Categoria: Cinema

O amor é pedaço de real, Um toque de teu dedo no tambor

O amor é pedaço de real, Um toque de teu dedo no tambor

 

Cirlana Rodrigues de Souza

(Haeresis Associação de Psicanálise)

 

Introdução

 

D’O amor – no cinema, na literatura e na psicanálise. Cito Lacan para dizer, e nada podemos dizer sem nos contradizer, que “o discurso analítico mostra que falar de amor é em si mesmo um gozo” e que esse gozo confirma que “seguramente não podemos falar sobre isso”, mas que “não poder falar sobre isso não impede o amor”. Em 30 de marco de 1974, Lacan afirma: “o amor só se escreve graças a uma abundância, a uma proliferação de desvios, chicanas, elucubrações, delírios, loucuras […] que ocupam, na vida de cada um, lugar enorme”.  E isso é concordar com Rimbaud ao escrever, na poética do amor, que “o amor está por ser reinventado, nós o sabemos” (Une Saison en enfer/Artur Rimbaud – Delírios I), verso escolhido como convocatória dessa fala.

Para a psicanálise, falar de Amor é falar do miolo da técnica psicanalítica: o amor de transferência, onde o analista nada tem para oferecer.  Também, falar de Amor é supor que o analista irá sempre escutar sobre o amor. Por isso Lacan insiste que “falar de amor, com efeito, não se faz outra coisa no discurso analítico” (1972-1973/2008). Falar dos impasses do amor, dos desencontros amorosos, da sexualidade como impossibilidade do amor objetal infantil, se amam de verdade ou não, do porque não se entender com o ser amado, se reconhece ou não esse amor, porque amar o outro que lhe faz mal ou não lhe faz nada, porque amam um e desejam o outro, são algumas questões que levam pessoas às análises levantas por Jean Allouch: “hoje, por vezes, apelamos […] para um psicanalista, quando fica evidente demais que em se tratando de amor… a coisa não funciona” (2010, p.11).

Para o psicanalista Jacques Lacan, o amor é o encontro puro, um acontecimento no momento certo, mas que não se sabe, como a morte. Esse amor puro [e puro não tem a ver com pureza, mas com a existência possível fora da linguagem] é o que vemos no rosto em êxtase de Santa Tereza d’Ávila de Bernini (Figura 1) que nunca pode ser conhecido exceto para quem o sente, impossível ao outro de saber, onde a angústia é antecedida pelo prazer silencioso.

 

(Figura 1)

Na história do amor, aparece Platão (quem não conhece a expressão ‘amor platônico’?), Aristóteles e sua philia, esse amor como amizade perfeita, onde se ama um outro como sua própria alma, onde ser fiel ao outro é ser fiel a si mesmo, Lucrécio e Ovídio colocando o desejo sexual como fundamento do amor, o amor como virtude cristã, o amor cuja imagem de fundo é o romantismo, a mulher como objeto ideal de amor construído pelos trovadores na idade média. Aparece Espinosa e o amor como afeto, Nietzsche e o amor como afirmação da vida e Freud, para quem o amor é uma história de perda (May, 2012). Na atualidade, a problemática do amor é abordada por “estratégias de acasalamento e aptidão evolucionária, ou de estados cerebrais e neurotransmissores, ou ‘histórias’ sobre vários tipos de relação amorosa que podem existir, ou padrões de afetos na infância, ou funcionamentos do desejo: de intimidade, de sexo, de filhos. Livros acadêmicos, shows, música pop, sites de encontros amorosos na internet, manuais de autoajuda [Escola do amor], todos fervilham de curiosidade sobre as condições para o amor bem-sucedido, o parceiro certo, os desafios da felicidade e do ciúme, ou as virtudes da intimidade, como a empatia, o respeito e a tolerância” (May, 2012, p. 07- 08). Tudo para manter as expectativas de parte da tradição amorosa: a completude, a promessa de felicidade, o sexo como expoente do amor, a salvação do mundo, e o ideal altruísta. Lembro que da tabela dos afetos apresentada por Espinosa no seu tratado sobre a ética, o amor é mais um entre tantos outros afetos. O velho ideal romântico, de velhos pactos amorosos, as modalidades de dominação amorosa, as velhas promessas, as velhas traições parecem resistir às ‘revoluções’ que acreditávamos superar tudo isso e que reinventariam o amor. O que vemos é que acontecimentos como a “liberação do sexo e das diferentes formas de amor, parecem ter ossificado o amor”, citando o filósofo norte americano Simon May (2012). O amor livre, o feminismo, a igualdade de gênero, as possibilidades tantas que o engodo libertário da contemporaneidade trouxe na verdade dão sinais de sucumbir ao imaginário amoroso: amamos ao próximo como salvação, buscamos a alma gêmea, a pessoa certa, reeditamos os ideais de ‘filhos feitos de amor’, o amor certo; investimos no amor, investimos na relação e, aliás, esse tal investimento na pessoa amada é a cara desses tempos, pois ficamos esperando o retorno com juros altos, juros de mercado, e, caso não dê certo, entramos na lógica que Simon May (2012, p.10) chama de “extensão do consumismo ao amor: a exigência de satisfação rápida nesta, como em outras áreas do desejo, e a disposição para trocar repetidamente de parceiro se ela não for alcançada”.

O “Amor a Deus sobre todas as coisas” moldou o ocidente (May, 2012) em uma lógica imposta, não por Jesus que raramente falou sobre o amor, mas pelas religiões, que tornou o amor incondicional, harmonioso, eterno, perfeito, redentor e altruísta, devoto e moral, o valor incondicional da vida que vemos ratificado no Epitáfio “ele amou e foi amado”.

O filósofo Platão, ao escrever O banquete, concebe o amor pelo “ belo corpo como o início de um longo caminho que termina no paraíso”. O amor platônico é esse em que o objeto amado não é para ser possuído, mas é o caminho que tomaremos ao céu, onde o desejo físico é suplantado pelo amor espiritual, de entendimento, livre de ciúmes, que nos leva do finito ao infinito, do contingente ao absoluto, onde o desejo erótico não é apagado mas é direcionado da beleza física para a beleza divina, para o belo (May, 2012). Nesse livro sobre o amor, Platão nos apresenta um symposium, onde os sábios iriam ‘beber juntos’ e tendo a homossexualidade como pano de fundo discutiriam sobre o amor, “ A gestação da alma”. Nesse simpósio, temos alguns aspectos do amor muito presentes nos dias de hoje (May, 2012): o amor nos torna inteiros, não serei ninguém sem minha cara metade, sem minha alma gêmea; o amor é despertado pela beleza e essa beleza não tem a ver com dotes físicos, é algo tipo ‘beleza interior’, do intelecto; o amor profundo; o amor tira o melhor dos amantes. Jacques Lacan explorou essa obra de Platão, em todas as suas nuances para escrever sobre o amor de transferência, enfatizando a relação amorosa e não lasciva entre Sócrates e Alcebíades, onde o primeiro se recusa a dar o que o segundo deseja e supõe que o amado saiba. Mas, o que Sócrates sabe é que não sabemos o que desejamos, assim ele não tem nada a oferecer.

O amor é paixão e ação, é alegria e tristeza, nos paralisa como paixão, mas nos transforma como ação, coloca nosso corpo em invenção, sustenta Baruch Espinosa.  Esse filósofo herege e judeu, que subverte a barreira entre a natureza e Deus, tira o amor dos céus, e se ele pode nos salvar é por afirmar contradições humanas [e de Deus] como o bem e o mal. O “amor comum”, diz Espinosa, é prazer de causa externa, por isso é frágil, pois se está em um outro, é passível de perda. A ambivalência está em justamente reconhecer a necessidade desse amor no outro e perdê-lo. Espinosa nos adverte que o “amor passivo”, causa original do prazer e da dor, não está no outro, este apenas desencadeia em nós confusas associações, ódio, ressentimento, ciúme, e outros afetos de dor. Para o filósofo, nosso trabalho é transformar esse “amor passivo” e triste, da paixão, no “amor ativo”, da alegria e da ação, pois o amor é uma necessidade. Assim, “os amantes experimentam a necessidade que impele as vidas um do outro e por isso se encarregam de suas próprias emoções caóticas” (May, 2012, p.198). É a liberdade como ética no amor, onde os amantes compreendem a si mesmos e um ao outro.

Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, ajudou a tirar o amor do ideal cristão, do ideal romântico desesperado, aquele desespero diante da impossibilidade de consumação neste mundo e, por isso é eterno. Para Nietzsche, essa obsessão por “um estado de coisas mais perfeito do que aquele que a vida humana limitada pelo tempo pode atingir, e que o amor é o caminho que nos conduz até lá” deve ser abandonado (May, 2012, p.247).  Não há salvação e nem perfeição moral e nem condições humanas isentas do mal, perdas, mudanças ou sofrimentos, sendo preciso dizer sim à vida e a seus acontecimentos. Nessa filosofia, o amor é para afirmar a vida em todas as suas congruências e contingências, mas não como aceitação e resignação, mas ver o “belo” nas fatalidades, desnudando nossos profundos instintos, desejos e pulsões. Nietzsche nos leva a perguntar como reinventar esse amor sem desejá-lo como eterno, como estado de segurança e de paz, como meio de salvação de sofrimentos, como garantidor de alegrias e completudes. Tudo isso porque Deus está morto e, junto, toda essa história do amor a Deus.

Onde nasce o amor?

Sigmund Freud reinventou a vida e seus afetos. Reinvenção que está atrelada, no que se refere ao amor a: 1) o homem ama a si mesmo; 2) o homem não encontrará sua “alma gêmea”, sua completude; e 3) há uma distância intransponível entre o que ama e deseja e o que “pensa” que ama e deseja, o que Freud definiu como inconsciente. A gênese do amor, para Freud, está na capacidade narcísica que o Eu tem de se satisfazer, de sua satisfação autoerótica que será transferida para o exterior apenas com o objetivo de posse desse objeto que ele imagina estar no exterior. Importante esclarecer que o Eu imagina que sabe sobre si e suas necessidades e seu desejo, porém, a lógica do inconsciente da psicanálise supõe que há um “saber” que escapa a essa capacidade do Eu de responder sobre si. Em se tratando do amor, isso que vai e volta entre o Eu e o mundo exterior representado no psiquismo, é do sujeito.

