1.500. Enfatizo a aproximação quantitativa, pois ela é significativa, não apenas na medida em que conta da destruição sistemática desses corpos, desde a exumação, passando pela reinumação na vala, pela exumação definitiva, em 1990, pelos diversos trabalhos de análise forense para identificá-los, levando-os a passar por condições de armazenamento totalmente inadequadas, de forma que, ao final, resta praticamente impossível individualizar esses conjuntos esqueléticos, mas é significativa sobretudo porque revela o que Marc Nichanian, ⁸ a partir das narrativas construídas sobre o genocídio dos armênios, no início do século XX, identifica como um dos traços fundamentais das catástrofes: sua indefinição, a impossibilidade de representá-la sob uma imagem capaz de totalizá-la como Um, o que não é sem consequências para o luto. Nesse sentido, o caso Vala de Perus abre no coração do governo ditatorial brasileiro, e no muito que dele resta no Brasil da chamada “nova República”, a vala da indeterminação. Por um lado, isso pode produzir rachaduras irreparáveis na verdade do discurso oficial segundo o qual “nada aconteceu”, “foi uma ‘ditabranda’”, “nenhuma violação foi perpetrada sistematicamente pelo governo” e suas variações atuais, abrindo espaço para pesquisas, investigações, lutas. Por outro lado, a vala da indeterminação não deixa de, também, produzir sofrimento, na medida em que resta como um capítulo não simbolizado da história nacional, que não cessa de se repetir na história. Creio que o meu trabalho possa ser entendido de dois modos: ele se inscreve na abertura produzida pela indeterminação dos discursos oficiais, ao mesmo tempo que tenta circundar de significantes esse acontecimento que permanece em larga medida inominável.
Portanto, há muito o que se escrever, pensar e fazer com relação à Vala de Perus e aos seus desdobramentos. Em primeiro lugar, ela não é a única vala clandestina ou local de ocultação de corpos utilizado pelo governo ditatorial civil-militar. Como os relatórios das diferentes Comissões da Verdade mostraram, há provas incontestes da existência de muitas outras Valas de Perus no território nacional. Além disso, dado que a existência desses dispositivos necrogovernamentais de desaparecimento antecedem a ditadura e avançam para além dela, precisamos nos confrontar com os dispositivos de desaparecimento administrativo, que são responsáveis por muitos casos de desaparecimento no Brasil contemporâneo, bem como com a incorporação desses dispositivos a aparatos não-oficiais de governo, como as milícias. Um exemplo sensível disso é a recente descoberta de um cemitério clandestino criado pela milícia que atua na região de Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro, para ocultar corpos das vítimas, chamadas de “discos voadores”, pois sumiam do dia para a noite.
Hæresis: Na leitura de sua tese, é impossível não se questionar sobre o lugar de quem fica expectando essas valas clandestinas. É uma leitura que nos remete ao ‘cheiro da morte’, às pessoas desaparecidas, pessoas exumadas, aos sacos plásticos contendo remanescentes mortais humanos, como você descreve: o corpo fétido de esquecimento/apagamento. O lamento e constrangimento que acompanha essa leitura nos leva a perguntar: O que se pode fazer/dizer, produzir/inventar na medida em que tal leitura pode ter efeito melancólico?
Fábio: A meu ver, o próprio fato dessa tese existir indica uma saída para um provável efeito melancólico que pode decorrer da sua leitura. Por isso, insisto que a descoberta da Vala de Perus produziu também a indeterminação dos discursos com pretensão de verdade que procuravam foracluir a existência dessas violações. Com isso, paradoxalmente, ela cria espaços para a emergência de pesquisas, filmes, discursos políticos, lutas, manifestações estéticas etc. Não me sinto confortável para dizer o que se pode fazer ou inventar a partir do que escrevi, pois não acho que a relação entre a teoria e as suas eventuais consequências práticas sejam imediatas e, tampouco, diretas. Novamente, esta pergunta só pode ser adequadamente articulada na prática. Considero, no entanto, há bastante tempo, que muito já vem sendo feito. Lembremos das lutas de familiares de presos e desaparecidos políticos por memória, verdade, justiça e reparação; dos movimentos locais e nacionais de mães de mortos pela violência do Estado; dos esforços hercúleos de familiares de executados pelas polícias para produzirem contranarrativas sobre seus sofrimentos, criarem memorais, internacionalizarem a reverberação desses casos, além de muitos outros exemplos.
Hæresis: Qual sua relação com este trabalho, para além de pesquisador, como tentativa de ultrapassar o lugar teórico do problema em tese?
Fábio: Após um período trabalhando diretamente em projetos, governamentais e não-governamentais, ligados ao caso da Vala de Perus, atualmente o que venho fazendo para ultrapassar os problemas que coloco na tese é justamente a pesquisa. Considero que redescrever problemas, abrir a possibilidade de novas interpretações sobre os fenômenos, forjar conceitos, enfim, tudo isso que identificamos ao trabalho teórico ou à pesquisa é uma forma essencial de intervenção prática. Quero dizer, ecoando algo da minha formação na tradição dialética: o pensamento é prático, desde que estejamos dispostos a não reduzir a ação às expectativas utilitaristas que a vinculam direta e imediatamente a determinados fins.
Hæresis: Sobre política (se é que não estamos falando disso o tempo todo). A sentença de Jacques Lacan “O inconsciente é a política” é lida e interpretada tanto por aqueles que pensam a psicanálise na política, essa que vai às ruas, como por aqueles que não abrem mão do “inconsciente só existe na análise” e enfatizam que analista e cidadão são duas identificações distintas. Esse paradoxo tomou força de conflito no contexto das eleições de 2018, no Brasil, em movimentos como “Psicanalistas pela Democracia” e as diversas reações desencadeadas. Qual sua posição em relação à questão psicanálise e política?
Fábio: Esse debate é frequentemente recolocado a partir da distinção lacaniana entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão. Para alguns, na sua relação com a sociedade, os psicanalistas, individualmente, poderiam explicitar seus posicionamentos políticos, preservando, no consultório, a orientação ética da direção do tratamento entendida como falta-a-ser. Para outros, a dimensão política da clínica apareceria no nível tático, no da interpretação. Trata-se, certamente, de uma questão extremamente difícil, para a qual não tenho uma resposta. Começaria a articular alguma coisa a respeito, problematizando o que normalmente se entende por política quando se coloca tal pergunta. Os exemplos que vocês trazem deixam ver que ou bem se faz política indo para as ruas, para as praças, ou bem não se faz política. Mas, se reduzimos a política à ação prática direta na forma de intervenção, corremos o risco de deixar de fora da política não apenas a psicanálise, mas todo um conjunto heteróclito de práticas que não satisfazem a esse critério, a começar pela pesquisa. Portanto, creio ser importante redimensionarmos melhor neste debate o sentido de “política”. Para avançar um pouco mais nesse esboço de resposta, retomaria uma ideia de política que me parece profundamente consoante à ética da psicanálise, ideia forjada por um filósofo político muito próximo do ensino de Lacan: o já mencionado Claude Lefort. De modo muito sumário, podemos dizer que, para ele, a política se define como um espaço de indeterminação, no interior do qual os conflitos podem tomar lugar sem que lhes seja dada uma resposta definitiva. A política é pensada como abertura ao indeterminado contra as forças que pretendem reduzí-lo às figuras conhecidas da unidade: a burocracia, o ditador, o presidente autoritário ou populista que definem qual é a verdade do desejo do povo. Ora, parece-me que, mutatis mutandis, não é outro o horizonte de direção do tratamento que nos orienta na clínica. Quando, mais acima, referi-me ao papel irrecusavelmente político da clínica ao abrir espaços para formas de experiência e para narrativas do mal-estar produtoras de singularidade, apontei para o fato de que o bem-dizer é correlato de um conjunto de transformações na forma como o sujeito se socializa. Sendo assim, a psicanálise, no consultório ou na rua, só pode ser política. Contudo, há o risco iminente de que ela se associe a dispositivos de governo do sofrimento social, reiterando e colaborando para a disseminação das formas de sofrer, da codificação da gramática do sofrimento, da patologização do mal-estar. Isso, no entanto, pode se dar na rua, tanto quanto no consultório.
Hæresis: Dos dispositivos desaparecedores, apagar nomes e nomear indivíduos como ‘não-identificados’, como você elabora – desaparecimento dos nomes – nos remete diretamente ao sujeito em psicanálise como uma emergência na linguagem, uma resposta nem submissa e nem transgressora, mas subversiva à essa mesma linguagem que o causa. Desse sujeito, as passagens mais fundamentais das elaborações de Jacques Lacan são as que demostram, ao longo de sua obra, haver um rastro apagado no significante com o qual esse sujeito se identifica: o traço unário é causa e efeito do sujeito do inconsciente. Nas proposições da necrogovernamentalidade, esse desaparecimento apagaria essa possibilidade de emergência do sujeito do inconsciente, sujeito subversivo nos discursos? Ou, isso que a psicanálise sustenta como lógica e psiquismo estaria imune a essas modalidades de governo da vida e da morte? Ou, ainda, como se diz, o significante sempre irá advir, sempre escapará à essa mortificação da vida?
Fábio: Não entendo que a melancolização necrogovernamental produza a desativação de toda forma de resistência. Nenhum dispositivo governamental realiza a pretensão de um governo total, pois há sempre algo que resta ingovernável – nesse sentido, também podemos ler o impossível de governar, freudiano, e seus desdobramentos na teoria lacaniana dos discursos. Para além das saídas para a melancolia que mencionei anteriormente, relacionadas às formas mais tradicionais da ação e da estética política, a professora Adriana Vianna tem apontado para a existência de uma plêiade de esforços antimelancólicos nos quais se percebe produção de outras gramáticas do luto político, como a ida a terreiros e casas de reza, os sonhos, a composição de sambas, a escrita de cordéis. Evidentemente, a clínica psicanalítica é um espaço importante, mas não exclusivo, para a emergência de um sujeito que resiste às formas de subjetivação disponíveis.
