V Reunião Aberta – 2023-2

Em que língua se conta de uma análise?

Apresentação e Convocatória escrita por Cirlana Rodrigues de Souza

Estamos em Uberlândia, Minas Gerais e, apesar de Sertão, não é bem o Sertão de Guimarães Rosa. Mas, como todo Sertão, está em nós. Faz nós, enlaça, desenlaça, amarra, solta, amordaça, liberta, afeta pessoas, embaraça. E é nesta terra, cada vez mais árida, que escutamos, como analistas, sujeitos que se propõem a falar de si, a dizer de si. Sendo cada sessão de análise uma poética e cada pessoa uma poesia, partimos disto: uma análise é uma reinvenção das línguas, de uma mesma língua enxertada de novas palavras, da língua do Outro que me causa, que herdo, traduzo, transformo e com a qual atravesso os tempos. Numa análise, torno essa forma mais humana que existe um discurso, me localizo, localizo os outros. Conduzo, como todo falante, a civilização. Quando uma criança fala, seja como for, num gesto, num grito, num silêncio, num barulhinho de voz qualquer, nas palavrinhas tortuosas e inventivas, essa civilização caminha, avança Sertão adentro. Se Guimarães nos faz (a)travessar o Sertão toda vez que se lê a instância da letra com a qual nos contou ao mundo, convidamos aos interessados na psicanálise à escuta do que temos a dizer sobre as palavras ditas e sobre os ditos por traz delas, como praticantes do inconsciente. Escutar a nós e aqueles que invocamos a contar que línguas falam e como escutam as línguas dos Outros, línguas impregnadas de ecos, memórias e associações, pois uma palavra, afinal de contas, não é apenas uma palavra, carrega sempre um segredo: carrega nosso desejo. 

Data: 01/12/2023 e 02/12/2023

Evento Presencial e Gratuito em Uberlândia, MG

Local: Anfiteatro 5OA – Campus Santa Mônica/Universidade Federal de Uberlândia

Necessário inscrição prévia. Vagas limitadas. 

Em breve vamos divulgar a programação completa.

LINK de Inscrição –> Sympla (As inscrições começam no dia 24/10/23 (Terça-feira)

Entrevista com Fábio L. F. N. Franco – III Reunião Aberta – Hæresis Associação de Psicanálise

A III Reunião Aberta – Hæresis Associação de Psicanálise foi realizada em 06/07/2019. Considerando o entrelaçamento entre a experiência clínica como nuclear da psicanálise e o discurso psicanalítico como pertencente ao campo social, histórico, cultural e de saberes da sociedade contemporânea, abordamos as formas de subjetivação na atualidade brasileira.¹ Nosso tema partiu da proposição do pesquisador e psicanalista Fábio L. F. N. Franco, membro do FCL (SP), Doutor em Filosofia (USP) e integrante do LATESFIP (USP): “O Governo do excedente: Necropolítica e formas de subjetivação“. 

Buscando ampliar o debate, conversamos com Fábio Franco sobre seu trabalho e o tema de nossa reunião.


Thiago Martins de Melo, Necrobrasiliana (2019)

Hæresis: Durante a leitura de sua tese “Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil” ² e, retornando ao texto freudiano Luto e Melancolia (1917), é possível considerar que a melancolia como conceito estabelecido por Freud é pertencente aos tempos de gestão da vida [biopolítica] e, por isso, faz-se necessário sua atualização para nossos tempos de gestão da morte [necropolítica]? O que pode ser mostrado no enunciado: “Não bastasse a minha melancolia, agora a melancolia do mundo.”

Fábio: Não penso ser possível dizer que um conceito é necropolítico ou político. Temos exemplos de conceitos forjados para justificar formas de controle político da população que foram reconfigurados como categorias orientadoras da crítica social. Tal é o caso do próprio conceito de biopolítica, que aparece para legitimar as formas de purificação e saneamento do corpo social, mas se converte, com Foucault, num instrumento essencial para se conduzir a perspectivação crítica das tecnologias de poder a partir do século XVIII. Sendo assim, mais do que determinar se a melancolia é um conceito bio ou necropolítico, o que, insisto, não me parece nem importante, nem possível, é acompanhar os destinos dessa categoria clínica da Viena de Freud – que, é bom lembrar, não forja o conceito, mas o inscreve no campo da psicanálise – para a América Latina, para a Palestina ou para a África. Dessa forma, é possível identificar as formas como a melancolia se inscreveu em dispositivos de necrogovernamentais do sofrimento social, tornando-se, como sustentamos na tese, um afeto necessário para a organização dos vínculos em determinadas sociedades.