Na teoria freudiana, as diferentes formas de amor são indissociáveis da transferência, dos processos de economia/investimento psíquico, da pulsão, do narcisismo e da sexualidade. Freud (1907, p.125) nos diz que “muito antes da puberdade já está completamente desenvolvida na criança a capacidade de amar”, onde a “mãe” provedora do bebê torna-se seu primeiro amor, mas logo esse bebê percebe que essa mãe amorosa não está sempre disponível e o que ele deseja não vai corresponder ao que ela quer e/ou lhe oferece. A entrada de um terceiro, nessa história, chamado de pai, só distancia mais ainda a criança de seu objeto de amor, sendo preciso encontrá-lo (e perdê-lo) em outros objetos deste mundo: contraditória tentativa de preservar o objeto amado, ânsia quase platônica de permanente posse do bem (do objeto bem-amado, o mais belo dos objetos). Esse afeto ansioso e insaciável é a condição de fracasso do amor: a posse de nosso objeto de amor é impossível, sendo essa sua natureza trágica e a recusa dessa natureza vai da agressividade até mesmo à violência, como vemos todos os dias. É o cerne da ambivalência amorosa, onde amo alguém na medida em que ele é uma fonte de gratificação, mas o odiarei na medida em que me abandona, sei que ele me é exterior, mas também sei que me pertence. Essa espécie de regressão a um estado infantil que pode ser lida em sentenças como “nós nos entregamos de corpo e alma um ao outro” é tocada pela pulsão, por aquilo que, em nosso psiquismo, nos leva adiante, que unifica e que desintegra. Freud insiste, desse modo, que os amantes podem tanto criar um mundo protegido dos horrores da humanidade como reproduzir esses horrores no íntimo desse mundo criado. A Psicanálise se interessa muito mais pelos processos e modos como os sujeitos estão reinventando e criando suas histórias a partir desse amor primeiro, do que pela consumação, realização e manutenção de uma ilusória conquista do objeto amado.

É assim com nosso primeiro objeto de amor e caso não seja, a psicose nos ajuda a compreender a severidade de um amor que não é como impossibilidade. E, por falar em mãe, o amor de mãe não é qualquer coisa, mas também não é tudo. Eis algumas mães, na literatura e no cinema, onde podemos reportar nossas fantasias sobre esse amor constitutivo: Medea, Jocasta,  a mãe de Norman Bates, a mãe d’Narrador de Marcel Proust: aquele que passou a vida ansiando que ela subisse para dar-lhe o beijo de boa-noite e mesmo que ela lá estivesse ele sabia que aquilo terminaria, a mãe de Hamlet, Ana Terra, Dona Glória, mãe de Bentinho, e Capitu, mãe de Ezequiel, Sinhá Vitória, Molly Bloom,  infiel, Eva Katchadourian, mãe de Kevin, Ana que se dilacerou ao encontrar um cego mascando chiclete na rua, a vulgar mãe de Antoine Doinel,  Sra. Bennet, sogra de Mr. Darcy, Aurora, mãe de laços de ternura, Kate McCallister, aquela que esqueceu o filho, a mãe abusadora de Preciosa, Erika, a mãe de Nina, a bailarina que tocava a si mesma. Forçando a fórmula da fantasia, onde o sujeito tem um abismo entre ele e o objeto causa de seu desejo, cada um precisa ter seu amor primeiro, pois somente assim será possível e necessário perdê-lo.

Pulsão é o “representante psíquico dos estímulos oriundo do interior do corpo que alcançam a alma”, exigência de trabalho imposta à alma em decorrência de sua relação com o corpo (Freud, 1915/2015, p.25). O amor é o afeto por onde a pulsão escoa e vai enlaçando sujeitos nas parcerias amorosas com seus pactos que reconhecem a lei, rejeitam a lei ou desmentem a lei simbólica, no erotismo, nas amizades; no amor como suplência de nossa incompletude, onde buscamos o pedaço que nos falta no outro; esse amor como condição para a constituição do sujeito do inconsciente, onde o grito do bebê é escutado pela mãe como demanda de amor; o amor, por ser, nas palavras de Jean Allouch “o dom daquilo que não se tem”, o dom de amar,  reinventado por Lacan em signos como: amor libidinal, amor narcísico, amor guerreiro, amor sublimação, amor incondicional, amor como estar a dois, amor philia, amor masoquista, amor como reconhecimento, amor estima, discurso amoroso, amor ao saber.

“Lieben” é a palavra alemã que Freud usa para “amor e amar”, para a paixão e para a ação e, de modo interessante, nos diz que “apenas na conversão do amor em ódio” (p. 49) vemos a pulsão se transformar em seu oposto, pois o objeto de amor e de ódio é o mesmo. Essa expressão toma, de acordo com Freud (1915/2015), três formas: amar – odiar, amar – ser amado e o amar e o odiar. É o jogo do amor narcísico direcionado a um objeto que lhe é exterior, e que estranhamente pertence ao sujeito. Dessas formas, destaco a que está em jogo no “amar a si mesmo”, onde o “olhar dirigido a um objeto alheio “ (p.41) é abandonado e retorna para o próprio corpo. Assim, a sentença religiosa e moral “Amar ao próximo como a si mesmo” não leva a humanidade a nenhum lugar, pois esse amor, de fato, está a trabalho do Eu, de “satisfazer suas pulsões em si mesmo” (p.53). Nos jogos amorosos, o ódio, “como relação com um objeto”, é anterior ao amor, pois é uma espécie de desconforto primordial do Eu perante o mundo, antes da satisfação, e essa reação desprazerosa causada pelos objetos exteriores vai garantir que o sujeito mantenha sempre uma relação íntima com o objeto de amor: de modo paradoxal, Freud nos diz que o ódio garante a continuidade de uma relação amorosa. Assim o ódio não substitui o amor, ele sempre esteve lá e o sujeito lança mão dele como uma última tentativa de manter a relação (perdida) com o objeto de amor.

Destaco esse amor naquilo que Freud nos lembra que ele é uma das invenções do homem contra o mal-estar da civilização, a serviço da busca da felicidade: o que é do sujeito está sempre em desacordo com a civilização e são necessários sacrifícios pulsionais. Para Freud (1930), os projetos de felicidade em sociedade estão fadados ao fracasso e “ser feliz” nada mais é do que evitar o desprazer, e não haveria amor sem mal-estar e sem sofrimento.  Aquilo que Freud disse sobre mães e bebês, ele reporta aos homens e à civilização. Freud nos alerta do perigo do amor como a mais potente promessa de felicidade, pois esse amor é fruto de nosso narcisismo, amamos um ideal de objeto [de amor] e caso esse objeto nos abandone, instaura-se o desamparo, afeto que é o mais próximo da angústia. Essa primazia da relação de objeto é retomada no amor imaginário, onde o sujeito ama a si mesmo que vê na imagem refletida no olho do outro semelhante e isso é importante: de fato, não amamos ao outro, mas amamos isso que é nosso reflexo no outro. Essa dimensão é determinante na medida em que coloca o sujeito frente a algo que lhe é fundamental: somos em falta e aquele que amamos está aí para nos lembrar dessa falta, e é por isso que o amamos.

Desse amor, é preciso passar ao desejo:

 Para Lacan, concordando com Freud, o amor é narcísico, e o que procuramos no outro é a própria imagem. O trabalho de Jacques Lacan em torno do assunto “Amor” recebe o trato de sempre: é possível vê-lo vertendo o amor em imaginário, no jogo amoroso entre o engano de que o semelhante seja meu objeto de amor, naquilo que chamamos de relação de objeto; vertendo o amor em simbólico, entrando em cena um inconsciente estruturado como uma linguagem e que inscreve a dimensão de falta constitutiva do sujeito que passa a buscar o objeto do desejo, que é por ser mesmo em falta, pela impossibilidade de se encontrá-lo na imagem refletida no semelhante: o Outro agora é aquele que vai barrar essa posse, ele não é e menos ainda tem esse objeto do desejo; e, vertendo o amor nisso que posso dimensionar como apenas “pedaço de real” (Lacan, 1975/1976-2008), onde o amor é expressão do vazio causa do desejo e daí decorrem a reinvenções diárias como resposta a esse real: há horas em que não se consegue dizer o quanto se ama alguém.

É do amor cortês, onde cavaleiros e damas vivem num mundo sempre imaginário, que Lacan faz saltar aos olhos que o trovador sabe que não pode ter a dama.  A mulher como um ideal, um objeto inatingível está no centro (vazio) do amor. É o “amor refinado” louvado em poemas e cantos dos trovadores para uma “mulher terrena” (May, 2017). Essa mulher amada é sempre uma dama casada, e sobre esse cortejo não há segredos, não há ciúmes: o amor cortês é um culto ao objeto amoroso, e a grandeza está justamente no que se inventa em nome desse amor, poemas e canções que enaltecem a dama e o amor. Há nessa fantasia algo de interessante: o apaixonado submetido àquilo que “Goethe chamou misteriosamente de ‘o eterno feminino’” (May, 2017, p.170). Submissão narcísica, onde não há consumação do amor, mas um fazer com a real condição de um objeto do desejo inalcançável. O amor é vertido em desejo, em busca, em reinvenção permanente, em sublimação. É amor pelo amor: a alegria está em adorar esse objeto, e não em possuí-lo, mas é por poder amar que um poeta se satisfaz. Sobre isso, uma trova de Guilhem de Peitieu: “Tenho o amor de uma dama, /Não sei quem ela é, /Pois nunca a vi, mas juro, /Ela tampouco fez alguma coisa para me agradar ou vexar, /Nem me inquieto com isso, Pois nunca houve nenhum normando ou francês em minha morada” (retirado de May, 2017, p.170). Esse amor cortês vai bem tanto na lógica imaginária, como na lógica simbólica e, porque não no real, na medida em que é um amor que acharia seu gozo na renúncia de certo gozo!