Hæresis: As Valas-paradigmas continuam abertas. Após o decreto do Presidente Bolsonaro, de abril deste ano, contingenciando o financiamento de trabalhos como os realizados pelo Grupo de Trabalho de Perus na identificação dos desaparecidos da Ditadura Militar Brasileira, a Ministra Damares, referindo-se à Vala de Perus, disse coisas como: “Não dá para viver de cadáveres”, e insistiu em dizer que a maioria dos corpos de Perus são de crianças com meningite, apagando os outros mais de 1000 corpos e, ainda, escondendo o porquê desses corpos mortos pela meningite terem sido jogados na Vala, como você conta. Tem-se, nesses discursos instituídos por aqueles que respondem pelo Estado brasileiro, neste momento, o esvaziamento do discurso, o desaparecimento na sua mais contundente realização: cava-se uma vala onde a história está enterrada nos termos de toda a necropolítica que você expõe. Como psicanalistas, qual direção damos a essa mortificação do discurso?
Fábio: Deixá-lo falar em outros espaços, nos quais esse discurso possa se colocar em movimento, abrir-se para outros dizeres, criar novas histórias.
Referências:
¹ Nesse sentido, o trabalho do artista maranhense Thiago Martins de Melo, que usamos como imagem do evento, ao mesmo tempo desloca para nossa sociedade e condensa o que, no Brasil, se inscreve da lógica de gestão da morte, da política cuja laço é estabelecido e mantido na determinação de quem é por ser matável. “A partir do cruzamento anacrônico de narrativas sobre resistências e decadências, simbologias e personagens, espiritualidade e sincretismos, Thiago Martins de Melo utiliza os artifícios tradicionais da pintura para falar de questões relacionadas ao Estado de Exceção no Brasil. Na obra Necrobrasiliana (2019), o artista reúne grandes telas para representar um conjunto de circunstâncias que o assombram. Sobre fundo metalizado e ladeadas por dois pilares com cabeças de índios decepadas, além da figura imponente de Carlos Marighella (ativista político e escritor brasileiro morto pela Ditadura Militar em 1969), encontram-se camadas de imagens sobre momentos circunstanciais ligados ao extermínio e problemáticas enfrentadas pelas minorias.” [Disponível em http://www.infoartsp.com.br/agenda/necrobrasiliana/]
² USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de Filosofia, 2018 – Tese de doutorado acessível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-25022019-112250/pt-br.php
³ A referência principal aqui é SAFATLE, V. A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso. São Paulo. 2016. n. 36., p. 150-191.
⁴ Sobretudo em SAFATLE, V. O circuito dos afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
⁵ Parte dos resultados dessas pesquisas se encontram consolidades em SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018.
⁶ Para uma discussão sobre as relações entre mal-estar, sofrimento e sintoma, ver: SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018; DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017.
⁷ Para uma profunda discussão sobre a ampliação do diagnóstico clínico para outras esferas da vida social, transformando-se em uma diagnostica, ver: DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017.
⁸ NICHANIAN, M. Catastrophic mourning. In: ENG, D. L; KAZANJIAN, D. (ed.). Loss: the politics of mourning. Berkeley: University of California, 2003. p. 99 – 124.
Cirlana Rodrigues (Haeresis Associação de Psicanálise)
Liberdade e determinação convergem na relação do sujeito de não ceder de seu desejo (Lacan, 1959-1960). Proposição que busco em Édipo em Colono e sua transformação da determinação simbólica cerzida pela culpa para uma saída não determinada em seu destino trágico; em Antígona, onde o trágico de seu destino advindo do incesto é vertido em tragédia, na cadeia de significantes encenada diante de todos; e, em Jacques Lacan no seminário sobre a ética (1959/1960), colocando no centro da experiência analítica o para além do princípio do prazer, o gozo, recusando a promessa do utilitarismo técnico a serviço de um bem comum. Assim, a psicanálise sustenta na polis o direito ao desejo. Direito ao direito de desejar em tempos de interrupção da cadeia significante, interrupção da historicidade de cada um, como nos sonhos no terceiro Reich (Beradt, 2017): ao repousar o corpo, aquele que sonha vigia os significantes que podem escapar, pois os sonhos, reveladores dos desejos, são proibidos.
Édipo miserável e degradado entra em Colono arrastado por Antígona, exuberante e leal. Está cansado, cego pela paixão ao saber e ao poder trilhado em terras proibidas, mas é um cego que vê. O velho Édipo assenta-se sob o sagrado das oliveiras, às sombras das muralhas de Atenas. Ele vai até o ponto do estrangeiro indesejável em Colono. Entra em Hades pelo ‘limiar do bronze”, pelas escadarias do brilho, interseção do absoluto silêncio entre vida e morte não habitado pelas palavras, seu destino proscrito, residência definitiva. O estrangeiro ainda não reconhecido como o rei invoca a polis em sua presença mutilada, “terrível de ver”, para ali permanecer, pedido ao mesmo tempo religioso e político que perturba as normas da comunidade. Nesse ponto, Édipo muda sua posição diante da lei que o condenou, mudança de perspectiva em relação aos seus crimes: antes ele não sabia, agora ele supõe saber. Édipo pagou, apresenta-se como aquele que porta no destino do herói a dívida cumprida, retribuída. Édipo se nomeia, no exílio, “executor por mão própria” de sua maldição (Fialho, p. 267, 1996), até então, “na ignorância, limitou-se, dentro dos parâmetros da ética de retaliação, a pagar ofensas recebidas”. Essa mudança é fundamental para o destino de sua linhagem: o carácter amoral do destino de Édipo se mantém inalterável diante da lei civilizatória do incesto. No entanto, Édipo saído da alienação por culpa, supõe que para além desse destino há ainda espaço para questionar sua posição: “Ora como posso eu ser mau por natureza?” Édipo não renega sua historicidade, inscreve o paradoxo do desejo defendendo e rejeitando os velhos crimes, ultrapassando aparências e conjunturas externas, “para chegar a uma verdadeira disposição interior do indivíduo” (Fialho, 1996, p. 39).
Édipo se afasta da casta masculina, a mal diz, afrontando a lei ática de que a sobrevivência familiar é responsabilidade dos homens. No espaço de sua morte, tem sua tardia, mas poderosa redenção, onde o passado que o determina e funda sua tragédia não o culpabiliza mais, onde seu nome e seu destino dão lugar a uma “dor de existir” (Lacan, 1958-1959), no limite da adversidade e do sofrimento. Ao maldizer os filhos e sua luta pelo poder, Édipo ensina sobre a diferença entre verdade e aparência: a verdade tem a ver com o absoluto que escapa à palavra. Nesse espaço de sepulcro, da verdade, Édipo e sua lei ainda determinam o bem para quem lhe acolher e o mal para quem o repudiar. O desejado túmulo, pelo qual suplica durante toda a peça, lhe será concedido se ele calar-se, silenciar-se. O Outro, ao conceder o bem comum quer o silêncio, para confirmar sua palavra. O que fará Édipo rejeitar, com violência e pela última vez, toda a carga de culpa e participação ativa e consciente nessa trama antinatural que o marcou e de que agora luta por se libertar, sustentando, até o final, a força da palavra, mesmo no encontro com o inefável pelo silêncio sagrado que pactua com Teseu. Para além do sistema das normas da cidade, ultrapassou o limiar do sacrilégio com o sagrado e lá regenerou, no laço com a cidade e seu governante, seu destino de parricida incestuoso, e é acolhido pelos deuses, acima da aparência da forma ou das normas instituídas, numa polis baseada em princípios humanos como a compaixão e o sagrado.
O cego domina agora a cena, nessa esmagadora convergência, simultaneamente evidente e misteriosa, dos deuses e do seu destino (Fialho, 1996), onde sua posição é de uma autoridade majestosa que o vai distanciando dos que o acompanham, na plenitude de uma visão interior que é adesão ao divino, adesão a sua excepcionalidade, modelada pelo sofrimento e possibilitada pela compaixão e amizade de Teseu que foi capaz de ver mais fundo no homem e no incompreensível do seu destino (Fialho, 1996). Édipo diz: “Quando já nada sou é então que me torno um homem”. Édipo é despojado dos velhos farrapos da sua existência e revestido de novas roupagens. Com elas passa o limiar fascinante, onde vida e morte se tocam, recolhido agora em harmonia no mistério de um novo seio materno, um túmulo oculto, não divulgado, não localizável, porém, que está em qualquer lugar do bosque em Colono como presença em ausência que determina o cotidiano da polis: o segredo a ser transmitido, uma democracia pautada no sagrado [de cada um], no sofrimento e nos valores como bens comuns. Édipo, recolhido ao mais íntimo de seu túmulo, converge os antagônicos nesse limiar entre vida e morte, sua herança em Colono é a política. Dessa posição, Antígona, até então mediadora, regressa a Tebas, lugar onde a saga de seu sangue teve início, lugar da barbárie, do desrespeito com o humano e com o político.
Se com Édipo a tragédia concerne a uma experiência singular, Antígona em Tebas concerne a uma experiência trágica coletiva, pois Creonte, o tirano piedoso e medroso, vai contra as leis não apenas dos deuses, mas contra as leis da cidade, em nome da imposição vaidosa de suas leis. Todo acontecimento na esfera pública é uma experiência estética (aos moldes de Walter Benjamin/1936), de percepção, de reflexão e visão interior, vitais para a cidade. Antígona é capaz de refletir a partir da sua experiência trágica e se repensar e revigorar a partir do que a fundamenta e lhe dá natureza, despojando-se, como Édipo no instante supremo, dos farrapos do sofrimento e dos valores gastos e degradados de todas as demagogias e traições, para renascer de si mesma, qual o “rebento que a si mesmo se refaz”.