Hæresis: Ainda, considerando suas elaborações a partir do texto freudiano mencionado, e discutindo “as ressonâncias políticas da exclusão social do luto, e de sua reclusão como fenômeno psíquico individual” (Franco, 2018, p.175), qual sua posição frente às contundentes críticas epistemológicas feitas atualmente, dentro do próprio campo psicanalítico, sobre uma ‘espécie’ de impossibilidade de ‘seguir com Freud’, impossibilidade essa marcada por uma veemente crítica que coloca em destaque um Freud indissociável da leitura biológica em conceitos como o de ‘pulsão’?

Fábio: Essa frase citada da minha tese se inscreve no momento que apresento a leitura de Jean Allouche sobre Luto e Melancolia, de 1917. De fato, para Allouche, esse texto de Freud pode ser compreendido como um esforço de resgatar o estatuto normal do luto enquanto fenômeno psíquico individual. No mesmo capítulo da tese, recupero a interpretação que a filósofa estadudinense Judith Butler constrói sobre o mesmo artigo freudiano. Ela, contudo, interessa-se por colocar em relevo exatamente o contrário do que preocupava Allouche. Para Butler, Luto e melancolia é um texto clínico com evidentes ressonâncias políticas, que teriam passado despercebidas talvez para o seu próprio autor. De certo modo, essa significativa diferença nas interpretações de Luto e Melancolia empreendidas por dois qualificados estudiosos de Freud revela que a relação entre um leitor e uma determinada obra não pode tomar a forma de um mero decisionismo consumista do tipo: “quero isso, não quero aquilo”.

O filósofo político contemporâneo, Claude Lefort, no seu magnífico estudo sobre Maquiavel, intitulado O trabalho da obra, publicado originalmente em 1972, insiste que uma obra de pensamento não existe fora das relações que tecem entre si texto, escritor e intérpretes. Não se trata, porém, de relações pacíficas, harmônicas. Ao contrário, a obra de pensamento se caracteriza pela negação de um suposto saber, que assumia o lugar de verdade absoluta, abrindo espaço para a emergência do novo, de perguntas até então obstruídas, de lacunas que darão a pensar e a dizer na posteridade, na história. Mas, observava Lefort a respeito dos intérpretes do pensador florentino, há sempre o risco iminente de que os leitores tentem colocar a obra no antigo lugar que fora ocupado pela verdade absoluta destronada, tamponando a indeterminação produtiva da obra. Acontece, porém, que ao tentar determinar a indeterminação que pulsa na obra, o intérprete, paradoxalmente, faz aparecer nelas novas zonas obscuras, irrepresentáveis. Assim, por mais que se queira reduzir a obra ao silêncio de uma verdade idêntica a si mesma, a indeterminação irrompe, projetando-a novamente na história.

Fiz essa longa digressão pois creio que as considerações de Lefort lançam importantes considerações sobre a pergunta que vocês me colocam. Nós, psicanalistas, conhecemos bem esse preconceito realista, denunciado por Lefort, que anima muitos dos nossos colegas, leitores de Freud e Lacan. Eles pressupõem que sob a obra, há a verdade da obra; que sob as indeterminações, lacunas, rasuras, contradições dos textos, há Um sentido inscrito no seu âmago, que está à espera dos melhores leitores para ser finalmente posto à luz. “Ao menos, deve existir um não lacunar”, fantasiam, apesar das análises concluídas. Contudo, os textos de Freud, Lacan e outros resistem a todos esses esforços, continuando a nos fazer pensar e dizer.

À luz dessas considerações, parece-me que é insustentável dizer que “não é possível seguir com Freud”, uma vez que Freud, enquanto nome da obra, não é capaz de unificar a indeterminação que insiste nos seus textos, forçando a abertura de novas possibilidades interpretativas, como as que eu apresento na tese.