Ao atravessar o amor imaginário, Jacques Lacan o faz, a partir de Freud, tomando a relação do sujeito com o outro semelhante: a relação com o objeto (de amor). No “Lieben” mencionado, o amor freudiano, há uma enamoração do sujeito ao objeto, um apaixonamento, onde o sujeito crê que pode recuperar a metade perdida e reestabelecer a harmonia pulsional. É o amor como paixão, uma espécie de fenômeno imaginário trágico e cômico, cujo ânsia de posse seguida do fracasso dessa posse, provoca no sujeito uma catástrofe psicológica, como acontece com o Jovem Werther, que ama a imagem maternal e virginal de Charlotte, mas como se essa imagem fosse ele próprio. Esse é o amor como um estado específico em que o Eu é esvaziado a favor do objeto amado, essa imagem de si refletida no semelhante é que passa a ser investida: muito próximo da morte. O amor, como esse algo místico, é o substituto que Lacan estabelece para o fracasso entre os sexos, a incompletude entre os sexos. Ricouer (2007) ressalta que Lacan vai rasgar o amor [freudiano] de seu status de ilusão para pensá-lo como aquilo tocado pelo real. Estamos, então, na lógica do simbólico, da castração que não para de se inscrever, de dizer ao sujeito que é ele desejante porque seu objeto de amor é interdito, lhe é proibido.

O desejo é outra forma de relação com objeto, antes estabelecida pelas vias do amor freudiano: é uma relação que esvazia o sujeito do eu narcísico e inscreve a diferença, onde o outro é desejado por justamente ser proibido. Na linguagem que opera pelas vias das diferenças e da impossibilidade do desejo, amar ao outro seria uma espécie de pacto civilizatório, não haveria amor fora desse pacto.  No cerne desse pacto amoroso, o amante renuncia à posse do objeto em nome da própria liberdade de também não ser possuído: essa renúncia atestaria a falta, um ato de amor ao outro, uma doação ativa para além do objeto, onde amar é amar um ser além do que este parece ser, nos lembra Ricouer (2007). O amor sai da dimensão da contemplação e entra na dimensão do arrebatamento, acontecimento na linguagem onde os sentidos são suspensos, onde o ser amado não é mais uma existência material fantasiada, ele é por ser em falta, ele somente será dimensionado por significantes, não fará mais sentido, mas trata-se do reconhecimento do outro como alteridade, não se trata mais de satisfação, mas de uma demanda marcada pela pergunta “que queres?”, mas não tenho como saber o que o outro quer (de mim).

Hannah Arendt, filósofa alemã e judia, disse que em toda sua vida jamais amou um povo [nem mesmo o povo judeu] e nenhuma outra coletividade, pois amava “apenas” seus amigos, sendo o único tipo de amor que conhecia o amor por pessoas. Hannah uma vez se apaixonou, “caiu de amor” por Martin Heidegger, como podemos ver em seus Escritos Judaicos (1930-1960). Cito: “De seu acento na sala de aula em Marburg, ela se via refletida em seus olhos, não narcisicamente como objeto de seu desejo, mas como a mulher que ele despertara, aquela que ela não havia encontrado antes. Ele escreveu para ela: ‘estar apaixonado’ é ‘ser impelido até o seio da existência mais própria’; ‘o amor’, ele disse, ‘é um volo ut is… Eu te amo: quero que você seja o que é’. Para ele, em uma linha mais conturbada, ela escreveu que o amor de ambos ‘amaldiçoava toda a realidade, deixava o presente como que recuar’, dizendo que ‘ela sentia como se tudo estivesse diluindo, se pulverizando […] com a estranheza oculta de uma sombra espraiando-se sobre o caminho’. Ela tinha dezenove anos; Heidegger tinha 36, casado e com dois filhos”.

O amor, que não para de não se inscrever, é “pedaço do real”:  

Até aqui estivemos no campo do que não para de inscrever, do desejo, da falta que nos causa e de onde clamamos “a sorte de um amor tranquilo, do amor com sabor de fruta mordida”, clamamos por “todo amor que houver nessa vida”, como Cazuza.

Agora, voltamos ao amor, mas nos termos de Amy Winehouse, o amor como jogo perdido, jogo de azar: Love is a losing game. Love is a losing hand. Nesse ponto do real, do que não se nomeia e nem se determina, as reinvenções do amor ficam escancaradas, pois passamos o tempo insistindo que esse amor é possível, mas agora é preciso ser diferente e não ceder ao engano da imagem ideal do amor, não ceder à contemplação do Jovem Werther e nem esperar que o outro lhe retribua em nome dessa causa perdida: o sujeito sabe [sem saber que sabe] que o amor é por sua conta e risco, não funciona, já deveria ter aprendido, pelas vias do simbólico, que a sexualidade é desonesta, não natural, se afasta do instinto pela linguagem (Ricouer, 2007). Seria a incompletude da relação entre os sexos o que insiste no amor de Elisabeth Taylor e Richard Burton, ou mesmo o que insiste no amor de Lennon e Yoko? Seria o amor que não ousa dizer seu nome de Oscar Wilde, ou o amor como o complexo amoroso de dominação entre Rodin e Camille Claudel?

Em 1975, n’O Seminário, livro 20, Encore [mais ainda], Jacques Lacan se estende sobre o amor, afirma que “fazer amor, como o nome indica, é fazer poesia” como Dante, Shakespeare, Molière, Tudal, Victor Hugo, Rimbaud, Aragon, poetas de quem Lacan cita os versos para ilustrar suas elaborações teóricas. O que é isso de “fazer poesia”? Escrever abrindo mão de sentidos? Escrever sobre o que não se sabe que sabe? Mudar letras, significantes e formas de lugar? Escrever com o corpo? No corpo? O amor sai do campo da fala. Agora é ato.

“O amor é dar o que não se tem”, Lacan diz em 1957, “a alguém que não quer saber disso”, diz em 1977. “O amor é um sentimento cômico”, falou em 1960; “Estamos todos bem de acordo que o amor é uma forma de suicídio”, disse em 1968. “O amor é uma pedrinha rindo ao sol”. “Para fazer amor, é melhor esperar sentado”, ou “o amor é o que põe o narcisismo a serviço de uma enganação”, declamou como versos em 1969; em 1972, afirmou que “o gozo do outro não é signo do amor. ” Lacan inventou palavras para condensar muito do que disse antes: “Amodio” e “almor” (1975), “Amuro”, fórmulas do amor: amor e ódio, amor como alma, o (a)mur, entre o sujeito e seu objeto de amor, um muro, uma falta (1972). Em 1974, o amor é definido como “dois semidizeres que não se recobrem”. Em 11 de junho de 1969, surge, no contundente seminário sobre o ato psicanalítico, a fórmula em que, pode-se dizer, condensam outras: “não há relação sexual”, que é também retomada por Lacan anos depois no contexto de sua teoria sobre a mudança de discurso, conjugada com o que chamou “novo amor”: não há completude. Para isso, lança mão, mais uma vez, da poesia de ruptura e de reinvenção de Arthur Rimbaud e volta a citar o poema A uma razão (À une raison), mencionado em 1953, em “Função e campo da fala e da linguagem”: “Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia. / Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha./ Tua cabeça se vira: o novo amor! Tua cabeça se volta, – o novo amor!/“Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas crianças,/ diante de ti. “Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te./ Chegada de sempre, que iras por toda parte”. Essa “uma razão”, em Rimbaud, é justamente a subversão da racionalidade, da consciência das coisas, subversão e recusa do saber do Eu, a poética. Rimbaud não fala de uma nova humanidade ou uma nova sociedade, esse “novo amor” indica um novo laço social, isto é, um novo discurso, como aponta Lacan: um discurso que semeie a substância do nosso desejo, pede o poeta. O novo amor é, para Lacan, signo da emergência de um novo discurso: “o amor, nesse texto, é o signo, apontado como tal, de que se troca de razão, e é por isso que o poeta se dirige a essa razão. Mudamos de razão, quer dizer – mudamos de discurso” (LACAN, 1972-1973/1985, p.26). Reinventemos o amor pelas vias dessa razão imprevista, não como um avanço, ou uma conquista, mas como a inauguração de algo novo, invenção do desconhecido, determinação de um começo, um ato que suscita um novo desejo diante dessa impossibilidade que nos causa, o ato analítico, o ato de amor (Lacan,1968-1969, O Ato analítico).

É com um ato de amor que suscita um novo desejo que encerro minha fala, ato que realiza a máxima de Lacan Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso (o que desejo) [ Je te demande de me refuser ce que je t’offre, parce que c’est pas ça], proferida no Seminário 19 …Ou pire. Le savoir du psychanalyste (09-02-1972), sobre a letra do amor que escreve o impossível do amor. Ato que retiro do filme Amour (França, Michael Haneke, 2012): Georges e Anne são dois amantes de uma vida inteira que vai lentamente se encerrando no puro acontecimento do amor, quando, pelo olhar, ela reflete a questão “que queres tu? ” A essa demanda de amor, Georges reinventa a história dos dois amantes, cria um novo laço: a cena final de Amour é a realização do ato de amor.