Lacan (1959-1960) fica fascinado com o brilho de Antígona no caminho que ela faz na cena trágica na direção do que deseja, onde não vemos seu ato final, só depois. Antígona, em seu nome, arrasta e transpõe, coloca-se para além do limite razoável de sua existência na relação com seu desejo. Afronta a lei do tirano: ao cobrir o corpo do irmão de pó, esconde e revela, ao mesmo tempo, seu desejo, o faz de modo deliberado na cidade. Se em Antígona há esse corpo entre a lei do desejo e a lei do tirano, fora da cena de Sófocles há o sujeito e seu sintoma enlaçando o privado e o público, advindo entre isso e aquilo onde o ato que instaura outra direção a seu desejo não é à vista de todos, mas também não é às escondidas.
Antígona é determinada, frase paradoxal. Chega em Tebas para não ceder de seu desejo, nessa polis injusta há que responder pela posição de reaver o que não pode ser reencontrado. Essa é a análise como experiência trágica e não como ordenação da vida. Como tragédia, essa experiência é ato em cena, criação com o que padece do significante – o rejeitado no simbólico retorna no real da transferência analítica, retorna a Tebas. O sujeito encena seu contraditório: o desejo como aquilo que supõe saber e o desejo como aquilo do qual que se defende, do qual se culpa. Lacan (1959/1960) mostra que no interior da tragédia de Sófocles a heroína faz a escolha absoluta não motivada pelo bem. A função social de Antígona é não se submeter ao absurdo da lei que Creonte representa, é revoltar-se em nome do direito que lhe foi dado pela filiação: direito ao desejo. Na tragédia, Lacan exalta a posição de Antígona na vida: transgredindo a determinação da jurisprudência do bem comum, édestinada a vir em auxílio dos mortos, dos excluídos do campo dos direitos.
Da transmissão que Édipo faz das vicissitudes do destino, o destino trágico de Antígona se encontra com a liberdade trágica (liberté tragique, Lacan, 29/06/1960), liberdade como ato encenado na esfera pública, onde o sujeito é livre na medida em que não cede de seu desejo. Antígona de nada mais é culpada, ser a mulher tebana ideal não lhe satisfaz, decide por vontade própria seguir o que quer em uma cidade feita de homens: enterrar o irmão. Entra viva em Tebas, anunciando que sua hora chegou, a hora de lidar com seu desejo chegou – fim de uma linhagem que se encerra na tumba. Essa vontade não é narcísica, está no limite de seu desejo e do ultraje – a beleza de Antígona é ser liberta da imagem ideal de mulher o que impõe no Outro o reconhecimento em relação a seu desejo, reconhecimento que lhe dá uma posição na esfera pública. Antígona nos mostra a necessária e permanente batalha por esse direito/por todos os direitos: ela quer ser reconhecida na polis – que o tirano não lhe retire os direitos.
A beleza de Antígona traz a bifurcação do desejo: o belo que desperta o desejo, como a última barreira ante o real, a pulsão de morte que convida ao gozo. Despertar do desejo que desanima o Outro, na medida da recusa de Antígona em submeter-se à lei do Outro. A paixão pelo saber herdada do pai, é posta em ato: sabe o que quer e faz o trilhamento necessário nessa direção, no “limite suportável da vida humana” – definição de gozo que o significante Antígona comporta [Atè]: “Queres sepultá-lo contra as determinações da cidade?” (Sófocles, linha 44, p. 09), lhe perguntam. A dor de existir, protagonizada por Édipo, é em Antígona uma margem da dor, onde pelo gemido lascinante anuncia o gozo por vir, limite que se transposto não tem volta. Responder à questão de Lacan “Agiste em conformidade com teu desejo?” (Avez-vous agi conformément au désir qui vous habite? – 06/07/1960) não tem volta. A posição de Antígona é a imagem fascinante, pois é o ponto de vista do desejo, seu brilho diante do real, para além dos diálogos, da família, da pátria e da moral, sem temor e sem piedade (Lacan, 1959/1960). Esse gesto ético e não qualificado se realiza no entre-duas-mortes, na suspensão da temporalidade onde a posição do ser não é metafórica, é sem conciliação e encerra o maldizer do pai, seu destino. O gesto de Antígona faz valer seu direito ao desejo, inscreve-o como bem comum, mas um bem sem objeto, intransitivado, no campo da psicanálise.
Não há destino para o sujeito, as pulsões padecem de destinos, resistem. Há o inconsciente com seu furo do saber. Freud substituiu o destino e as leis dos deuses pelo inconsciente. Seu ato libertário foi conceder a palavra aos pacientes, escutando-os, quando nenhum médico o fazia – pois isso colocaria em risco a crença no saber, e descobre leis muito particulares e singulares do psiquismo. Na esfera pública, o sujeito se escreve como cadeia de significantes. Escrita ofendida pela história dos homens – a relação do homem com o desejo encontra recusas, opressões, repressões, apagamentos, traumas. O destino trágico é uma advertência estrutural, lembrando Lacan (1959/1960) sobre a tragédia.
Checcia (2012) destaca a confluência do vocabulário da psicanálise com o vocabulário da política e da guerra como os significantes poder, liberdade, conflito, resistência. A liberdade aparece no núcleo dos fundamentos da psicanálise. A associação livre como uma oferta de liberdade restrita: para o psicanalista, amplia as intervenções, mas o coloca na posição de ouvinte restringindo sua ação à atenção flutuante que o enlaça à fala do analisante. Este se vê diante do paradoxo de poder falar o que quiser, pois o inconsciente tem seus mecanismos de repressão e recalque. Ainda, o sujeito mente de modo deliberado, e se defende dessa liberdade – o inconsciente é que decide o que fazer com a liberdade de falar o que quiser: “é que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar”, cito Lacan (1958/1959 – p. 647), pois isso impõe transpor o fantasma do Outro causa do desejo, e transgredir é arriscar não ter/ser o objeto de desejo.
A mudança de posição de Édipo e Antígona mostra a via do desejo apresentada por Lacan sobre alienação e separação, onde diz:
[…] nossa técnica usa frequentemente, como se a coisa corresse por si mesma, da expressão liberar alguma coisa – não é inútil observar que é aí que joga a questão desse termo que bem merece a qualificação de fantasma – a liberdade. O de que o sujeito tem que se Iibertar é do efeito afanísico do significante binário e, se olharmos de perto, veremos que, efetivamente, não é de outra coisa que se trata na função da liberdade.
(Lacan, 03/06/1964)
Sair da alienação, onde a liberdade como fantasma (em francês, o termo comporta desejo) é uma ficção que produzimos para conciliar o prazer com a lei, o contraditório entre o sujeito e o Outro. Como fantasma, atravessa o espelho e a lei do Outro, por isso assombra. A liberdade entra como o gesto de Antígona, de livramento da sina da alienação ao significante que vem do Outro, onde a separação – o “para além”, o “trans” – é o gesto de não se submeter às leis do Outro naquilo que recusa nosso direito ao desejo: é o sujeito de A barrado. O real é dito pelo analisante nas vias do desejo, da fala como ato, pela demanda que implica não abrir mão do Outro sobre o desejo, mas demanda sem objeto definido. E este pode ser o fantasma que tira a liberdade, submete a junção sem dialética, como pode ser o do quê na afânise de sentidos, há a separação. O mal-estar e os sintomas são efeitos do horror do sujeito diante do desaparecimento do desejo, por isso a liberdade ou a vida, a liberdade ou a morte. Diante disso, ou o sujeito se mantem na alienação, ou essa afânise ganha status de vazio, passa a ser topos de inscrição de um fazer com esse desejo do Outro, transpor esse vão de sentidos é saída da alienação, a liberdade possível. O sujeito reconhece que o desejo é desejo do Outro – herança simbólica, o que restringe sua liberdade ideal é o que o autoriza a ir além, pois o que se transmite é a divisão do sujeito – a face cortante de Antígona que Jacques Lacan lê no final dos versos da tragédia de Sófocles.
O significante “liberdade” (liberté) circula no seminário de 1964 sobre os fundamentos da psicanálise, quando da excomunhão de Lacan da IPA: liberdade, política e clínica não são dissonantes. Se a dinâmica narcísica do fascismo foi lida por Lacan na teoria do estádio do espelho no ano de 1936, as operações de alienação, afânise e separação, como determinantes do sujeito, merecem ser lidas como resposta de Lacan a sua posição e relação com as leis da psicanálise, aos modos de regulação da experiência analítica.
Nestes tempos de política, onde a anatomia é o destino, o psicanalista é chamado a se posicionar na esfera pública, dar a ver o brilho de seu gesto na relação com seu desejo em ser analista, sua ética. O fato de que regimes totalitários apagam as línguas, apagam individualidades e subjetividades, destituem sujeitos de seus direitos de fala e de todos os outros direitos que a polis deveria garantir como bem comum não parece, para muitos, colocar em risco a experiência analítica. Ou perder o direito a falar (de si) é um risco apenas na fantasia de muitos psicanalistas, ou o gesto inaugural de Freud precisará ser repetido diariamente, valendo o limite da relação do analista com o desejo. Expressões do tipo “nazistas foram analisados por psicanalistas judeus” nos apontam o tamanho da dimensão narcísica e de alienação que estamos imersos, onde a não atualização da cadeia significante nos coloca à mercê da opressão, de um Creonte onde os furos na imagem são enganosos, onde a margem da dor dá lugar a uma unidade que nos é vendida e a compramos sabendo que estamos nos enganando, anestesiados no gozo imaginário.