Quanto a isso, um excelente exemplo é justamente o conceito de pulsão. A partir de Lacan, pode-se interpretá-lo de maneira radicalmente oposta a toda tentativa de identificá-lo com uma espécie de resíduo biologizante no interior da metapsicologia freudiana que apontaria para a tendência a um estado bruto inorgânico. A pulsão de morte, segundo alguns autores na esteira de Lacan, é uma violência contra o Eu entendido como unidade sintética da personalidade e, portanto, modelo da organização psíquica dita normal. ³ Estaria contida nessa pulsão o que permitiria indeterminar as formas fixas, identitárias e egológicas por meio das quais os sujeitos se socializariam.

Hæresis: Sobre isso, sua visada é da psicanálise, assim como a antropologia, dentro do campo das ciências sociais. Você poderia discorrer, brevemente, sobre que impasses teria para a psicanálise e o quão produtivo seria esse tipo de articulação?

Fábio: Não é incomum ouvirmos colegas psicanalistas sustentando a irredutibilidade radical da psicanálise a qualquer outro campo de conhecimento, como se houvesse uma barreira de intradutibilidade epistemológica, ética e política a separá-los. Todavia, parece-me que essa posição não condiz com o próprio processo de formação da teoria e da clínica psicanalítica, nas quais as trocas com outras áreas do saber são essenciais, seja porque fornecem hipóteses teóricas e instrumentos conceituais incorporados pela psicanálise, seja pelo fato de colocarem problemas capazes de indeterminarem o que parecia bem assentado como evidente na teoria e na prática psicanalítica. Os exemplos são incontáveis: Totem e tabu e a antropologia; Psicologia das massas e a psicologia social; O Seminário, livro 16, e a lógica, a matemática; o retorno lacaniano a Freud possibilitado pela virada estruturalista na antropologia, com Lévi-Strauss, na linguística, com Saussure, Jakobson e outros, na crítica literária, com Barthes; além de muitos outros casos, cujos rastros, nem sempre explicitados pela pena dos teóricos da psicanálise, podem ser localizados de Freud ao chamados pós-lacanianos. Afirmar que a psicanálise está numa ilha teoria e prática, a meu ver, seria o mesmo que pretender encerrá-la numa espécie de condomínio fechado, com todo o mal-estar, sofrimento e sintomas decorrentes disso, como vem sendo explicitado pelo trabalho de Christian Dunker.  

Hæresis: Acerca da clínica psicanalítica, quais são os impactos na direção de tratamento e na escuta dessas formas de subjetivação efeitos da necropolítica, na medida em que a individualização da prática de cuidado individual por vezes silencia o coletivo, como sustentam muitas críticas feitas à psicanálise (a partir de um entendimento tradicional e elitizado da disciplina)?

Fábio: Por um lado, não acredito ser possível responder a essa questão sobre a clínica desde uma perspectiva teórica, que, normalmente, tende a ser generalizante. No limite, é a clínica, entendida como diferentes experiências clínicas singulares, que pode fornecer fragmentos de articulações a respeito de se e como os efeitos de subjetivação da necropolítica organizam processos de identificação, aparecem na transferência etc.Por outro lado, a pergunta que vocês me colocam aponta para um problema mais complexo, a respeito do qual apenas posso esboçar alguns caminhos para atravessá-lo: trata-se da questão sobre as relações entre a prática clínica psicanalítica e as elaborações teóricas, embasadas psicanaliticamente ou não, que se dedicam a analisar criticamente o campo social a partir dos circuitos de afetos que constituem sua verdadeira base normativa, como tem insistido Vladimir Safatle. ⁴   Há anos, o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, da Universidade de São Paulo, o LATESFIP/USP, vem desenvolvendo pesquisas mobilizadas por esse problema. ⁵ Na minha tese, é a essas pesquisas a que me refiro quando, no último capítulo, procuro sustentar, apoiado sobretudo em Butler, Freud e Lacan, que a melancolia é uma das patologias do social da necrogovernamentalidade. ⁶⁷⁸