Georges e Anne viveram o amor de invenções e reinvenções diárias; foram enamorados; encontros e desencontros; amaram o outro naquilo que se refletiam; fizeram pactos; geraram filhos; uniram corpos na tentativa diária de negar que não se completavam; assumiram suas incompletudes; foram iguais e foram diferentes. Mas, ainda lhes faltava o ato de amor a reinventarem-se em seu “novo amor”, o ato poético que começa a ser escrito pelos dois amantes na cena do café da manhã, quando Georges pergunta a Anne o que se passa com ela, ali, imóvel. Ele, diante dela, a chama. Em Anne, só olhar, não há mais a fala. Ele a toca, insisti perguntar o que se passa. No olhar de Anne, segundos da cena mais impressionante do filme, tudo se revela para ele e para ela. Desses segundos em diante, não sabemos mais quem pede e quem recusa, mas esses dois amantes bem sabem que não é isso o amor. Ela grita: um grito é demanda de amor, nós sabemos. Georges vai até ela, estava se barbeando. Ele lhe pergunta onde dói. Senta-se ao lado dela, na cama. Pega sua mão, toca-lhe delicadamente com as pontas dos dedos e lhe diz que está ali, com ela. Como sempre esteve. Beija-lhe a mão, enquanto ela sussurrando, gemendo, suplica-lhe algo que ele não sabe que sabe. Nesse ponto, o que lhes disse no início desta fala: aproxima-se para Georges e Anne o momento certo, o acontecimento puro, que somente pode ser vivido a dois nos termos de Georges e Anne. Ele diz a ela que tudo vai ficar bem. Começa a contar uma história de quando ele era jovem, na escola primária, tinha uns dez anos. Anne, em seus gemidos, continua pedindo, de Georges, o ato de amor. Ele continua contando a ela que, no verão, os pais o mandaram ao campo para que ele brincasse com outras crianças de sua idade. Lá havia um castelo, da idade média. Ele diz-lhe que não era o que esperava. Nesse momento, entre o primeiro grito de dor de Anne, nessa cena, já podemos compreender o que George faz: as palavras de sua história vão fazendo borda em torno do pedaço exato de real que se aproxima: agora, ela já o sabe. Angustiado ele continua segurando a mão de Anne. Continua sua história dos dias passados no campo, ela parece se acalmar. Anne fica em espera: na voz que a seduziu por toda a vida ela escuta o que virá, a resposta a sua demanda de amor. George conta-lhe que chorou sozinho depois de ter sido repreendido e que, naquele verão, fez um pacto com sua mãe: ele iria escrever a ela toda semana. Ele fica doente e a mãe vai a seu encontro. Anne parece sorrir, em prazer silencioso. George termina a história de sua infância. Silêncio entre os amantes. Anne espera por ele. Ele pega o travesseiro. Coloca-o sobre a face de Anne e se deita sobre ela. Os corpos estremecem. O ato de amor é consumado. Georges volta a escrever cartas, sozinho na mesa que dividia com Anne. E Lacan, sobre o “amor mais digno” (1973/2003), aquele amor que demanda amor, disse que “a única coisa séria a ser feita é a letra [a carta de amor]” (1972/1985).

 

Referências bibliográficas [citada e consultadas]

 

ALLOUCH, J. O amor Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.

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IRREVERSÍVEL, DE GASPAR NOÉ: A BELEZA NO LUGAR DO INFORTÚNIO, LUGAR ONDE CONVERGEM CINEMA E POESIA

Trabalho apresentado e publicado nos anais do Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e do Seminário de Poesia? Poesia, Filosofia e Imaginário, 2015, Uberlândia. Anais do Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e do Seminário de Poesia ? Poesia, Filosofia e Imaginário. Uberlândia: ILEEL, 2015, 2015. v. 1.

Cirlana Rodrigues de Souza

cirlanarodrigues@gmail.com

(GELP-Grupo de Estudos Linguagem e Psicanálise/ILEEL/UFU)

 

Resumo: No encontro entre poesia e cinema, é preciso ver onde, em um filme, algo corta e nos arrebata para um estado de suspensão de sentidos. A proposição é a de que a língua do cinema de poesia suposta pelo cineasta italiano Pasolini comportaria um enigma poético que nos colocaria arrebatados como a personagem literária Lol. V. Stein destacada por Lacan na homenagem à Marguerite Duras (1965). Trata-se de ser capturado nas imagens de um filme no lugar onde a incredulidade opera. Essa língua seria feita de letra, letra feita de traços que convergem com o inconsciente, a imagem como um traço que corta. Nessa língua está posto o estilo de autoria de um filme por comportar esse traço singular. O filme Irreversível (2002), do cineasta contemporâneo Gaspar Noé, cujo peso de todas as cenas e sequências é o próprio movimento da angústia marcado por cenas de sexo e violência, nos mostra isso. Mas, o arrebatamento se dá em suas cenas finais por comportarem toda a beleza do espaço, do tempo, do amor e de Alex, pois tanta beleza nos arrebata por ser o lugar do infortúnio, lugar onde convergem cinema e poesia.

 

Palavras-chave: Irreversível; Cinema; Poesia; Contemporâneo; Infortúnio; Psicanálise.


 

Introdução

 

A poesia arrebata. Seu arrebatamento é efeito da letra que nela opera, sem forjar sentidos, como afeto que faz corte inesperado em nossa harmonia.

O cinema, nas formas de um filme, pode nos causar esse afeto desde que seja ‘escrito’ em uma língua que ao cerzir uma história faz corte e nos arrebata para um estado de suspensão, inominável. Nessa direção, e conforme o argumento do grupo de trabalho para abordar o Cinema de Poesia, de Pier Paolo Pasolini, nossa proposição é a de que a língua escrita da ação cinematográfica inventada pelo cineasta italiano comportaria um efeito desse inominável, um enigma poético escrito nessa letra e que nos colocaria, como espectadores, arrebatados, tal como a personagem literária Lol. V. Stein destacada por Jacques Lacan em sua homenagem à Marguerite Duras [1965/2003] e, também, arrebatados pela escrita de Duras. Trata-se, desse modo, de ser capturado, ali nas imagens de um filme, em suas unidades básicas, em suas tomadas, justamente pelo lugar onde a incredulidade opera, onde a ordem do esperado e do compreendido falha, ponto em que somos lançados ao jouissance, o gozo de Santa Tereza D’Ávila (Lacan, 1972-1973/1983), pois a linguagem – a mesma que comporta uma língua que corta – deixa algo fora dela, fora do sentido: nem tudo faz sentido!

Nesses termos, a ‘língua de poesia’, conforme estabeleceu Pasolini, seria a língua feita de letra, letra feita de traços que convergem com o inconsciente (Lacan, 1965/2003), a imagem como um traço que corta e nesse corte algo de não realizado nos arrebata: ponto em que traço e inconsciente se tocam, causando nosso arrebatamento ante a tela de cinema. Nessa língua está posto o estilo de autoria de um filme: haveria o traço de estilo de Pasolini, de Tim Burton, de Lars Von Trier, e assim por diante, considerando que um filme é sempre estabelecido a partir do desejo de um sujeito em fazer filmes e que há uma ‘gramática’ desse sujeito que comporta esse traço singular, o que podemos ver na obra de cada um desses cineastas em que eles se propõem, ao estilo de cada um, a responder questões que vão sendo delineadas no percurso de construção de suas obras.

Luís Buñuel (1958/1991) propõe deixar as imagens, de um filme, fluírem com “liberdade” para se aproximar cinema e poesia: é essa fluência de imagens sem as amarras de sentidos pré-estabelecidos que nos levaria ao arrebatamento. Este não estaria limitado apenas a imagens em sequências surpreendentes, a viradas inesperadas no roteiro como em Menina de Ouro, ou a sequências insólitas e concretas como em Relatos Selvagens.

Levando isso em consideração, vamos ao filme Irreversível, de Gaspar Noé (Irréversible, 2002)[1], cujo peso de todas as cenas e sequências é o próprio movimento da angústia marcado por tomadas controversas e perturbadoras, por cenas de estupro e assassinato, de sexo e violência, em que o tempo é a personagem que vai nos mostrar que o pior está por vir e vem, de modo irreversível, irreparável, quando não esperamos.

O cineasta Gaspar Noé nos avisa sobre isso nas primeiras cenas do filme, cujo conteúdo é o incesto, ou seja, estamos, na sociedade ocidental contemporânea [e sua epidemia de incesto, conforme uma das personagens nos lembra] sem a lei fundamental de nossas relações civilizatórias e o sexo entre pai e filha pode ser apenas uma metáfora para nossa orla primitiva. O pai incestuoso, do filme de Noé, em seu corpo asqueroso e sob a obscuridade das cenas nos avisa (Figura 1): “O tempo destrói tudo.” Dizendo de outro modo, a personagem protagonista desse filme é impiedosa, cruel e o que nos causa é irreversível.

Figura 1. Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Em Irreversível, concluímos, na sua primeira metade, que a vida é feita de “esperma e sangue”, conforme a filosofia do cineasta, a vida é um horror de sexo, violência e vingança. Em Irreversível, é a beleza que ratifica esse infortúnio, pois conforme Lacan (1965/2008, p.204), a beleza nos arrebata precisamente por estar no “limiar do entre-duas-mortes”, o lugar do infortúnio, lugar onde confluem o cinema e a poesia e que iremos nos dar conta no final do filme, seu término, já que ele começa pelo final.

Assim como para a psicanálise, de Sigmund Freud e Jacques Lacan, a arte antecipa a matéria de nosso interesse (questões do inconsciente e de seu sujeito do desejo e de gozo), trabalhar em uma lógica subversiva de um nomeado cinema de poesia é partir do fato de que o cinema vai trabalhar com a matéria da poesia. Conforme um dos versos de Manuel de Barros (1990), no poema Matéria de Poesia, essa matéria é “O que é bom para o lixo é bom  para poesia”, matéria do cineasta Gaspar Noé em sua obra, que em Irreversível toma forma de imagens que nos dizem do sexo gay como sadomasoquista concretizando seu ideal de um mundo de ‘sangue e esperma’, em que a boate Rectum é a própria lata de lixo, no ódio entre os sexos e entre os gêneros, na xenofobia, na lei clandestina e na lei do caos, na violência a todo custo, nas drogas, na promiscuidade em uma festa no apartamento burguês, na falácia de uma filosofia francesa e assim por diante.  A matéria do cinema de poesia de Noé é o sexo, a violência e a vingança.