A tarefa do sujeito na esfera pública é não apenas lutar por seu direito ao desejo [lutar por seus direitos na lei da cidade e dos deuses], mas lutar por seu direito ao direito de desejar, pois o tirano, agora, não lhe oferece outros direitos, ele determina que não há direitos, há deveres morais. Na clínica, o sintoma nos mostra a posição do sujeito diante do real: entre isso e aquilo, o sintoma enlaça, na esfera pública, o particular do divã e o público, a polis é o espaço do fazer, do gesto a ser vislumbrado. A tradição psicanalítica diz que o inconsciente só há na análise – ali no tempo lógico da transferência – no máximo reconhece-se que aquele sujeito que advém no discurso da análise circula no mundo em suas formas sociais – daí a transformação social possível com a qual se meteria a psicanálise. Temos a oportunidade – no privilégio do divã, na praça, na rua – de escutar esse sujeito borromeanamente circulando no mundo pelas vias de seu sintoma – em experiências de mais ou de menos sofrimento. Da ética da psicanálise é isso que merece ser dito: o que esse sujeito sustenta de seu desejo na esfera pública, de suas escolhas, de suas ações. Com Antígona e com Édipo em Colono vemos que o direito ao desejo é uma batalha permanente no sujeito, porque ser transmitido pelo pai, pela lei simbólica, não é garantia: o direito ao desejo não está mais dado nem mesmo no mais íntimo do divã, e menos ainda na esfera pública, na polis como espaço privilegiado de experiência estética para os sujeitos que a habitam e não apenas como espaço de vivências distraídas, rotineiras e cotidianas. Como lugar do acontecimento trágico de cada um, com o fazer de cada um, onde os nascimentos e as mortes se cruzam incessantemente, é contraponto a uma polis corrompida pelos maus governantes, agredida permanentemente em seu solo.
Lacan, como mencionei, toma a liberdade como um fantasma e como tal para o inconsciente é inalcançável e sabemos como regimes econômicos e políticos convencem os indivíduos de que ser livre é realizar suas fantasias, vendem suas fantasias e a liberdade passa a ser o direito de comprar o que deseja. Na contramão desse mercado, o limiar da ética da análise é o que o paciente se decide por fazer com sua condição de desejo, não ceder dessa condição de falta a ser, não importando o que fazer: essa ética não se confunde com o direito ao consumo. E, o Outro bem sabe como convencer o sujeito de que “a palavra é perigosa”, frase fantasmática dita no limite articulável de real e simbólico por supor e organizar a verdade da alienação anunciada. Na alienação, a tática é inscrever nos sujeitos o calar-se, tornar o vacilo um medo, onde falar de modo distinto é proibido. A palavra é proibida por ser perigosa: não há laços abusivos e de restrição de direitos e liberdade, que não se inicie nesse fantasma da “palavra é perigosa”, antes sujeitos são calados, depois submetidos e submissos, abusados, torturados [a tortura não é fazer falar, a tortura é fazer calar aqueles da revolta]. Associar livre é perigoso e há que ser proibido. A psicanálise continua subversiva e necessária (e não utilitária), e precisamos repetir o gesto contraditório de Freud de “deixar falar”, nosso gesto político na esfera pública em não ceder do direito de desejar, conforme Lacan (1959/1960) sobre a ética na psicanálise.
BERADT, C. Sonhos no terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. SP: Três Estrelas, ed. 2017.
FIALHO, M. do C. Édipo em colono: o testamento poético de Sófocles. HVMANITAS — Vol. XLVIII (1996) / p. 29-60. https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas48/04_Fialho.pdf. Acessado em 15 de novembro de 2018.
CHECCIA, M. A. Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia. Pós-graduação/USP.2012. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-05072012-112606/pt-br.php.365 p.
LACAN, J. Seminário, livro 6. O desejo (1958/1959) [http://staferla.free.fr/].
______. Seminário, livro 7. A ética (1959/1960) [http://staferla.free.fr/].
______. Seminário, livro 11. Os fundamentos (1964) [http://staferla.free.fr/]..
______. Direção de tratamento e seus princípios de poder (1958/1998). Escritos.
SÓFOCLES.A trilogia tebana – Édipo Rei / Édipo em Colono / Antígona. Tradução do grego, introdução e notas de MÁRIO DA GAMA KURY. 15ª reimpressão. Jorge Zahar Editor.
A escrita haeresie (R S I)
Coordenadora: Aline Accioly Sieiro
Membro – Associado Hæresis
alinesieiro@gmail.com
No primeiro ano do espaço sobre escritas, percorremos um caminho que teve como norte “fazer traço no engodo de nossa intenção de escrever, torná-la uma experiência de subjetivação buscando investigar o “que significa escrever”: passar a outra coisa, passar pelo escrito” (Souza, 2018, Hæresis Associação de Psicanálise). Estudamos a estrutura das escritas apoiadas na consistência de palavras, em suas tendências de satisfação pulsional via recobrimento imaginário. A escrita psíquica, ou melhor, a escrita do trajeto pulsional de um sujeito é particular, é a “ativação dos traços”(Freud, 1977, p. 589), mas esse traço não é imaginário, não tem equivalência com a imagem.
Sobre as escritas a partir de memórias, entendemos que as escritas de recordações de infância tem seu lugar na psicanálise, mas existe um ponto de passagem dessa escrita para outra escrita. “Não está de modo algum definido que, com a psicanálise, vai se conseguir escrever. Para falar propriamente, isso supõe uma investigação a proposito do que significa escrever para cada um” (Lacan, 1975-76/2005, p.143). Aportamos em uma busca do traço como suporte mínimo do sujeito, traço do escritor, daquele que escreve elidido.
Assim, apresentamos a proposta do Espaço sobre Escritas para 2019, partindo das considerações lacanianas, especialmente a partir dos anos setenta, tempo de formalização da topologia borromena, ensejando que algo do impossível se demonstrasse. A aposta na topologia implica a elaboração de um espaço a partir da noção de vizinhança, suporte de letras, sem imagem, em torno do nada. “Essas letras que fundam a topologia supõe senão o real” (Lacan, sem XXI, p. 107)
A escrita de haeresie, homofonia em francês para as letrinhas RSI – Real, Simbólico e Imaginário, testemunha a ação de uma escolha (Lacan, Sem XXIII, p. 16), ela própria a sulcagem de um trajeto pulsional, “rasura pura de nenhum traço anterior” (Lacan, Lituraterra, p.), uma rasura que se escreve como traço, mas não cessa de não se ler. “Só a escrita faz três”. (sem 21 p. 93)
Se a escrita constitui ao mesmo tempo que revela o sujeito, nosso objetivo para esse ano é estudar os caminhos por onde Lacan propôs a escrita como ato de eRRancia do sujeito, enodação de um pedido, uma recusa e uma oferta (“Peço que recuses o que te ofereço porque não é isso”), onde o isso é tocado em pedaços, “pedaços de real”. (sem 23)
Ao longo do ano, vamos trabalhar com a leitura de textos sobre a temática e com a produção escrita dos participantes do espaço. Essa produção escrita pode ser sobre qualquer área ou temática que leva em conta a psicanálise lacaniana, pois o que buscamos é colocar em ação o desafio de debruçar-se sobre o ato de escrita, para além de sua materialidade e/ou gênero textual, em sua experiência pulsional.
Percurso proposto:
Datas e horários
Serão dez encontros durante o ano de 2019, realizados uma vez por mês, com três horas de duração, aos sábados a tarde, conforme datas abaixo:
Marco – 16
Abril – 13
Maio – 11
Junho – 08
Julho – 06
Agosto – 03
Setembro – 14
Outubro – 05
Novembro – 09
Dezembro – 07
Cossich, Tai. (2017) A espetacular clínica da monga apresenta Caso Original
Referências Bibliográficas
Rinaldi, D. (2006). Escrita e invenção.
Assenço, R. & Vorcaro, A. (2018). Escrevendo o indizível.
Allouch, J. (1995) Letra a Letra.
Freud, S. (1900). A interpretação dos sonhos.
Lacan, J. (1966-67). O Seminário, Livro 14 – A Lógica da Fantasia.
Lacan, J. (1972-73). O Seminário, Livro 20 – Mais, Ainda.
Lacan, J. (1974-75). O Seminário, Livro 21 – Os não tolos erram.
Lacan, J. (1975-76). O Seminário, Livro 23 – O sinthoma.
Souza, C. R. (2018) Escrita, ato de invenção em torno do real.
Proponente: Cirlana Rodrigues (Membro-Associado Haeresis)
Em Linguística, “conceito” é ideia abstrata compreendida nos vocábulos de uma língua, construída para caracterizar as qualidades de uma classe, de seres ou de entidades imateriais. Jacques Lacan, ao longo de Seminários e Escritos, trabalhou em torno de formulações lógicas e complexas sobre os fundamentos da Psicanálise sem caracterizar e/ou qualificar esses fundamentos a partir de reflexões cognitivas: tratava-se, para o psicanalista, de colocar na linguagem os arranjos da clínica. Assim, “conceito”, em psicanálise, merece ser lido como “lógica”, como o encadeamento dos significantes que dizem sobre a experiência analítica, suas transformações e atualizações ao longo da cadeia epistemológica da psicanálise. Não haveria uma definição totalizante neste ou naquele seminário, neste ou naquele escrito, na obra de Jacques Lacan, ou um recorte que abarcasse todos os aspectos de determinado conceito e nem suas possibilidades de emprego dentro da experiência analítica. Diante disso, a proposta é dialogar sobre a gênese e as transformações de conceitos da psicanálise de Jacques Lacan a cada reunião partindo de recortes discursivos. Esse recorte não é sem consequências e não é sem riscos para a proposição onde dois aspectos dão a direção: 1) a experiência da psicanálise não é uma experiência intelectual, mas uma experiência clínica onde cada conceito é construído para localizar na epistemologia do campo discursivo da psicanálise a experiência de análise respondendo às implicações de haver inconsciente; falar em ‘conceitos e noções’ , em psicanálise, é falar sobre o que se passa nas análises; 2) será fundamental para as elaborações em torno do que se propõe, as interpolações dos participantes sobre cada conceito.