O conceito patologia do social tem uma longa história de utilização em diferentes ambientes teóricos. Por isso, vale dizer, muito resumidamente, que, no LATESFIP, temos construído o entendimento de que uma patologia do social consiste numa forma de funcionamento social a partir da gestão do sofrimento psíquico. Como já havia mostrado Canguilhem, uma patologia, particularmente as patologias psíquicas, não é uma realidade natural identificada a partir das suas manifestações sintomáticas. Uma patologia é, antes, um conflito normativo entre o organismo e o seu meio, entre uma forma de vida e as normas sociais, com os valores que lhe subjazem. Por isso, toda patologia é vivida primeiramente como mal-estar, no sentido de algo que exprime uma certa condição existencial de não-lugar, vinculada à experiência de estar ou absolutamente preso ou demasiadamente fora, a ponto de não saber se localizar. No âmbito social, este mal-estar procura se nomear precariamente por meio das narrativas que lhe inserem na história e nas relações com o outro. Contudo, como bem sabemos a partir da nossa escuta clínica, as narrativas de sofrimento são reconhecidas socialmente de formas diferentes. Enquanto algumas são consideradas normais ou saudáveis, isto é, conforme as expectativas normativas que, num dado contexto, regem o mundo do desejo, do trabalho e da linguagem, outras são diagnosticadas como patológicas, ameaçadoras tanto para quem as sofre quanto para os que o circundam, justificando, assim, intervenções terapêuticas as mais variadas. ⁶ Vê-se, portanto, que determinar quais modos de sofrer são saudáveis e quais não são, quais dinâmicas afetivas podem ser comunicadas segundo uma certa gramática de sofrimento e quais precisam ser tratadas, com remédios ou confinamento, é uma decisão profundamente política e moral, ao mesmo tempo que clínica. No limite, isso quer dizer que todo diagnóstico clínico é indissociável dos seus efeitos políticos e sociais, uma vez que eles estabelecem a partilha entre como se deve sofrer e como não se deve sofrer, quais formas de experiência são saudáveis e quais são patológicas. Governar o social gerindo o sofrimento psíquico significa, então, por um lado, determinar os quadros patológicos e a gramática do sofrimento que orientará a diagnóstica, entendida em sentido amplo, ⁷ e, por outro lado, administrar a incidência maior ou menor de certas formas de sofrer a partir da necessidade de se produzir formas de vínculo social. É, nesse sentido, que devemos entender, por exemplo, as afirmações de Adorno e Horkheimer sobre o interesse da propaganda nazista estimular a paranoia como uma forma de sofrimento psíquico, expressa na narrativa da ameaça do objeto intrusivo e da dissolução da unidade do Eu, necessária para a reprodução do fascismo e das suas dinâmicas de intervenção social. O mesmo pode se aplicar ao que eu escrevo sobre a função de se gerir a melancolização social no âmbito da necrogovernamentalidade contemporânea.

Parece-me, então, que considerações dessa natureza sobre a patologia do social têm efeitos maiores sobre a clínica, uma vez que põe a baixo tanto pretensões epistemológicas realistas, quanto exortações pífias à neutralidade axiológica do clínico, revelando, ao mesmo tempo, que o setting analítico tradicional, o consultório com seu divã, não está isolado dos demais dispositivos diagnósticos de gestão social do sofrimento, seja porque contribui para reforçar certas patologias, seja porque permite que se abra espaço para o reconhecimento de outras narrativas do sofrimento, bloqueadas pela gramática social, enquanto produtoras de formas de vida singulares.

Hæresis: Você define Necrogovernamentalidade como “técnicas de gestão da morte que se disseminam por diversas instituições e suas articulações com os processos de subjetivação (Franco, 2018). Essa definição  coaduna com as formas de sofrimento, no século XXI, que são, de modo geral, problemáticas no laço social, no encontro com o outro semelhante e com o Outro como discurso, como alteridade, dentre as quais: a epidemia de diagnóstico de autismo (e não de autismo), as depressões, o suicídio, a paranoia como modalizadora do discurso político e social, as insistentes demandas – na clínica – em torno de um desamparo crônico, e o número elevado de crianças com as mais variadas dificuldades de (e na) linguagem.  Trata-se de um arranjo estrutural onde, no sintagma freudiano ‘pulsão de morte’, a imaginarização dos discursos fez apagar a pulsão, restando a morte como o centro do laço social?  

Fábio: É preciso entender a melancolia e a sua gramática do sofrimento como modos de produção de subjetividades cada vez mais determinadas pelos imperativos superegóicos. O melancólico sofre porque, identificado com a falta, com o objeto rejeitado, sente-se baixo e indigno de atender às expectativas normativas das quais dependem seu reconhecimento social. Assim, retomando o que disse anteriormente sobre a pulsão de morte, tal como Lacan nos permite interpretá-la, parece-me que a saída da melancolia dependeria da indeterminação do horizonte normativo fornecido pela forma-indivíduo, indeterminação esta que, justamente, diz respeito ao trabalho da força disruptiva da pulsão de morte.  