 

O cinema, contemporâneo e irreversível, de Gaspar Noé

 

Mais do que um conteúdo, trata-se do modo de fazer sobre essa matéria de poesia, modo esse que está traçado no estilo do diretor Gaspar Noé, estilo que faz um corte na lógica de sentidos triviais e nos lança no inesperado, nos arrebata justamente onde prevalece esse inesperado e visivelmente insuportável: algumas cenas são difíceis de ver.

Irreversível, em meio a todas às polêmicas de seu enredo, de suas sequências, de seu tempo cronológico, da voracidade de seus atores como resposta ao apelo de um diretor cujo desejo é ser “realista”, nos mostra que as imagens [frutos de um trabalho imaginário] comportam o que nomeamos de real em psicanálise: justamente aquilo que não se encobre com nomeações e com sentidos, em que os atos são resposta à angústia, aquilo que pode se estatelar em uma imagem. Isto não é pouca coisa quando lembramos que cinema é imagem, ou deveria apenas ser imagens, sequências de imagens para contar histórias com um propósito.

Em línguas [de cinema] como a de Gaspar Noé, o propósito é apenas uma justificativa que vai perdendo as vezes para a matéria de que se trata: o arrebatamento do espectador naquilo que ele julga ser possível evitar. Esse arrebatamento é afeto, efeito do inominável que para alguns é usar o cinema para provocar sensações, sensações que acabam por ter função de encobrir isso que nos afeta justamente por nos faltar nomes.

Gaspar Noé, com seu cinema, nos mostra que cinema não se presta apenas a ser objeto de análises e interpretações, mas é o lugar, um logos a mais, que nos permite compreender as questões constitutivas do sujeito do desejo. Irreversível nos mostra nossa irredutível condição de, como seres falantes, portanto desejantes [e gozantes], caminharmos para a morte e que isto é mesmo irreversível. Ele nos mostra isso da maneira mais crua possível e, mais ainda, que essa condição se situa no belo, na beleza [sempre imaginária] como lugar desse nosso infortúnio. Mérito do cinema como esse, pois com cinema corremos o risco cair no engodo de um imaginário consistente, forjado em uma estética previsível de imagens e de um final sempre feliz.

A obra de Gaspar Noé é uma apologia ao pessimismo e à violência, às drogas, à promiscuidade, a todo tipo de perversão humana? Alguém precisa falar disso. Interessa não perder de vista que ele lê nossa sociedade contemporânea, cada vez mais indistinta de um gozo tecnológico e cada vez mais primitiva em seus afetos, na direção que vai dando às suas relações. Por isso, Irreversível seria uma versão contemporânea de 2001, Uma Odisseia no espaço, de Stanley Kubrick (EUA, 1968), como vemos no cartaz desse filme na parede acima da cama da personagem Alex e no movimento da câmera em direção ao céu, para finalizar o filme: começamos pela primeva e terminamos nas luzes de uma orla organizada e feliz. Todavia, no filme de Noé, qualquer lado que se comece a contar a história, estamos diante de um horror.

Os filmes Gaspar Noé, são feitos e efeitos de nossa contemporaneidade: como poeta de imagens, ele é contemporâneo, na versão de Agamben (2008) sobre o que é ser contemporâneo:

 

O poeta – o contemporâneo – deve manter fixo o olhar em seu tempo. Mas o que vê quem vê o seu tempo? O sorriso demente do seu século […] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar em seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para aqueles que experimentam contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (AGAMBEN, 2008, p.62-63)

 

O cinema contemporâneo de Gaspar Noé interpela nosso tempo e nossa obscuridade. Agamben (2008) lembra, ainda, que essa obscuridade somente é possível mediante o reconhecimento das luzes de um tempo. Nos filmes de Gaspar Noé o que não falta é esse jogo luz e obscuro, como na escuridão vermelha [sangue] no túnel em que Alex é violentada, no exagero das luzes alucinógenas de Enter the void (2009) ou, ainda, no muito recente Love 3D (2015) com todas as cores e dimensões do sexo mortal e promíscuo possíveis de serem captadas por uma câmera, melhor dizendo, escrita por uma língua de cinema de modo visceral, que quer entrar no corpo, é invasiva e, assim, para além de agressiva, chega a ser violenta.

 

A experiência que arrebata em Irreversível

 

Irreversível é um filme escuro até por volta de seus cinquenta e cinco minutos, porém, é literalmente obscuro em sua totalidade e o quê se vê são trevas cujas sequências de imagens, em retrocesso, portanto, como todo contemporâneo, voltando às origens daquele drama, nos mostram um tempo urgente: tudo ali é urgente e intempestivo, até às cenas finais onde a luz arde na tela e vemos que é essa luz que permite, por contraste, toda a obscuridade do filme: na beleza das cenas finais, nas cores vivas da natureza e da pele da atriz Mônica Bellucci, o obscuro, lugar da metonímia desajustada e tensa do filme que chegou à metáfora de todo o sexo, a violência e vingança daquela narrativa: lugar da matéria de poesia nesse cinema.

Em Irreversível (2002), a cena de estupro, seguida do espancamento de Alex, que começa por volta dos 40 minutos, dura aproximadamente quinze minutos [uma eternidade em se tratando de cinema]. Essa cena chocou todo mundo, chocou o público do festival de Cannes que, ao deixar a sala de exibição do filme, não esperou pelo pior ainda, cedendo rapidamente ao engodo de uma cena, como se aquela cena fosse o mais obscuro do filme. Como ‘poesia’, esse filme não poderia ser óbvio e deixar condensado em uma única cena de sofrimento o lugar de nossa angústia. No filme, é o lugar da virada: Alex entra no túnel (Figura 2) e a escuridão, enquanto ela caminha, vai cedendo ao vermelho, esse túnel como lugar do infortúnio de Alex (e não o nosso ainda) que se depara com o inesperado e que parece ser inevitável.

Figura 2: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Tênia, o estuprador, em seu ódio às mulheres, ratifica a condição da beleza de Alex como lugar de seu infortúnio. Ele diz a ela (Figura 3): “Sabia que você é muito gostosa para ser uma mulher? Sabia?” Ou, ainda, depois do estupro, justificando o espancamento (Figura 4): “Acha que pode tudo? Acha que pode tudo, só porque é bonita?”

Figura 3: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

Figura 4: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Da extensa cena de estupro e espancamento (Figura 5), e Noé a faz longa para testar o que suportamos de tanta violência e como reagimos a essa violência, se destacam os urros de Alex, que não pode falar nos lembrando dos sons de dor de animais sendo abatidos, mas ela estende a mão em nossa direção [dos espectadores] e nada podemos fazer, a não ser assistir ou, então, sair da sala de cinema: seria a nossa passividade ou nossa covardia ante as questões da contemporaneidade? Nosso egoísmo velado em sentimentos de compaixão? Resta nos sair de cena, como o homem que entra no túnel e ao se deparar com o estupro recua, e dizer: “Coitada de Alex” ou, quem sabe, “Esse cineasta é um pervertido e isso não é cinema!”

Figura 5: Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

 

Toda essa cena nos choca ante um realismo fatal, efeito do trabalho dos atores ali envolvidos e de seu diretor, mas, seria isso o arrebatamento da poesia? Em poesia, ao sermos tomados pelo nonsense, efeito do literal, não conseguimos sair da cena e essa letra nos deixa um traço, como um corte que vai sempre nos fazer perguntar, em um depois, o por quê, pois no tempo de sua ruptura ficamos sim ‘paralisados’ e, em caso de um filme, ficamos só olhando, não saímos da sala de exibição.

Esse arrebatamento nos surpreende pelo inesperado infortúnio das personagens de Vincent Cassel (Marcus) e Bellucci: é ao final de tudo, onde o horror do filme, a violência, a vingança, se justificariam é que se inscreve nosso arrebatamento, a luz faz ali um corte: a beleza como lugar do infortúnio, da personagem de Bellucci cujo infortúnio é ser bela, na personagem de Marcus de ter se apaixonado pelo belo e agora lhe resta restituir pelo ódio a beleza não mais imaculada. Na cena final, a sensual e provocativa personagem torna-se quase intocável, inviolável, intensificando a impotência dos homens diante do abuso da amada que torna ainda mais cruel o desfecho do filme.

O filme está sempre por nos enganar: nos enganamos com Pierre (Albert Duponel), ex-namorado de Alex sempre racional e filósofo [aos moldes da arrogante filosofia francesa] que acaba por se tornar o mais irracional de todos; também, nos engamos com Marcus, promíscuo, violento e sedutor, pois de fato foi um homem apaixonado; e nos enganamos com Alex que sempre foi imaculada, como uma mulher grávida e, finalmente, nos engamos que a maior violência de nosso tempo sejam os atos de violência, pois nossa maior violência é constatar que a direção em que caminhamos, pela vida, é irreversível, é o túnel vermelho.

No emaranhado de língua-imagem que vai montando, Noé nos submete ao filme e espera que nos percamos nele, porque sua intenção é “recriar uma espécie de sensibilidade ou estado de consciência alterado, por meio de armas cinematográficas – som, imagem, edição, o que for preciso”, ele destaca.  Noé, como sujeito gozador, fará o que for preciso, em suas experiências estéticas, para nos lançar ao confronto com o imponderável. Coisa que faz desde Sozinho contra todos (1999), fundamentado em uma espécie de crueldade filosófica aliada a um pessimismo evidente. Essa filosofia é recitada pela boca de seu cruel açougueiro em A carne (1991), sem nos poupar como espectadores: “Por que, afinal, os filhos mostram amor pelos pais?”, “Pode um pai ser amante de sua filha?”, “O único sentido da vida é foder”, lamenta o açougueiro, em que sexo e violência, esta masculina e destrutiva, é a resposta do cineasta a um feminino que todos comportamos: é o ódio a nossa fatídica descompletude subjetiva.