As reuniões serão mensais, com duração de três horas, aos sábados, das 13:30h às 16:30h. Valor: 120,00. Será sugerido, antecipadamente, a leitura do recorte a ser trabalhado. Solicitação de participação será apreciada pela proponente das Reuniões. Entrar em contato pelo e-mail cirlanarodrigues@gmail.com
Cronograma – Data – Conceito
23 de Fevereiro de 2019 – Estádio do Espelho
23 de Março de 2019 – Imaginário
20 de Abril de 2019 – Linguagem e simbólico
25 de Maio de 2019 – Sujeito / Outro
22 de Junho de 2019 – Tempo lógico
20 de Julho de 2019 – Dialética: desejo e demanda
24 de Agosto de 2019 – Falo / Nome-do-pai
21 de Setembro de 2019 – Real
26 de Outubro de 2019 – Alienação, afânise e separação
23 de Novembro de 2019 – Objeto a
14 de Dezembro de 2019 – Sexuação
Espaço Haeresis sobre crianças e adolescentes 2019 – O brincar, o desenho e o diálogo: das invenções da criança às in(ter)venções do analista / Coordenadora do Espaço: Cirlana Rodrigues (Membro-Associado Haeresis)
O Espaço Haeresis sobre crianças e adolescentes irá trabalhar em torno das ‘linguagens’ da criança na experiência analítica. A proposta é colocar na cena clínica três possibilidades de intervenções na clínica psicanalítica com a criança a partir das invenções (si) que a criança nos oferece: o brincar, o desenho e o diálogo. O trabalho será feito em torno de noções não psicologizantes, não pedagógicas e não biologizantes desses elementos que convergem com fundamentos da clínica psicanalítica com a criança e a constituição do sujeito. Recortes da experiência clínica com crianças serão enlaçados às proposições de Sigmund Freud, Jacques Lacan, Edith Derdik, Cláudia Lemos, Angela Vorcaro. Ainda, iremos a autores como Donold Winnicott, Melanie Klein, Françoise Dolto, Julieta Jerusalinsky na extensão dessas invenções da criança na clínica: suas soluções para seus impasses constitutivos, suas modalidades de sofrimento que atravessam sua condição de vir-a-ser sujeito do desejo, seus arranjos e desarranjos lógicos e topológicos frente a seu sintoma, frente a ser sintoma.
Os encontros serão mensais, com duração de três horas, aos sábados, das 13:30h às 16:30h. Valor: 120,00. Solicitação de participação será apreciada pela coordenadora do Espaço. Entrar em contato pelo e-mail Cirlanarodrigues@gmail.com
Cronograma-Data-Tema:
30/03/ 2019 – Considerações sobre a Clínica Psicanalítica com a criança
27/04/ 2019 – O brincar
18/05/2019 – O brincar
29/06/ 2019 – O desenho
17/08/ 2019 – O desenho
28/ 09/ 2019 – O diálogo
19/10/ 2019 – O diálogo
30/11/ 2019 – Das invenções da criança às in(ter)venções do analista
Reuniões 2019 – A Clínica e a Psicose na Psicanálise de Jacques Lacan
EM SÃO PAULO
Proponente: Maria Tereza Perez
(Membro-associado Haeresis)
Em alinhamento com a proposta de “Reuniões”, como um dos dispositivos para fazer operar a transmissão da Psicanálise, a Haeresis, também ressalta, neste ano, o esclarecimento da noção de conceito, enquanto aquilo que deve ser lido como lógica. Lacan, ao longo de sua trajetória e ensino, se dedicou a inaugurar e reinaugurar, na séria continuidade da escrita e pesquisa em Psicanálise, conceitos sobre a clínica psicanalítica ante a psicose.
Se Freud já acena com estratégias de solução para a psicose, especialmente através do conceito de delírio, Lacan empreende com coragem e fôlego para fundar as lógicas que imprimem o campo da psicose na história, diante daquele que se ocupa de psicanalisar, ou seja, de subverter o dito classificatório, de desmantelar a ciência e a modernidade enquanto mandantes do gozo desregrado.
De “A Bolsa ou a Vida” ao universo cósmico Joyceano em Finnegans Wake, Lacan empreende uma revisão da estrutura da linguagem para discutir o inconsciente e gozo através de muita conceituação-lógica. Os nós, real em topologia borromeana, dão a direção e o tom dos des-caminhos da clínica psicanalítica, em seus encontros com os gênios, nas amarrações da vida.
Diante do extenso exercício lacaniano, o objetivo é se debruçar e conversar sobre a como cada conceito foi tomando corpo e se atualizando conforme a clínica promovia matéria. Nesse sentido, será através dos recortes e de relatos clínicos, bem como das necessárias considerações dos participantes que a atividade poderá acontecer.
As reuniões serão mensais, com duração de três horas, às terças, das 19:00h às 22:00h Investimento: 120,00. Será sugerido, antecipadamente, a leitura do recorte textual a ser trabalhado. Solicitação de participação será apreciada pela proponente das Reuniões. Entrar em contato pelo e-mail maitepsico4@gmail.com
Cronograma
Datas Temática
26/02 Abordagem freudiana das psicoses (perda de realidade e reconstrução do mundo)
26/03 Abordagem Lacaniana das soluções nas psicoses: desencadeamento e estabilização
23/04 A Linguagem, estrutura e mais-além
28/05 Mais-além: Lalíngua, letra, escrita
25/06 Percurso paradigmático do Gozo em Lacan
23/07 Foraclusão, do Nome-do-pai aos Nomes-do pai
27/08 O que temos a enfrentar com a topologia (NÓS)
24/09 Suplência e estabilização? Metáfora/Ato/Obra.
22/10 O autor e sua obra: Joyce, Mutarelli, Arthur Bispo do Rosário. Sujeito e Savoir-fare.
26/11 O autor e sua obra: Joyce, Mutarelli, Arthur Bispo do Rosário. Sujeito e Savoir-fare.
Espaço Hæresis de Psicanálise com crianças e adolescentes: Da Ética de Françoise Dolto aos Autismo(s)
Coordenação: Cirlana Rodrigues
Em 2017, inauguramos o Espaço Hæresis de Psicanálise com crianças e adolescentes trabalhando com a Atualidade (ou não) da clínica de Françoise Dolto em convergência com os fundamentos da psicanálise de Jacques Lacan. Como todo campo epistemológico, o trabalho da psicanalista francesa se firmou não apenas pela importância de suas noções e técnicas, mas também pelo estabelecimento de uma ética na clínica psicanalítica com crianças e adolescentes. Da importância, destaco alguns pontos: a noção de “imagem inconsciente do corpo”; os fundamentos para uma clínica psicossomática nos mostram que à guisa dos sintomas que apresentam uma criança e um adolescente impõe-se a leitura do enodamento corpo e linguagem; a noção de castração edipiana em Dolto merece ser lida para além das limitações da teoria do desenvolvimento psicossexual para o sujeito contemporâneo, mas lida como a distância inscrita pelo simbólico entre o sujeito e o objeto causa de seu desejo – entrada da linguagem entre o pequeno e sua imediata satisfação que franqueia seu percurso de subjetivação, de tornar-se sujeito do desejo; a direção de tratamento que se estabelece a partir da fala da criança e do adolescente e pela imprescindível escuta da estrutura familiar. Sobre o estabelecimento de uma ética como direção de tratamento, Françoise Dolto tornou sua clínica com crianças e adolescentes uma experiência ética, de escolha do analista em reconhecer sujeitos, modo pelo qual se apresentava diante de uma criança e de seu sofrimento.
Para a psicanálise, a clínica com a criança e com o adolescente nos coloca a trabalho das construções e elaborações sobre essa clínica, na medida em que a infância como um percurso sempre colocará em questão todas as certezas de um suposto saber no campo psicanalítico. Dolto nos faz ver que esse trabalho não se realiza sem uma escolha pela escuta da criança e do adolescente, onde mesmo a interpretação só pode ser dita a partir dos ditos (e não-ditos) pelos pequenos sujeitos, reconhecendo que crianças e adolescentes se constituem enodando-se ao seu desejo.
Em tempos de controle da infância, de apagamento do corpo e da linguagem pela imaginária insistência em um organismo (um bebê e uma criança são um cérebro) e pelo controle social (todo adolescente é um infrator em potencial), estar com uma criança e com um adolescente é colocar a clínica a trabalho a partir desse encontro reconhecendo que eles são sujeitos (em constituição) de desejo e direitos, sendo preciso dar-lhes a fala, colocar seus ditos em circulação. Ainda, Françoise Dolto nos ensina algo mais urgente para nossos tempos, tempos esses em que todos falam (mesmo que na dimensão imaginária que a fala carrega): a dama francesa, na mesma escolha ética de Freud e Lacan, nos lembra que para que um sujeito possa advir é preciso que o outro o escute, ali onde tudo manca. Escuta apagada em nossos tempos, apagamento que é estratégia de controle implícita no “todos têm direito à fala”.
Diante da discussão clínica realizada no Espaço, as noções estudadas e os casos discutidos, a atualidade urgente de Françoise Dolto é mesmo esta: como psicanalistas, devemos escutar os sujeitos e, mais ainda, essa escuta é constitutiva em crianças e adolescentes, parte estrutural de seu percurso de subjetivação. Ao apostar que bebês, crianças e adolescentes falam, Dolto apostava em uma língua da criança, do bebê, em uma língua da infância a ser, pelo adulto/terapeuta, traduzida, tradução essa que comporta os rostos, os corpos, os sons, os movimentos, as personagens da vida, suas palavras, seus desenhos, seus afetos e a dinâmica pulsional de cada criança, de cada bebê, de cada adolescente. Já uma inversão interessante, de um adulto a ser capturado pela língua da criança e não apenas a criança a ser capturada pela língua transmitida como herança simbólica, como estrutura do inconsciente, pelo Outro: desde sempre, há algo na infância de resistência.