Hæeresis: A Vala Clandestina de Perus é tomada, por você, como um paradigma, um modelo de inteligibilidade [e de criação] da economia contemporânea de poder, nos termos do filósofo italiano Giorgio Agamben, como o que nos permite compreender nossa realidade, onde o singular e o universal se realizam.  Você a apresenta como um caso paradigmático. Esta questão se insere sobre o significante ‘caso’. Para a psicanálise, sem entrar em todas as especificidades que o termo impõe ao campo psicanalítico, um caso é aquilo que se escreve em torno de um enigma, do resto não redutível à teoria, aos conceitos. O que permanece irredutível no caso Vala de Perus?

Fábio: Essa é uma excelente pergunta. De fato, a minha tese é a tentativa de circundar a vala, cuja associação com o furo do Real é quase imediata. A ditadura civil-militar brasileira dedica-se a montar um complexo dispositivo de desaparecimento justamente para desrealizar não apenas as resistências políticas diretamente mobilizadas na luta contra o regime autoritário, mas, principalmente, aquelas formas de vida consideradas ou ameaçadoras, porque colocavam em risco moral ou socialmente a segurança nacional, ou simplesmente descartáveis, pois, no Brasil do nacional desenvolvimentismo – mas, não apenas –, não há lugar para moradores de rua, pacientes psiquiátricos etc. Para que a desrealização fosse completa, descaracterizaram os corpos, apagaram ou adulteram os registros, perderam os documentos, mudaram os nomes, proibiram as manifestações rituais de luto público, bloquearam os obituários, em suma, como diz Butler a respeito dos mortos nas guerras do Iraque e Afeganistão, foracluíram essas perdas. Porém, esses cadáveres retornaram, não dois ou três, mas cerca de 1.500. Enfatizo a aproximação quantitativa, pois ela é significativa, não apenas na medida em que conta da destruição sistemática desses corpos, desde a exumação, passando pela reinumação na vala, pela exumação definitiva, em 1990, pelos diversos trabalhos de análise forense para identificá-los, levando-os a passar por condições de armazenamento totalmente inadequadas, de forma que, ao final, resta praticamente impossível individualizar esses conjuntos esqueléticos, mas é significativa sobretudo porque revela o que Marc Nichanian, ⁸ a partir das narrativas construídas sobre o genocídio dos armênios, no início do século XX, identifica como um dos traços fundamentais das catástrofes: sua indefinição, a impossibilidade de representá-la sob uma imagem capaz de totalizá-la como Um, o que não é sem consequências para o luto. Nesse sentido, o caso Vala de Perus abre no coração do governo ditatorial brasileiro, e no muito que dele resta no Brasil da chamada “nova República”, a vala da indeterminação. Por um lado, isso pode produzir rachaduras irreparáveis na verdade do discurso oficial segundo o qual “nada aconteceu”, “foi uma ‘ditabranda’”, “nenhuma violação foi perpetrada sistematicamente pelo governo” e suas variações atuais, abrindo espaço para pesquisas, investigações, lutas. Por outro lado, a vala da indeterminação não deixa de, também, produzir sofrimento, na medida em que resta como um capítulo não simbolizado da história nacional, que não cessa de se repetir na história. Creio que o meu trabalho possa ser entendido de dois modos: ele se inscreve na abertura produzida pela indeterminação dos discursos oficiais, ao mesmo tempo que tenta circundar de significantes esse acontecimento que permanece em larga medida inominável.

Portanto, há muito o que se escrever, pensar e fazer com relação à Vala de Perus e aos seus desdobramentos. Em primeiro lugar, ela não é a única vala clandestina ou local de ocultação de corpos utilizado pelo governo ditatorial civil-militar. Como os relatórios das diferentes Comissões da Verdade mostraram, há provas incontestes da existência de muitas outras Valas de Perus no território nacional. Além disso, dado que a existência desses dispositivos necrogovernamentais de desaparecimento antecedem a ditadura e avançam para além dela, precisamos nos confrontar com os dispositivos de desaparecimento administrativo, que são responsáveis por muitos casos de desaparecimento no Brasil contemporâneo, bem como com a incorporação desses dispositivos a aparatos não-oficiais de governo, como as milícias. Um exemplo sensível disso é a recente descoberta de um cemitério clandestino criado pela milícia que atua na região de Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro, para ocultar corpos das vítimas, chamadas de “discos voadores”, pois sumiam do dia para a noite.