 

 Cinema e literatura

 

A relação do cinema de Gaspar Noé com o cinema de poesia de Pasolini é a proposta de ambos em fazer uma poética da realidade.  Para Pasolini, a linguagem verbal e visual utilizadas nessa representação poética da realidade vão além de um formalismo estético homogeneizado. O cinema autoral de Gaspar Noé rompe com a estética, com a proposição temporal do cinema e esse retorno que se vê não é recordação de um passado, nessa estética é como o diretor vai nos prendendo dentro de um emaranhado, sem uma convenção narrativa, onde o protagonista [conforme Pasolini] é o próprio estilo do cineasta, o traço escrito em um filme. Assim, todo cineasta poeta tem uma letra que é só sua, não pode ser copiada: não se trata, desse modo, de contar uma história de trás pra frente, isso, desde Amnésia (Memento, 2001), de Christopher Nolan, deixou de ser novidade.

Pasolini, experimentador e inventor desse cinema de poesia, não fez de seus filmes modelos da realidade, representações dessa realidade.  Sua realidade não é modelo, pois para ele o cinema “expressa a realidade pela realidade” (PASOLINI, 1982, p107), é realidade em si mesma, e caso exista mesmo uma língua de cinema ela não é homogênea: haveria uma estrutura universal dessa língua estabelecida justamente a partir da problematização dos recursos da língua(gem) cinematográfica. O cinema de poesia não é, assim, uma ilusão sobre a realidade.

Como é possível um cinema que não nos iluda sobre a vida? Brayner (2008) nos lembra de que para Pasolini não se trata de diálogo entre literatura e cinema, mas de outra ‘língua’ mesmo, ou seja, não é o modo de dizer sobre a realidade da literatura aplicada ao cinema. Possivelmente Pasolini, em seu cinema de poesia, buscasse o universal de seu tempo, mas que somente se apresenta na singularidade de cada leitor/espectador/cineasta, pois poesia não é apenas escrever poemas, é um gesto, um ato feito em língua para dar um basta na angústia de cada um.

Um filme que se permite ousar a partir de expressões subjetivas alegóricas e justapostas caracterizam esse cinema de poesia, de acordo com Nachery (2012):

 

Dentre as primeiras impressões do que vem a ser cinema de poesia, podemos citar o aspecto descontínuo e fragmentado no texto e na organização das imagens, os procedimentos alegóricos, os acontecimentos que existem além da experiência ordinária do tempo e do espaço, a força com que são colocadas as sensações, a acentuação da subjetividade, o caráter transcendente, a insubordinação dos elementos lançados na obra, o que vai além do que poderíamos chamar de incoerência, uma vez que o parâmetro não é a coerência em si. […]. (NANCHERY, 2012, p.03)

 

Sobre essa relação cinema e literatura, Pasolini, cuja língua literária não deu conta do que ele desejava dizer em seu tempo, esclarece que existe uma diferença essencial entre literatura e o cinema. Segundo ele:

 

Para que possam ser expressas por meio da literatura, as ideias devem ser representadas por símbolos convencionais, quer dizer, por letras e palavras. No cinema, a técnica é outra, a realidade é representada por signos vivos e significativos. Num filme, se quero mostrar esta árvore aqui, tenho que vir aqui com a câmera para filmar esta árvore. (PASOLINI, 1985, p.10/11)

 

Mas, de todo modo, a língua de cinema mata a coisa, coisa que o verbo faz também, pois é função de toda linguagem.

Silva (2007), ao investigar Pasolini e seu cinema como língua escrita da ação, nos esclarece que:

 

Diferente dos outros meios expressivos, o cinema “não evoca” a realidade como o faz a língua, seja ela literária ou fônica, muito menos a “copia” como o faz a pintura, e por fim como o teatro não a “mima”. O cinema, ao contrário desses outros meios expressivos, também não representa a realidade, uma vez que não constitui em si um meio, um instrumento do qual o sujeito apresenta aos espectadores o mundo externo e preexistente. O cinema “re-produz” a realidade: imagem e som, ou seja, ele a produz novamente, o espaço, o tempo, as relações; e para fazê-lo se serve da mesma realidade material e física: dos corpos, dos gestos, dos objetos e inclusive da temporalidade que pretende reproduzir. À diferença dos outros modos de expressão, que ao retraduzirem o mundo distanciam-se da linguagem das ações e de seu código original, o cinema tem a peculiaridade de reproduzi-lo fielmente. O cinema permite assim estar dentro da realidade sem nunca sair dela: permitindo expressá-la por meio dela própria os seus aspectos mais ocultos, sua dimensão “sagrada”, não naturalizada. (SILVA, 2007, p.32)

 

 

 O arrebatamento

 

Na cena final, Alex está tomando sol, observando crianças em um ambiente bucólico, pueril e solar, enquanto a Terra gira (Figura 6).

Figura 6. Cena de Irreversível.

Fonte: Gaspar Noé, 2002.

Nesse fechamento do emaranhado de nó do filme de Gaspar Noé, a beleza da cena arrebatada, evocando toda beleza no filme, encarnada em Alex: “Arrebatadora é também a imagem que nos será imposta por essa figura de fenda, exilada das Coisas, em quem não se ousa tocar, mas que faz de nos sua presa” (LACAN, 1965/2003, p.198). Noé é arrebatador e nós os arrebatados seguindo os passos de Alex desde sua entrada no túnel até seu lançar-se ao céu, aos moldes de uma odisseia no espaço. Lembremos que Tênia ousou não somente tocar, mas destruir essa figura de nosso infortúnio.

Desde a cena no túnel, lugar de torção dessa língua de cinema que está voltando sobre si mesma, o emaranhado de nó dessa narrativa passa a ser desatado em nosso arrebatamento final e cuja violência nos salta aos nossos olhos nesse nó de língua. Contudo, é preciso ir além disso que nos salta aos olhos: nossa angústia nos salta no desfecho desse emaranhado, quando Noé coloca a nossa frente o infortúnio da beleza de Alex: as cenas finais são reluzentes, mas toda essa beleza já está manchada de sangue. Nossos olhos, de espectadores, chegam ao desfecho de Irreversível manchados de sangue, obscuros de vermelho. Importante lembrar que após o estupro e o espancamento, no tempo retrovertido do filme, Alex desaparece, como acontece com o sujeito contemporâneo: ela não é mencionada em toda a primeira parte do filme, além do reconhecimento de Marcus de que aquela face destruída era sua mulher. Alex está perdida? O que vemos nas cenas finais está perdido, não tem mais volta.

O poeta cineasta ao fazer seu filme indo do fim ao início não teria, assim, desejado reviver Alex? Não seria isso, um feixe de um cineasta assim esperançoso, não de todo pessimista e, portanto, pelo menos no cinema, será tudo mesmo irreversível?

Olhar Alex, assim, é nos deparar com o “[…] o limite em que o olhar se converte em beleza, [com] o limiar do entre-duas-mortes, lugar do infortúnio”, conforme Lacan (1965/2003, p.204).

Esse limiar entre nosso caminho ordinário e o lugar que nele nos deparamos com nosso infortúnio, é o mesmo onde gravitam as personagens de Gaspar Noé, personagens situados entre nós, gente comum, para nos mostrar que existem em todas as partes a crueldade, que o ódio e a violência não é mérito dos homens socialmente classificados como violentos, criminosos, e que nossos atos, irreversíveis em um tempo também irreversível, mancham a luz de nosso tempo e nos oferecem, nos deixam à mercê de nós mesmos e da ilusão de que podemos nos defender de nós mesmos.

Alex foi oferecida à “morte” em nome de quê? Em seu cinema, Gaspar Noé sublima [função de toda arte] o fato de que a dor de qualquer tempo é efeito, antes de tudo, de nós mesmos.

O sujeito contemporâneo aparece nas experiências estéticas atuais sempre como dissolvendo uma lógica rasa de estereótipos sociais e culturais, dissolvendo esse imaginário egóico e iludido em uma unidade idealizada. Em Gaspar Noé, o sujeito contemporâneo, e seu inconsciente que comporta um não realizado, para além da linguagem, se apresenta em uma estética, em uma língua que corta essa unidade: não somos o que parecemos ser e nos lançamos, vamos mesmo na direção da dor, de encontro a um gozo pela dor. Porém, é na língua (e nas linguagens) a possibilidade de cerzir borda a essa drama subjetivo de nosso tempo.

 

Considerações finais

 

As questões do cineasta Gaspar Noé vão se desdobrando ao longo de seus filmes sob formas obscuras que se debatem com as luzes. Para compreender sua lógica é preciso, antes de qualquer coisa, nos desfazer da lógica da linearidade, da crença que temos de que caminhamos em caminhos retos, é preciso não ter pressa, fazendo-se necessário ir até o final, ou até o começo, de seus filmes. O cineasta nos mostra que caminhamos no caos e que caos não significa ausência de ordem simbólica, significa vários vetores e, de fato, em direções surpreendentes, inesperadas.

Irreversível (2002), como Cinema de Poesia, como a expressão da vida contemporânea, se escreve por uma letra torta, obscura, iluminada, manchada de sangue, marcada pelo amor, destruída pelo ódio, explicada pela razão, confrontada com a desrazão, mas sempre tentando dar conta do fatídico encontro entre sexo, violência, sangue e vingança, afetos banais em nossos tempos, como aposta Noé ao nos mostrar que toda nossa história é escrita em letra de esperma e sangue, de sexo e morte.

 

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[1] Dirigido por Gaspar Noé, “Irreversível” foi realizado na França e estreou no Festival de Cannes de 2002. A distribuição é da Lions Gate Films Inc., a fotografia é de Benoît Debie e Gaspar Noé e a produção é de autoria de Christophe Rossignon. O diretor também é responsável pela edição e pelo roteiro. A atriz Monica Bellucci interpreta Alex, Vincent Cassel faz o papel de Marcus e Albert Dupontel é Pierre.