Nessa direção ética, de estar com a criança e com o adolescente, pela escuta de seus impasses, de seus chiados constitutivos, de suas lalações, de suas vocalizações, de seus enunciados, de seus ditos, de sua ascensão ao discurso, de seus desenhos, de suas montagens e de seu brincar, de sua sexualidade, de sua tomada da palavra, do silêncio de sua voz, o Espaço Hæresis de Psicanálise se mantém, para os trabalhos de 2018. E, o que foi exposto, será colocado a trabalho pelos Autismo(s). Signo contemporâneo do governo da infância, do apagamento da subjetividade, da intolerância da diversidade, os autismo(s) também colocam a clínica psicanalítica a trabalho e não apenas no sentido de responder aos questionamentos do tipo “a psicanálise não é tratamento com comprovação científica para o autismo”. Há uma provocação que cada criança e adolescente nas vias de seu autismo nos coloca como psicanalistas: se nosso trabalho ético é escutar sujeitos nos arremedos de seus desejos, como escutar aquele que não (nos) fala, não nos endereça a fala? Jacques Lacan insistirá que autistas falam (são sujeitos do desejo), nós é que não os escutamos. Ainda, Lacan nos lembra que escutar também forma uma palavra e o autista nos ensina isso.
O Espaço Hæresis de Psicanálise com crianças e adolescentes 2018 irá trabalhar em torno da clínica psicanalítica com os Autismo(s) e esse plural inscreve a aposta na dimensão topológica de uma condição subjetiva que foi enredada de modo enganoso sobe a égide do signo TEA (Transtorno do Espectro Autista): esse espectro não amplia o campo da diversidade de possibilidade de emergência de sintomas como quer a ciência (SOUZA, 2016), e menos ainda de sujeitos, esse espectro é fantasmagórico, um assombro que apaga sujeitos, apaga singularidades, um corvo.
Mantendo o modo de trabalho estabelecido, iremos circular tanto pela experiência teórica atualizada pela obra de Angela Vorcaro e Jean-Claude Maleval e instaurada no campo psicanalítico pela proposição do autismo como uma quarta estrutura subjetiva (e clínica, na medida em que essa estrutura pode apresentar-se como uma experiência de sofrimento particular), como pela experiência clínica de cada participante com crianças e/ou adolescentes nas vias de um autismo. O trabalho aqui proposto fará ressonância com a investigação em andamento no projeto de pós-doutorado (UFMG) “O que a Voz no autismo nos ensina sobre a afirmação da negação: uma quarta negativa? ”
Referências Bibliográficas
SOUZA, C. R. de. A amarração sinthomática nas vias de um autismo. Estilos da Clínica, Brasil, v. 21, n. 3, p. 599-617, dec. 2016. ISSN 1981-1624. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/estic/article/view/131167/127597>. Acesso em: 04 jan. 2018.
Dos encontros: Realizaremos encontros mensais, aos sábados, das 13:30 h às 16:30 h, no espaço da Hæresis Associação de Psicanálise, localizado à Rua Francisco Vicente Ferreira, 282 – Uberlândia(MG). Datas previstas: 17/03; 28/04; 26/05; 23/06; 18/08; 22/09; 06/10; 10/11.
Informações sobre valores e contato com responsável pelo Espaço, pelo e-mail: haeresispsicanalise@gmail.com
Vagas Limitadas.
Trabalho apresentado e publicado nos anais do Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e do Seminário de Poesia? Poesia, Filosofia e Imaginário, 2015, Uberlândia. Anais do Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e do Seminário de Poesia ? Poesia, Filosofia e Imaginário. Uberlândia: ILEEL, 2015, 2015. v. 1.
Cirlana Rodrigues de Souza
cirlanarodrigues@gmail.com
(GELP-Grupo de Estudos Linguagem e Psicanálise/ILEEL/UFU)
Resumo: No encontro entre poesia e cinema, é preciso ver onde, em um filme, algo corta e nos arrebata para um estado de suspensão de sentidos. A proposição é a de que a língua do cinema de poesia suposta pelo cineasta italiano Pasolini comportaria um enigma poético que nos colocaria arrebatados como a personagem literária Lol. V. Stein destacada por Lacan na homenagem à Marguerite Duras (1965). Trata-se de ser capturado nas imagens de um filme no lugar onde a incredulidade opera. Essa língua seria feita de letra, letra feita de traços que convergem com o inconsciente, a imagem como um traço que corta. Nessa língua está posto o estilo de autoria de um filme por comportar esse traço singular. O filme Irreversível (2002), do cineasta contemporâneo Gaspar Noé, cujo peso de todas as cenas e sequências é o próprio movimento da angústia marcado por cenas de sexo e violência, nos mostra isso. Mas, o arrebatamento se dá em suas cenas finais por comportarem toda a beleza do espaço, do tempo, do amor e de Alex, pois tanta beleza nos arrebata por ser o lugar do infortúnio, lugar onde convergem cinema e poesia.
Palavras-chave: Irreversível; Cinema; Poesia; Contemporâneo; Infortúnio; Psicanálise.
Introdução
A poesia arrebata. Seu arrebatamento é efeito da letra que nela opera, sem forjar sentidos, como afeto que faz corte inesperado em nossa harmonia.
O cinema, nas formas de um filme, pode nos causar esse afeto desde que seja ‘escrito’ em uma língua que ao cerzir uma história faz corte e nos arrebata para um estado de suspensão, inominável. Nessa direção, e conforme o argumento do grupo de trabalho para abordar o Cinema de Poesia, de Pier Paolo Pasolini, nossa proposição é a de que a língua escrita da ação cinematográfica inventada pelo cineasta italiano comportaria um efeito desse inominável, um enigma poético escrito nessa letra e que nos colocaria, como espectadores, arrebatados, tal como a personagem literária Lol. V. Stein destacada por Jacques Lacan em sua homenagem à Marguerite Duras [1965/2003] e, também, arrebatados pela escrita de Duras. Trata-se, desse modo, de ser capturado, ali nas imagens de um filme, em suas unidades básicas, em suas tomadas, justamente pelo lugar onde a incredulidade opera, onde a ordem do esperado e do compreendido falha, ponto em que somos lançados ao jouissance, o gozo de Santa Tereza D’Ávila (Lacan, 1972-1973/1983), pois a linguagem – a mesma que comporta uma língua que corta – deixa algo fora dela, fora do sentido: nem tudo faz sentido!
Nesses termos, a ‘língua de poesia’, conforme estabeleceu Pasolini, seria a língua feita de letra, letra feita de traços que convergem com o inconsciente (Lacan, 1965/2003), a imagem como um traço que corta e nesse corte algo de não realizado nos arrebata: ponto em que traço e inconsciente se tocam, causando nosso arrebatamento ante a tela de cinema. Nessa língua está posto o estilo de autoria de um filme: haveria o traço de estilo de Pasolini, de Tim Burton, de Lars Von Trier, e assim por diante, considerando que um filme é sempre estabelecido a partir do desejo de um sujeito em fazer filmes e que há uma ‘gramática’ desse sujeito que comporta esse traço singular, o que podemos ver na obra de cada um desses cineastas em que eles se propõem, ao estilo de cada um, a responder questões que vão sendo delineadas no percurso de construção de suas obras.
Luís Buñuel (1958/1991) propõe deixar as imagens, de um filme, fluírem com “liberdade” para se aproximar cinema e poesia: é essa fluência de imagens sem as amarras de sentidos pré-estabelecidos que nos levaria ao arrebatamento. Este não estaria limitado apenas a imagens em sequências surpreendentes, a viradas inesperadas no roteiro como em Menina de Ouro, ou a sequências insólitas e concretas como em Relatos Selvagens.
Levando isso em consideração, vamos ao filme Irreversível, de Gaspar Noé (Irréversible, 2002)[1], cujo peso de todas as cenas e sequências é o próprio movimento da angústia marcado por tomadas controversas e perturbadoras, por cenas de estupro e assassinato, de sexo e violência, em que o tempo é a personagem que vai nos mostrar que o pior está por vir e vem, de modo irreversível, irreparável, quando não esperamos.
O cineasta Gaspar Noé nos avisa sobre isso nas primeiras cenas do filme, cujo conteúdo é o incesto, ou seja, estamos, na sociedade ocidental contemporânea [e sua epidemia de incesto, conforme uma das personagens nos lembra] sem a lei fundamental de nossas relações civilizatórias e o sexo entre pai e filha pode ser apenas uma metáfora para nossa orla primitiva. O pai incestuoso, do filme de Noé, em seu corpo asqueroso e sob a obscuridade das cenas nos avisa (Figura 1): “O tempo destrói tudo.” Dizendo de outro modo, a personagem protagonista desse filme é impiedosa, cruel e o que nos causa é irreversível.
Figura 1. Cena de Irreversível.
Fonte: Gaspar Noé, 2002.
Em Irreversível, concluímos, na sua primeira metade, que a vida é feita de “esperma e sangue”, conforme a filosofia do cineasta, a vida é um horror de sexo, violência e vingança. Em Irreversível, é a beleza que ratifica esse infortúnio, pois conforme Lacan (1965/2008, p.204), a beleza nos arrebata precisamente por estar no “limiar do entre-duas-mortes”, o lugar do infortúnio, lugar onde confluem o cinema e a poesia e que iremos nos dar conta no final do filme, seu término, já que ele começa pelo final.
Assim como para a psicanálise, de Sigmund Freud e Jacques Lacan, a arte antecipa a matéria de nosso interesse (questões do inconsciente e de seu sujeito do desejo e de gozo), trabalhar em uma lógica subversiva de um nomeado cinema de poesia é partir do fato de que o cinema vai trabalhar com a matéria da poesia. Conforme um dos versos de Manuel de Barros (1990), no poema Matéria de Poesia, essa matéria é “O que é bom para o lixo é bom para poesia”, matéria do cineasta Gaspar Noé em sua obra, que em Irreversível toma forma de imagens que nos dizem do sexo gay como sadomasoquista concretizando seu ideal de um mundo de ‘sangue e esperma’, em que a boate Rectum é a própria lata de lixo, no ódio entre os sexos e entre os gêneros, na xenofobia, na lei clandestina e na lei do caos, na violência a todo custo, nas drogas, na promiscuidade em uma festa no apartamento burguês, na falácia de uma filosofia francesa e assim por diante. A matéria do cinema de poesia de Noé é o sexo, a violência e a vingança.