Hæresis: Na leitura de sua tese, é impossível não se questionar sobre o lugar de quem fica expectando essas valas clandestinas. É uma leitura que nos remete ao ‘cheiro da morte’, às pessoas desaparecidas, pessoas exumadas, aos sacos plásticos contendo remanescentes mortais humanos, como você descreve: o corpo fétido de esquecimento/apagamento. O lamento e constrangimento que acompanha essa leitura nos leva a perguntar: O que se pode fazer/dizer, produzir/inventar na medida em que tal leitura pode ter efeito melancólico?

Fábio: A meu ver, o próprio fato dessa tese existir indica uma saída para um provável efeito melancólico que pode decorrer da sua leitura. Por isso, insisto que a descoberta da Vala de Perus produziu também a indeterminação dos discursos com pretensão de verdade que procuravam foracluir a existência dessas violações. Com isso, paradoxalmente, ela cria espaços para a emergência de pesquisas, filmes, discursos políticos, lutas, manifestações estéticas etc. Não me sinto confortável para dizer o que se pode fazer ou inventar a partir do que escrevi, pois não acho que a relação entre a teoria e as suas eventuais consequências práticas sejam imediatas e, tampouco, diretas. Novamente, esta pergunta só pode ser adequadamente articulada na prática. Considero, no entanto, há bastante tempo, que muito já vem sendo feito. Lembremos das lutas de familiares de presos e desaparecidos políticos por memória, verdade, justiça e reparação; dos movimentos locais e nacionais de mães de mortos pela violência do Estado; dos esforços hercúleos de familiares de executados pelas polícias para produzirem contranarrativas sobre seus sofrimentos, criarem memorais, internacionalizarem a reverberação desses casos, além de muitos outros exemplos.

Hæresis: Qual sua relação com este trabalho, para além de pesquisador, como tentativa de ultrapassar o lugar teórico do problema em tese?

Fábio: Após um período trabalhando diretamente em projetos, governamentais e não-governamentais, ligados ao caso da Vala de Perus, atualmente o que venho fazendo para ultrapassar os problemas que coloco na tese é justamente a pesquisa. Considero que redescrever problemas, abrir a possibilidade de novas interpretações sobre os fenômenos, forjar conceitos, enfim, tudo isso que identificamos ao trabalho teórico ou à pesquisa é uma forma essencial de intervenção prática. Quero dizer, ecoando algo da minha formação na tradição dialética: o pensamento é prático, desde que estejamos dispostos a não reduzir a ação às expectativas utilitaristas que a vinculam direta e imediatamente a determinados fins.

Hæresis: Sobre política (se é que não estamos falando disso o tempo todo). A sentença de Jacques Lacan “O inconsciente é a política” é lida e interpretada tanto por aqueles que pensam a psicanálise na política, essa que vai às ruas, como por aqueles que não abrem mão do “inconsciente só existe na análise” e enfatizam que analista e cidadão são duas identificações distintas. Esse paradoxo tomou força de conflito no contexto das eleições de 2018, no Brasil, em movimentos como “Psicanalistas pela Democracia” e as diversas reações desencadeadas. Qual sua posição em relação à questão psicanálise e política?