 

Em tempos de retrocessos, o resto de infância

Psicologia em Foco, CRP 04, de 13/07/2016

 

(* Trata-se de uma conversa sobre a temática, sem outros propósitos. Os termos Infância/criança por vezes se sobrepõe na mesma função semântica**Autores mencionados no corpo do texto.)

 

Lacan (1953) afirmou que aqueles praticantes da psicanálise que não considerem a subjetividade de sua época deveriam desistir de praticar a psicanálise, por isso, trabalhar na clínica com crianças, seus impasses constitutivos e sofrimento psíquico é localizar a criança na contemporaneidade, é atualizar os discursos sobre a criança já que nestes convergem os sintomas da criança e o que é uma criança.

O crítico Neil Postman, no livro O Desaparecimento da infância (1982), nos mostra os deslocamentos que a    ‘ideia’ de infância vem passando considerando as relações entre essa ideia, a tecnologia de comunicação, a consciência, os valores culturais e os sentimentos. O autor retoma a linha dos estudos sobre os costumes, na linha traçada por Norbert Elias, Ariès Philippe e outros, expondo sua tese do desaparecimento da infância. No prefácio à edição mais recente, o autor reafirma a mesma tese e se declara não ser capaz de apontar saídas para interromper a tendência por ele identificada anos antes.

O termo “desaparecimento”, no título da obra de Postman, expressa que as crianças estão se tornando seres adultos precoces ou pseudo-adultos.  A argumentação recupera as semelhanças e distinções entre crianças e adultos no que tange ao vestuário, a linguagem, as atitudes e os desejos, em diferentes contextos históricos.

A tempos vê-se, em diferentes áreas, autores colocando em questão a infância como o lugar discursivo, histórico, social, cultural e subjetivo de crianças e adolescentes. Se olharmos as pinturas de todas as épocas, é possível ver, desde antes a idade média, a ausência de crianças e adolescentes nas pinturas e como, pela via da religiosidade, ela começa a aparecer lentamente nas pinturas em raras situações de cuidado, de educação entre outros. Mas algumas pinturas se destacam: aquelas em que as crianças sempre apareciam de mãos das com figuras de morte, pois, entre outras situações, ficava-se sempre a dúvida se aquele bebê, aquela criança iria ou não sobreviver, devido à mortalidade infantil. Essa morte da criança, para alguns, se apresenta em retorno e, podemos dizer, de modo pessimista, não apenas de modo figurativo. Questões se apresentam como ‘O que se espera de uma criança?’, feita por Claúdia Mascarenhas ou,  equivocadas confusões se estabelecem como a feita entre a queda de ideais parentais e de referências de lei (simbólica) com um ‘suposto’ fim da metáfora paterna.

São tempos em que é preciso perguntar a que imaginário social essa noção de infância estaria submetida (De a-criança ao real infantil: reflexões psicanalíticas acerca da infância/Eric Ferdinando Kanai Passone/2016/Estilos da Clínica). Esse imaginário está submetido à evidência científica, evidência que é apenas consistência, segundo minha hipótese. É a cruel evidência do Você é isto, tamponando o Você poderia ser isto ou aquilo ou aquilo outro, da alteridade.

Ouvimos que hoje, no agora da sincronia, do tempo mesmo da infância, são tempos de retrocessos e de conservadorismo. Estes  termos  não têm a ver com algo do tipo “naquele tempo era melhor”. O que estaria na cena contemporânea como seu obscuro (Giorgio Agamben) é justamente uma espécie de retorno a aspectos culturais e históricos em que os processos civilizatórios imaginariamente retomam seus equívocos históricos higienistas e sócioeducativos, enganando-se novamente sobre a inabalável eficácia do saber biológico.

Em francês, retrocesso traz o sentido de recaída e figurativamente “reculée”, de algo remoto. Também, é recochete [a volta que um corpo faz quando é atingindo]. Portanto, o que é do sujeito volta sobre ele mesmo, porém sem o corte da linguagem. Estaria a infância, esse objeto cultural e social ricocheteando, retornando a algo remoto, como aquilo da presença de uma morte nas pinturas? Ou mesmo a antes, a esse ‘reculée’, onde não haveria nem mesmo essa noção de infância, frente ao número de mortes cotidianas de todas as formas? Portanto, valeria perguntar se realmente a mortalidade infantil estaria sob controle, se não estaria em pleno desenrolar uma mortalidade infantil do tipo social, histórica e cultural? Por isso, em tempos de retrocesso, o resto de infância.

Estou considerando a construção histórica e social de infância, em que crianças e adolescentes passam  a ser de interesse dos processos de construção de saber, articulada com o ‘fato’ constituinte de que ‘infância’ é tempo lógico do psiquismo/da constituição do sujeito, e isso diz, entre outras coisas, que há um risco desses processos se encontrarem com o cerne de um sujeito do desejo, que é sua condição de subversão: subverter, fazer outra versão ao que está aí, fazer outra versão ao seu direito de gozar, de ser gozador. Qual versão temos em um tempo determinado pelas leis de consumo, estas em substituição às leis de produção? Aquilo que produzimos como ‘sujeitos’ tinha um excesso, um resto que não se consumia, pois deveríamos abrir mão, cedê-lo ao outro como pagamento a nossa condição de desejar: seria um preço qualquer, um valor não contável que pagamos por isso [uma alegoria ao objeto a], o resto em presença vazia e que encerraria nosso engodo de totalidade. Essa é a condição nuclear da infância, de ir escrevendo em seu percurso isso que é resto, inscrevendo a incompletude. Porém, como se dá essa inscrição em tempos de uma completude gozante, como a infância vem inscrevendo esse resto pelas vias de uma espécie de obrigação ao gozo em que devemos consumir o que produzimos em excesso, na nova ordem e, assim, não ceder mais ao desejo, à falta?

Não concordo com o fim da infância, mas é preciso fazer questões em torno disso que ainda é resto dos restos da infância e dos modos contemporâneos e obscuros das tentativas de fazer essa ‘morte’, tentativas de calar o choro e o grito original de uma criança, praticamente aquilo que dá início à vida. Conto duas cenas de filmes sobre isso.

Primeira cena do filme Filhos da esperança (EUA/2006). Estamos na Terra, 2027. As mulheres não conseguem engravidar por algum motivo misterioso. O ser humano mais novo morreu aos 18 anos e estamos, então, em um risco concreto de extinção da humanidade. Theodore é uma jovem que misteriosamente aparece grávida [um milagre que não tem explicação religiosa, pois não há mais um Deus a se ter fé], e o filme gira em torno de protegê-la e proteger o bebê que consegue nascer e ir sobrevivendo em meio à miséria e à guerra, em um tempo destituído de todo traço de civilização. Destaco a cena do choro misturado ao grito, nesse mundo sem criança. Quando o bebê nasce é preciso escondê-lo. Durante um tiroteio, o bebê começa a chorar de modo intenso, quase como gritos. Aos poucos, vemos como esse choro se sobrepõe aos tiros e todos, abismados, param diante daquele som, pois havia sido a 18 anosa última vez que um choro de criança havia sido escutado. Incrédulos, as personagens esfarrapadas se aglomeram em torno desse chamado à vida.

Na segunda cena, do filme Perfume, história de um assassino (2006), a mãe do pequeno Jean-Baptiste o abandona logo após o parto, no meio do lixo, no meio do esgoto do mercado de peixes, na fétida Paris de 1738, o abandona para a morte. O bebê chora, grita forte como apelo de amor a um resto de cheiro daquele objeto que ficou como promessa de ser objeto de amor. Choro que naquela história anuncia a morte, e as pessoas se aglomeram em torno desse chamado à morte, pois é a isso que Jean Baptiste vai se dedicar em vida.

Dessas duas cenas destaco apenas como pode ser fácil a uma criança morrer e desaparecer, todavia é da infância e dos corpos de meninos e meninas que essa noção vai tomando forma e se tornando a presença que exala a vida no meio das obscuridades: pode ser difícil de uma criança morrer.

A infância é tempo, lugar sincrônico do aqui e agora, de mudanças, transformações, perdas e ganhos, da passagem de um sujeito que não fala para aquele que vai sustentar seu dizer, é o caminho que percorremos para entrar na cultura, dela ser efeito e sobre ela ter efeitos. É o processo civilizatório de Freud, do mal-estar como resposta à nossa hostilidade pulsional. A infância é o caminho de (des)encontro com a sexuação, encontro com a partilha dos sexos pelas vias dessa sexualidade que é pura cultura.

Conservadorismo tem como sinônimo conservantismo que soa e ressoa de modo duro em tempos em que não se quer deixar restos/que não se quer sujeitos, em que a fala toma função imaginária e perde seu estatuto simbólico, perde sua opacidade.

Quais tentativas de impedir essa ascensão à linguagem, no contemporâneo da infância? Pode-se enumerar várias: tornar patológica a lei básica de constituição do psiquismo, que é a repetição, a persistência em sair de sua passividade para a atividade, pelas vias da criatividade, do brincar e tornamos isso agitação, hiperatividade em um mundo de excesso de excitações; não erogeinizamos seu corpo, pela significação, mas violentamos esse corpo, passamos ao ato; tornamos crianças e adolescentes consumidores e autoconsumidores, mesmo sem oferecer-lhes condições subjetivas e sociohistóricas para isso, sem lhes dar a possibilidade de escolher entre o ter e o renunciar a algo; não falamos com elas, o que barra a transmissão simbólica, a transmissão de ideais parentais [apostas que fazemos nesses pequenos sujeitos]; matamos o pai [não a metáfora paterna] como aquele que nomeia e não possibilitamos aos pequenos ir sem esse pai; destituímos os espaços primordiais de supor saber sobre esse sujeito nas versões falidas da família e da escola em que afetos são patologizados; vemos isso na questão sobre a agressividade em nome da segurança, de riscos gerenciáveis; os movimentos são cerceados e o corpo da criança deixa de ser convocado; o sofrimento psíquico é tamponado [abafado!] por todas as formas de comportamentos observáveis tratáveis e intratáveis: não há pathos, não há mais paixão na infância; as crianças escolhem e na adolescência não há mais escolhas a serem feitas, ideais a serem transgredidos.