O cinema, contemporâneo e irreversível, de Gaspar Noé
Mais do que um conteúdo, trata-se do modo de fazer sobre essa matéria de poesia, modo esse que está traçado no estilo do diretor Gaspar Noé, estilo que faz um corte na lógica de sentidos triviais e nos lança no inesperado, nos arrebata justamente onde prevalece esse inesperado e visivelmente insuportável: algumas cenas são difíceis de ver.
Irreversível, em meio a todas às polêmicas de seu enredo, de suas sequências, de seu tempo cronológico, da voracidade de seus atores como resposta ao apelo de um diretor cujo desejo é ser “realista”, nos mostra que as imagens [frutos de um trabalho imaginário] comportam o que nomeamos de real em psicanálise: justamente aquilo que não se encobre com nomeações e com sentidos, em que os atos são resposta à angústia, aquilo que pode se estatelar em uma imagem. Isto não é pouca coisa quando lembramos que cinema é imagem, ou deveria apenas ser imagens, sequências de imagens para contar histórias com um propósito.
Em línguas [de cinema] como a de Gaspar Noé, o propósito é apenas uma justificativa que vai perdendo as vezes para a matéria de que se trata: o arrebatamento do espectador naquilo que ele julga ser possível evitar. Esse arrebatamento é afeto, efeito do inominável que para alguns é usar o cinema para provocar sensações, sensações que acabam por ter função de encobrir isso que nos afeta justamente por nos faltar nomes.
Gaspar Noé, com seu cinema, nos mostra que cinema não se presta apenas a ser objeto de análises e interpretações, mas é o lugar, um logos a mais, que nos permite compreender as questões constitutivas do sujeito do desejo. Irreversível nos mostra nossa irredutível condição de, como seres falantes, portanto desejantes [e gozantes], caminharmos para a morte e que isto é mesmo irreversível. Ele nos mostra isso da maneira mais crua possível e, mais ainda, que essa condição se situa no belo, na beleza [sempre imaginária] como lugar desse nosso infortúnio. Mérito do cinema como esse, pois com cinema corremos o risco cair no engodo de um imaginário consistente, forjado em uma estética previsível de imagens e de um final sempre feliz.
A obra de Gaspar Noé é uma apologia ao pessimismo e à violência, às drogas, à promiscuidade, a todo tipo de perversão humana? Alguém precisa falar disso. Interessa não perder de vista que ele lê nossa sociedade contemporânea, cada vez mais indistinta de um gozo tecnológico e cada vez mais primitiva em seus afetos, na direção que vai dando às suas relações. Por isso, Irreversível seria uma versão contemporânea de 2001, Uma Odisseia no espaço, de Stanley Kubrick (EUA, 1968), como vemos no cartaz desse filme na parede acima da cama da personagem Alex e no movimento da câmera em direção ao céu, para finalizar o filme: começamos pela primeva e terminamos nas luzes de uma orla organizada e feliz. Todavia, no filme de Noé, qualquer lado que se comece a contar a história, estamos diante de um horror.
Os filmes Gaspar Noé, são feitos e efeitos de nossa contemporaneidade: como poeta de imagens, ele é contemporâneo, na versão de Agamben (2008) sobre o que é ser contemporâneo:
O poeta – o contemporâneo – deve manter fixo o olhar em seu tempo. Mas o que vê quem vê o seu tempo? O sorriso demente do seu século […] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar em seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para aqueles que experimentam contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (AGAMBEN, 2008, p.62-63)
O cinema contemporâneo de Gaspar Noé interpela nosso tempo e nossa obscuridade. Agamben (2008) lembra, ainda, que essa obscuridade somente é possível mediante o reconhecimento das luzes de um tempo. Nos filmes de Gaspar Noé o que não falta é esse jogo luz e obscuro, como na escuridão vermelha [sangue] no túnel em que Alex é violentada, no exagero das luzes alucinógenas de Enter the void (2009) ou, ainda, no muito recente Love 3D (2015) com todas as cores e dimensões do sexo mortal e promíscuo possíveis de serem captadas por uma câmera, melhor dizendo, escrita por uma língua de cinema de modo visceral, que quer entrar no corpo, é invasiva e, assim, para além de agressiva, chega a ser violenta.
A experiência que arrebata em Irreversível
Irreversível é um filme escuro até por volta de seus cinquenta e cinco minutos, porém, é literalmente obscuro em sua totalidade e o quê se vê são trevas cujas sequências de imagens, em retrocesso, portanto, como todo contemporâneo, voltando às origens daquele drama, nos mostram um tempo urgente: tudo ali é urgente e intempestivo, até às cenas finais onde a luz arde na tela e vemos que é essa luz que permite, por contraste, toda a obscuridade do filme: na beleza das cenas finais, nas cores vivas da natureza e da pele da atriz Mônica Bellucci, o obscuro, lugar da metonímia desajustada e tensa do filme que chegou à metáfora de todo o sexo, a violência e vingança daquela narrativa: lugar da matéria de poesia nesse cinema.
Em Irreversível (2002), a cena de estupro, seguida do espancamento de Alex, que começa por volta dos 40 minutos, dura aproximadamente quinze minutos [uma eternidade em se tratando de cinema]. Essa cena chocou todo mundo, chocou o público do festival de Cannes que, ao deixar a sala de exibição do filme, não esperou pelo pior ainda, cedendo rapidamente ao engodo de uma cena, como se aquela cena fosse o mais obscuro do filme. Como ‘poesia’, esse filme não poderia ser óbvio e deixar condensado em uma única cena de sofrimento o lugar de nossa angústia. No filme, é o lugar da virada: Alex entra no túnel (Figura 2) e a escuridão, enquanto ela caminha, vai cedendo ao vermelho, esse túnel como lugar do infortúnio de Alex (e não o nosso ainda) que se depara com o inesperado e que parece ser inevitável.
Figura 2: Cena de Irreversível.
Fonte: Gaspar Noé, 2002.
Tênia, o estuprador, em seu ódio às mulheres, ratifica a condição da beleza de Alex como lugar de seu infortúnio. Ele diz a ela (Figura 3): “Sabia que você é muito gostosa para ser uma mulher? Sabia?” Ou, ainda, depois do estupro, justificando o espancamento (Figura 4): “Acha que pode tudo? Acha que pode tudo, só porque é bonita?”
Figura 3: Cena de Irreversível.
Fonte: Gaspar Noé, 2002.
Figura 4: Cena de Irreversível.
Fonte: Gaspar Noé, 2002.
Da extensa cena de estupro e espancamento (Figura 5), e Noé a faz longa para testar o que suportamos de tanta violência e como reagimos a essa violência, se destacam os urros de Alex, que não pode falar nos lembrando dos sons de dor de animais sendo abatidos, mas ela estende a mão em nossa direção [dos espectadores] e nada podemos fazer, a não ser assistir ou, então, sair da sala de cinema: seria a nossa passividade ou nossa covardia ante as questões da contemporaneidade? Nosso egoísmo velado em sentimentos de compaixão? Resta nos sair de cena, como o homem que entra no túnel e ao se deparar com o estupro recua, e dizer: “Coitada de Alex” ou, quem sabe, “Esse cineasta é um pervertido e isso não é cinema!”
Figura 5: Cena de Irreversível.
Fonte: Gaspar Noé, 2002.
Toda essa cena nos choca ante um realismo fatal, efeito do trabalho dos atores ali envolvidos e de seu diretor, mas, seria isso o arrebatamento da poesia? Em poesia, ao sermos tomados pelo nonsense, efeito do literal, não conseguimos sair da cena e essa letra nos deixa um traço, como um corte que vai sempre nos fazer perguntar, em um depois, o por quê, pois no tempo de sua ruptura ficamos sim ‘paralisados’ e, em caso de um filme, ficamos só olhando, não saímos da sala de exibição.
Esse arrebatamento nos surpreende pelo inesperado infortúnio das personagens de Vincent Cassel (Marcus) e Bellucci: é ao final de tudo, onde o horror do filme, a violência, a vingança, se justificariam é que se inscreve nosso arrebatamento, a luz faz ali um corte: a beleza como lugar do infortúnio, da personagem de Bellucci cujo infortúnio é ser bela, na personagem de Marcus de ter se apaixonado pelo belo e agora lhe resta restituir pelo ódio a beleza não mais imaculada. Na cena final, a sensual e provocativa personagem torna-se quase intocável, inviolável, intensificando a impotência dos homens diante do abuso da amada que torna ainda mais cruel o desfecho do filme.
O filme está sempre por nos enganar: nos enganamos com Pierre (Albert Duponel), ex-namorado de Alex sempre racional e filósofo [aos moldes da arrogante filosofia francesa] que acaba por se tornar o mais irracional de todos; também, nos engamos com Marcus, promíscuo, violento e sedutor, pois de fato foi um homem apaixonado; e nos enganamos com Alex que sempre foi imaculada, como uma mulher grávida e, finalmente, nos engamos que a maior violência de nosso tempo sejam os atos de violência, pois nossa maior violência é constatar que a direção em que caminhamos, pela vida, é irreversível, é o túnel vermelho.
No emaranhado de língua-imagem que vai montando, Noé nos submete ao filme e espera que nos percamos nele, porque sua intenção é “recriar uma espécie de sensibilidade ou estado de consciência alterado, por meio de armas cinematográficas – som, imagem, edição, o que for preciso”, ele destaca. Noé, como sujeito gozador, fará o que for preciso, em suas experiências estéticas, para nos lançar ao confronto com o imponderável. Coisa que faz desde Sozinho contra todos (1999), fundamentado em uma espécie de crueldade filosófica aliada a um pessimismo evidente. Essa filosofia é recitada pela boca de seu cruel açougueiro em A carne (1991), sem nos poupar como espectadores: “Por que, afinal, os filhos mostram amor pelos pais?”, “Pode um pai ser amante de sua filha?”, “O único sentido da vida é foder”, lamenta o açougueiro, em que sexo e violência, esta masculina e destrutiva, é a resposta do cineasta a um feminino que todos comportamos: é o ódio a nossa fatídica descompletude subjetiva.