Fábio: Esse debate é frequentemente recolocado a partir da distinção lacaniana entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão. Para alguns, na sua relação com a sociedade, os psicanalistas, individualmente, poderiam explicitar seus posicionamentos políticos, preservando, no consultório, a orientação ética da direção do tratamento entendida como falta-a-ser. Para outros, a dimensão política da clínica apareceria no nível tático, no da interpretação. Trata-se, certamente, de uma questão extremamente difícil, para a qual não tenho uma resposta. Começaria a articular alguma coisa a respeito, problematizando o que normalmente se entende por política quando se coloca tal pergunta. Os exemplos que vocês trazem deixam ver que ou bem se faz política indo para as ruas, para as praças, ou bem não se faz política. Mas, se reduzimos a política à ação prática direta na forma de intervenção, corremos o risco de deixar de fora da política não apenas a psicanálise, mas todo um conjunto heteróclito de práticas que não satisfazem a esse critério, a começar pela pesquisa. Portanto, creio ser importante redimensionarmos melhor neste debate o sentido de “política”. Para avançar um pouco mais nesse esboço de resposta, retomaria uma ideia de política que me parece profundamente consoante à ética da psicanálise, ideia forjada por um filósofo político muito próximo do ensino de Lacan: o já mencionado Claude Lefort. De modo muito sumário, podemos dizer que, para ele, a política se define como um espaço de indeterminação, no interior do qual os conflitos podem tomar lugar sem que lhes seja dada uma resposta definitiva. A política é pensada como abertura ao indeterminado contra as forças que pretendem reduzí-lo às figuras conhecidas da unidade: a burocracia, o ditador, o presidente autoritário ou populista que definem qual é a verdade do desejo do povo. Ora, parece-me que, mutatis mutandis, não é outro o horizonte de direção do tratamento que nos orienta na clínica. Quando, mais acima, referi-me ao papel irrecusavelmente político da clínica ao abrir espaços para formas de experiência e para narrativas do mal-estar produtoras de singularidade, apontei para o fato de que o bem-dizer é correlato de um conjunto de transformações na forma como o sujeito se socializa. Sendo assim, a psicanálise, no consultório ou na rua, só pode ser política. Contudo, há o risco iminente de que ela se associe a dispositivos de governo do sofrimento social, reiterando e colaborando para a disseminação das formas de sofrer, da codificação da gramática do sofrimento, da patologização do mal-estar. Isso, no entanto, pode se dar na rua, tanto quanto no consultório.

Hæresis: Dos dispositivos desaparecedores, apagar nomes e nomear indivíduos como ‘não-identificados’, como você elabora – desaparecimento dos nomes – nos remete diretamente ao sujeito em psicanálise como uma emergência na linguagem, uma resposta nem submissa e nem transgressora, mas subversiva à essa mesma linguagem que o causa. Desse sujeito, as passagens mais fundamentais das elaborações de Jacques Lacan são as que demostram, ao longo de sua obra, haver um rastro apagado no significante com o qual esse sujeito se identifica: o traço unário é causa e efeito do sujeito do inconsciente. Nas proposições da necrogovernamentalidade, esse desaparecimento apagaria essa possibilidade de emergência do sujeito do inconsciente, sujeito subversivo nos discursos? Ou, isso que a psicanálise sustenta como lógica e psiquismo estaria imune a essas modalidades de governo da vida e da morte? Ou, ainda, como se diz, o significante sempre irá advir, sempre escapará à essa mortificação da vida?

Fábio: Não entendo que a melancolização necrogovernamental produza a desativação de toda forma de resistência. Nenhum dispositivo governamental realiza a pretensão de um governo total, pois há sempre algo que resta ingovernável – nesse sentido, também podemos ler o impossível de governar, freudiano, e seus desdobramentos na teoria lacaniana dos discursos. Para além das saídas para a melancolia que mencionei anteriormente, relacionadas às formas mais tradicionais da ação e da estética política, a professora Adriana Vianna tem apontado para a existência de uma plêiade de esforços antimelancólicos nos quais se percebe produção de outras gramáticas do luto político, como a ida a terreiros e casas de reza, os sonhos, a composição de sambas, a escrita de cordéis. Evidentemente, a clínica psicanalítica é um espaço importante, mas não exclusivo, para a emergência de um sujeito que resiste às formas de subjetivação disponíveis.

Hæresis: As Valas-paradigmas continuam abertas. Após o decreto do Presidente Bolsonaro, de abril deste ano, contingenciando o financiamento de trabalhos como os realizados pelo Grupo de Trabalho de Perus na identificação dos desaparecidos da Ditadura Militar Brasileira,  a Ministra Damares, referindo-se à Vala de Perus, disse coisas como: “Não dá para viver de cadáveres”, e insistiu em dizer que a maioria dos corpos de Perus são de crianças com meningite, apagando os outros mais de 1000 corpos e, ainda, escondendo o porquê desses corpos mortos pela meningite terem sido jogados na Vala, como você conta. Tem-se, nesses discursos instituídos por aqueles que respondem pelo Estado brasileiro, neste momento, o esvaziamento do discurso, o desaparecimento na sua mais contundente realização: cava-se uma vala onde a história está enterrada nos termos de toda a necropolítica que você expõe. Como psicanalistas, qual direção damos a essa mortificação do discurso?