Como a noção de infância, revolucionária em seu fundamento, não irá sucumbir a esses tempos de tradicionalismo quando o direito à diferença é negado, de criatividade eletrônica que sufoca a criação, de invenções ao contrário [brinquedos prontos], de um higienismo sob a tutela do biopoder, de insistência em velhas fórmulas familiares, em uma educação que se nega à transmissão histórica e nega veementemente a sexualidade infantil; de um sistema que começa a assumir não querer incluir o outro, de um cotidiano imediato e forjado em imagens enganadoras, em facadinhas que viram facadinhas de nada como na pintura de Frida Khalo, de hostilidades ao singular, de silenciamento do que produz riscos de ruídos e de uma afetividade sentimentalista que barra a circulação de afetos?

Tempos em que a ciência da evidência é gestora da vida e dos riscos de viver. Podemos perguntar, por exemplo, considerando alguns trabalhos feitos, que relação tem a criança e o adolescente com a cidade em que vive, em que deveria circular? Qual o tempo do tempo da infância nesses tempos de urgências? O que é urgente? É possível que infância seja uma evidência? O projeto de felicidade não é garantido pela norma que diz ‘você deve ser feliz’, e ser feliz é ser eficiente, ser igual, hoje em dia.

Diante disso, começo por citar um verso de Hilda Hilst: “Tempo de cegueira, quando os homens não se veem”, tempo, aliás, confirmado por José Saramago no Ensaio sobre a cegueira. Tempo de surdez e tempo de mudez, acrescentaria. O filósofo Giorgio Agamben diz que repetir é a lei da infância, nos termos freudianos: repetir, persistir, reconhecer-se e estranhar-se como semelhante, o que não é negar a semelhança, se separar, diferenciar-se, ser alteridade, ir-se do outro, mas levar as marcas e os traços dessa experiência simbólica [desamparo], perguntar o que quer, criar, recusar, verter sua nomeação, atuar e dizer, acolher no corpo a língua que lhe causa, alocar a falta sexuada no corpo.

Jacques Lacan e Manuel de Barros ajudam a ver e compreender esse resto. Dois que nos retornam pela poesia. Lacan, em Duas notas sobre a criança, entregues a Sra. Jenny Aubry em outubro de 1968, diz que o sintoma da criança é o ‘representante da verdade’ [não é A verdade]. Na criança esse sintoma se encontra na situação de responder por aquilo que há de sintomas/de verdade na estrutura familiar [correlato das estruturas simbólicas]: criança é o correlato de uma fantasia do outro, sendo aí a presença do terceiro para assegurar essa mediação e o que esse Outro quer que eu deseje e o que eu quero desejar. Duas faltas. É dessa não mediação pelo desejo, pela linguagem, que temos a criança objeto, a criança resto do desejo do Outro. Ser esse resto da fantasia do Outro com seu desejo nomeado aprisiona a criança. Esse sintoma é sexual e faz laço. A criança faz sintoma, vai dizer o que se passa, pois  é “um corpo, mas um corpo que não consegue fazer a aprendizagem da satisfação, que não consegue regrar seu prazer segundo as vias previstas pelo Outro [sempre é muito pouco, ou demais ou não é assim]; em suma, é um corpo ineducável que faz fracassar todas as ideias concebidas sobre uma progressão harmoniosa” (Yolanda Mourão Meira, As estruturas clínicas e a criança, p.19).  Criança parece um ser destinado a gozar. De fato, é. Todavia, é justamente a direção dada a essa polimorfa perversão, como disse Freud sobre a sexualidade infantil, que seria a condição humanizante.

Na Alocução sobre as psicoses da criança (1967), Lacan, dizendo não haver gente grande, cria a expressão ‘criança generalizada’ e, sendo todos crianças, todos destinados a gozar, quem responderia pelos modos de gozar de cada um de nós? Quem responderia pela incompletude? Essa criança generalizada [que mata um pouco a lógica estrutural da infância como distinta da do adulto, e  Lacan parece chamar a atenção para isso] é a criança objeto, efeito do encontro entre o capital/mercado e a ciência, do discurso universalizante da ciência. Assim, é essa dupla que responde pelos nossos modos de gozar dizendo, Goza! Cada um irá responder a essa condição de ser-para-o-sexo via a fantasia, vias as tentativas de saber-fazer com o que goza. Ou não.

Nessas condições, que lugar tem hoje os devaneios criativos de uma criança lembrados por Freud, para verter essa condição de gozo, para ser resto e fazer o resto? Quem vai dizer isso é Manuel de Barros, pelas vias das ‘disfunções líricas’ no brincar da criança, no laço que faz com o Outro, na circulação dos afetos nas cenas sociais e culturais, do corpo convocado a comportar algum sexo, não todo sexo, a incompletude, no que diz e no que lhe é interdito.

De início, Manuel de Barros diz que seria bom ter “um parafuso a menos”, como um poeta, aquele que faz e se atreve a mexer com a rigidez das formas da língua, da língua de brincar. Mas, ele continua, não sendo possível ter um parafuso a menos: “o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos. ” A sugestão do poeta é trocar o parafuso, valor poético do fazer, pois é isso que vai provocar uma disfunção na lírica poética. Trocar:  trocamos com o diferente e o valor é essa diferença, ação infantil transgressora nesse tempo de sintomas universalizantes e de generalizações.

Há um poema de Manuel de Barros chamado “A disfunção” e é dele que podemos ver os restos da infância, seus sintomas que dizem da verdade. Lembro que Freud, no texto sobre escritores e devaneios, diz que o processo criativo de um poeta é o mesmo de uma criança ao brincar e todos se dão em torno da insistência de algo inacessível. Esse poema está lá, perto do “Tratado geral das grandezas do Íntimo” (2001), de poesias que são guardadas nas palavras: é tudo que o poeta diz saber, pois gosta de não saber quase tudo. Nós, ainda mais,  e a infância também é guardada nas palavras, sujeito é guardado na linguagem que o carrega. O poeta assume que mente. Uma criança não mente mais? Deveria.

Manuel de Barros escreve poemas desconfiados. Com ele, aprendemos que é preciso desconfiar da evidência, do harmonioso, daquele que gosta de saber o tudo: comecemos daí. Crianças questionadoras [de seu desejo] fazem questões, desconfiam de nossas promessas. Em um tempo de funções de toda ordem transmitidas por neurotransmissores, o poeta nos conta d’A disfunção, daquilo que funciona diferente, um mal-estar impossível de funcionar.

 O poema A disfunção, de Manuel de Barros: “Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso a menos/Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos./ A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica./Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica. 1 – A aceitação da inércia para dar movimentos às palavras/2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais/ 3 – Percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos/ 4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras /5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes/ 6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra/ 7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros. Essas disfunções líricas acabam por nos dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.”

Dessa série sintomática que nos enlaçam, escrita pelo poeta, temos os modos de ‘trocar’ os parafusos, fazer na diferença, fazer sintoma cujo valor está exatamente nesse fazer – não no produto. Esse fazer, para fazer valor, gasta tempo, é preciso que nele se demore, que se insista e persista. Essa demora é a aceitação da inércia, que se pare: em tempos velozes [e furiosos], esse sintoma 1 é o de paralisar, é o modo de ‘dar movimento às palavras’, em que uma criança deveria parar-se em seus devaneios criativos, repetir e repetir. Nosso sintoma 2 é o de ‘vocação para explorar os mistérios irracionais’, resposta contundente à poderosa evidência da razão tecnológica e científica: quem melhor explora mistérios irracionais que uma criança? Sintoma 3: ver as seriações anômolas entre as palavras é ofender a ordem própria da língua, é brincar com a língua, ver o que está para além da norma forjada e estabelecida: ousado não seguir as regras, ousado, por exemplo, gozar menos, ou voltar a gozar naquilo que mais valia. 5: ‘fazer casamentos incestuosos’, jogar abaixo padrões vigentes. Sintoma atualíssimo. Como se transmite a diferença sexual a uma criança, diferença que é o resto do impuro, do sexo, para além das normas vigentes? Nosso sintoma 6 é o de transformar o que se mostra impossível, tornar a pedra um canto é um trabalho criativo de uma criança em seu brincar, todo seu faz-de-conta gira em torno de tornar a pedra um canto, tornar qualquer coisa em qualquer coisa. E o sintoma 7, que encerra a série, é essa mania de ‘comparecer aos próprios desencontros’: é o ir e vir, em ausência e em presença, um estranhamento consigo mesmo e um perder-se de si e do Outro, coisa que criança deve saber-fazer.

São sintomas, tentativas de saber fazer com esses obscuros conservadores, disciplinadores, opressores, inspetores, vigilantes, asfixiadores de nossos tempos, conhecedores paranoicos do todo. Seria bom, na língua do poeta, trocar os sintomas criteriosos de um DSM pelos sintomas da disfunção, da troca de parafusos. É essa infância, com um parafuso em constante troca que alocaremos em nosso discurso. São esses os sintomas daquela criança sintoma, cuja saída é trocar os parafusos, é ser desarmoniosa como condição ética da infância.

Para terminar, ainda com o poeta, no “Retrato do artista quando coisa”: “A maior riqueza/ do homem/ é sua incompletude/Nesse ponto sou abastado. ” O que resta de infância, em nossos tempos de retrocessos, é ser abastada de incompletude, rica é ser o que resta, ser ‘completa de vazios’, nos termos de Manuel de Barros, que nos apontou saídas para interromper a tendência ao desaparecimento da infância.

 

Cirlana Rodrigues de Souza

Psicóloga e psicanalista, doutora em Estudos Linguísticos, na linha de pesquisa Linguagem e constituição do sujeito. Trabalha na Rede de Atenção Psicossocial do Município de Uberlândia e em consultório particular.

E-mail: cirlanarodrigues@gmail.com

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