Cinema e literatura
A relação do cinema de Gaspar Noé com o cinema de poesia de Pasolini é a proposta de ambos em fazer uma poética da realidade. Para Pasolini, a linguagem verbal e visual utilizadas nessa representação poética da realidade vão além de um formalismo estético homogeneizado. O cinema autoral de Gaspar Noé rompe com a estética, com a proposição temporal do cinema e esse retorno que se vê não é recordação de um passado, nessa estética é como o diretor vai nos prendendo dentro de um emaranhado, sem uma convenção narrativa, onde o protagonista [conforme Pasolini] é o próprio estilo do cineasta, o traço escrito em um filme. Assim, todo cineasta poeta tem uma letra que é só sua, não pode ser copiada: não se trata, desse modo, de contar uma história de trás pra frente, isso, desde Amnésia (Memento, 2001), de Christopher Nolan, deixou de ser novidade.
Pasolini, experimentador e inventor desse cinema de poesia, não fez de seus filmes modelos da realidade, representações dessa realidade. Sua realidade não é modelo, pois para ele o cinema “expressa a realidade pela realidade” (PASOLINI, 1982, p107), é realidade em si mesma, e caso exista mesmo uma língua de cinema ela não é homogênea: haveria uma estrutura universal dessa língua estabelecida justamente a partir da problematização dos recursos da língua(gem) cinematográfica. O cinema de poesia não é, assim, uma ilusão sobre a realidade.
Como é possível um cinema que não nos iluda sobre a vida? Brayner (2008) nos lembra de que para Pasolini não se trata de diálogo entre literatura e cinema, mas de outra ‘língua’ mesmo, ou seja, não é o modo de dizer sobre a realidade da literatura aplicada ao cinema. Possivelmente Pasolini, em seu cinema de poesia, buscasse o universal de seu tempo, mas que somente se apresenta na singularidade de cada leitor/espectador/cineasta, pois poesia não é apenas escrever poemas, é um gesto, um ato feito em língua para dar um basta na angústia de cada um.
Um filme que se permite ousar a partir de expressões subjetivas alegóricas e justapostas caracterizam esse cinema de poesia, de acordo com Nachery (2012):
Dentre as primeiras impressões do que vem a ser cinema de poesia, podemos citar o aspecto descontínuo e fragmentado no texto e na organização das imagens, os procedimentos alegóricos, os acontecimentos que existem além da experiência ordinária do tempo e do espaço, a força com que são colocadas as sensações, a acentuação da subjetividade, o caráter transcendente, a insubordinação dos elementos lançados na obra, o que vai além do que poderíamos chamar de incoerência, uma vez que o parâmetro não é a coerência em si. […]. (NANCHERY, 2012, p.03)
Sobre essa relação cinema e literatura, Pasolini, cuja língua literária não deu conta do que ele desejava dizer em seu tempo, esclarece que existe uma diferença essencial entre literatura e o cinema. Segundo ele:
Para que possam ser expressas por meio da literatura, as ideias devem ser representadas por símbolos convencionais, quer dizer, por letras e palavras. No cinema, a técnica é outra, a realidade é representada por signos vivos e significativos. Num filme, se quero mostrar esta árvore aqui, tenho que vir aqui com a câmera para filmar esta árvore. (PASOLINI, 1985, p.10/11)
Mas, de todo modo, a língua de cinema mata a coisa, coisa que o verbo faz também, pois é função de toda linguagem.
Silva (2007), ao investigar Pasolini e seu cinema como língua escrita da ação, nos esclarece que:
Diferente dos outros meios expressivos, o cinema “não evoca” a realidade como o faz a língua, seja ela literária ou fônica, muito menos a “copia” como o faz a pintura, e por fim como o teatro não a “mima”. O cinema, ao contrário desses outros meios expressivos, também não representa a realidade, uma vez que não constitui em si um meio, um instrumento do qual o sujeito apresenta aos espectadores o mundo externo e preexistente. O cinema “re-produz” a realidade: imagem e som, ou seja, ele a produz novamente, o espaço, o tempo, as relações; e para fazê-lo se serve da mesma realidade material e física: dos corpos, dos gestos, dos objetos e inclusive da temporalidade que pretende reproduzir. À diferença dos outros modos de expressão, que ao retraduzirem o mundo distanciam-se da linguagem das ações e de seu código original, o cinema tem a peculiaridade de reproduzi-lo fielmente. O cinema permite assim estar dentro da realidade sem nunca sair dela: permitindo expressá-la por meio dela própria os seus aspectos mais ocultos, sua dimensão “sagrada”, não naturalizada. (SILVA, 2007, p.32)
O arrebatamento
Na cena final, Alex está tomando sol, observando crianças em um ambiente bucólico, pueril e solar, enquanto a Terra gira (Figura 6).
Figura 6. Cena de Irreversível.
Fonte: Gaspar Noé, 2002.
Nesse fechamento do emaranhado de nó do filme de Gaspar Noé, a beleza da cena arrebatada, evocando toda beleza no filme, encarnada em Alex: “Arrebatadora é também a imagem que nos será imposta por essa figura de fenda, exilada das Coisas, em quem não se ousa tocar, mas que faz de nos sua presa” (LACAN, 1965/2003, p.198). Noé é arrebatador e nós os arrebatados seguindo os passos de Alex desde sua entrada no túnel até seu lançar-se ao céu, aos moldes de uma odisseia no espaço. Lembremos que Tênia ousou não somente tocar, mas destruir essa figura de nosso infortúnio.
Desde a cena no túnel, lugar de torção dessa língua de cinema que está voltando sobre si mesma, o emaranhado de nó dessa narrativa passa a ser desatado em nosso arrebatamento final e cuja violência nos salta aos nossos olhos nesse nó de língua. Contudo, é preciso ir além disso que nos salta aos olhos: nossa angústia nos salta no desfecho desse emaranhado, quando Noé coloca a nossa frente o infortúnio da beleza de Alex: as cenas finais são reluzentes, mas toda essa beleza já está manchada de sangue. Nossos olhos, de espectadores, chegam ao desfecho de Irreversível manchados de sangue, obscuros de vermelho. Importante lembrar que após o estupro e o espancamento, no tempo retrovertido do filme, Alex desaparece, como acontece com o sujeito contemporâneo: ela não é mencionada em toda a primeira parte do filme, além do reconhecimento de Marcus de que aquela face destruída era sua mulher. Alex está perdida? O que vemos nas cenas finais está perdido, não tem mais volta.
O poeta cineasta ao fazer seu filme indo do fim ao início não teria, assim, desejado reviver Alex? Não seria isso, um feixe de um cineasta assim esperançoso, não de todo pessimista e, portanto, pelo menos no cinema, será tudo mesmo irreversível?
Olhar Alex, assim, é nos deparar com o “[…] o limite em que o olhar se converte em beleza, [com] o limiar do entre-duas-mortes, lugar do infortúnio”, conforme Lacan (1965/2003, p.204).
Esse limiar entre nosso caminho ordinário e o lugar que nele nos deparamos com nosso infortúnio, é o mesmo onde gravitam as personagens de Gaspar Noé, personagens situados entre nós, gente comum, para nos mostrar que existem em todas as partes a crueldade, que o ódio e a violência não é mérito dos homens socialmente classificados como violentos, criminosos, e que nossos atos, irreversíveis em um tempo também irreversível, mancham a luz de nosso tempo e nos oferecem, nos deixam à mercê de nós mesmos e da ilusão de que podemos nos defender de nós mesmos.
Alex foi oferecida à “morte” em nome de quê? Em seu cinema, Gaspar Noé sublima [função de toda arte] o fato de que a dor de qualquer tempo é efeito, antes de tudo, de nós mesmos.
O sujeito contemporâneo aparece nas experiências estéticas atuais sempre como dissolvendo uma lógica rasa de estereótipos sociais e culturais, dissolvendo esse imaginário egóico e iludido em uma unidade idealizada. Em Gaspar Noé, o sujeito contemporâneo, e seu inconsciente que comporta um não realizado, para além da linguagem, se apresenta em uma estética, em uma língua que corta essa unidade: não somos o que parecemos ser e nos lançamos, vamos mesmo na direção da dor, de encontro a um gozo pela dor. Porém, é na língua (e nas linguagens) a possibilidade de cerzir borda a essa drama subjetivo de nosso tempo.
Considerações finais
As questões do cineasta Gaspar Noé vão se desdobrando ao longo de seus filmes sob formas obscuras que se debatem com as luzes. Para compreender sua lógica é preciso, antes de qualquer coisa, nos desfazer da lógica da linearidade, da crença que temos de que caminhamos em caminhos retos, é preciso não ter pressa, fazendo-se necessário ir até o final, ou até o começo, de seus filmes. O cineasta nos mostra que caminhamos no caos e que caos não significa ausência de ordem simbólica, significa vários vetores e, de fato, em direções surpreendentes, inesperadas.
Irreversível (2002), como Cinema de Poesia, como a expressão da vida contemporânea, se escreve por uma letra torta, obscura, iluminada, manchada de sangue, marcada pelo amor, destruída pelo ódio, explicada pela razão, confrontada com a desrazão, mas sempre tentando dar conta do fatídico encontro entre sexo, violência, sangue e vingança, afetos banais em nossos tempos, como aposta Noé ao nos mostrar que toda nossa história é escrita em letra de esperma e sangue, de sexo e morte.
Referências Bibliográficas
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[1] Dirigido por Gaspar Noé, “Irreversível” foi realizado na França e estreou no Festival de Cannes de 2002. A distribuição é da Lions Gate Films Inc., a fotografia é de Benoît Debie e Gaspar Noé e a produção é de autoria de Christophe Rossignon. O diretor também é responsável pela edição e pelo roteiro. A atriz Monica Bellucci interpreta Alex, Vincent Cassel faz o papel de Marcus e Albert Dupontel é Pierre.
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