Fábio: Deixá-lo falar em outros espaços, nos quais esse discurso possa se colocar em movimento, abrir-se para outros dizeres, criar novas histórias.

Referências:

¹ Nesse sentido, o trabalho do artista maranhense Thiago Martins de Melo, que usamos como imagem do evento, ao mesmo tempo desloca para nossa sociedade e condensa o que, no Brasil, se inscreve da lógica de gestão da morte, da política cuja laço é estabelecido e mantido na determinação de quem é por ser matável. “A partir do cruzamento anacrônico de narrativas sobre resistências e decadências, simbologias e personagens, espiritualidade e sincretismos, Thiago Martins de Melo utiliza os artifícios tradicionais da pintura para falar de questões relacionadas ao Estado de Exceção no Brasil. Na obra Necrobrasiliana (2019), o artista reúne grandes telas para representar um conjunto de circunstâncias que o assombram. Sobre fundo metalizado e ladeadas por dois pilares com cabeças de índios decepadas, além da figura imponente de Carlos Marighella (ativista político e escritor brasileiro morto pela Ditadura Militar em 1969), encontram-se camadas de imagens sobre momentos circunstanciais ligados ao extermínio e problemáticas enfrentadas pelas minorias.” [Disponível em http://www.infoartsp.com.br/agenda/necrobrasiliana/]

²  USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de Filosofia, 2018 – Tese de doutorado acessível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-25022019-112250/pt-br.php

³ A referência principal aqui é SAFATLE, V. A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso. São Paulo. 2016. n. 36., p.  150-191.

⁴ Sobretudo em SAFATLE, V. O circuito dos afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

⁵ Parte dos resultados dessas pesquisas se encontram consolidades em SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018.

⁶ Para uma discussão sobre as relações entre mal-estar, sofrimento e sintoma, ver: SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018; DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017. 

⁷ Para uma profunda discussão sobre a ampliação do diagnóstico clínico para outras esferas da vida social, transformando-se em uma diagnostica, ver: DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017.

⁸ NICHANIAN, M. Catastrophic mourning. In: ENG, D. L; KAZANJIAN, D. (ed.). Loss: the politics of mourning. Berkeley: University of California, 2003. p. 99 – 124.


Liberdade trágica, destino do sujeito.

Cirlana Rodrigues (Haeresis Associação de Psicanálise)

Introdução

Liberdade e determinação convergem na relação do sujeito de não ceder de seu desejo (Lacan, 1959-1960). Proposição que busco em Édipo em Colono e sua transformação da determinação simbólica cerzida pela culpa para uma saída não determinada em seu destino trágico; em Antígona, onde o trágico de seu destino advindo do incesto é vertido em tragédia, na cadeia de significantes encenada diante de todos; e, em Jacques Lacan no seminário sobre a ética (1959/1960), colocando no centro da experiência analítica o para além do princípio do prazer, o gozo, recusando a promessa do utilitarismo técnico a serviço de um bem comum. Assim, a psicanálise sustenta na polis o direito ao desejo. Direito ao direito de desejar em tempos de interrupção da cadeia significante, interrupção da historicidade de cada um, como nos sonhos no terceiro Reich (Beradt, 2017): ao repousar o corpo, aquele que sonha vigia os significantes que podem escapar, pois os sonhos, reveladores dos desejos, são proibidos.

1. A transmissão de Édipo em Colono.  A transposição do Outro. A transgressão da lei, em Antígona

Édipo miserável e degradado entra em Colono arrastado por Antígona, exuberante e leal. Está cansado, cego pela paixão ao saber e ao poder trilhado em terras proibidas, mas é um cego que vê.  O velho Édipo assenta-se sob o sagrado das oliveiras, às sombras das muralhas de Atenas. Ele vai até o ponto do estrangeiro indesejável em Colono. Entra em Hades pelo ‘limiar do bronze”, pelas escadarias do brilho, interseção do absoluto silêncio entre vida e morte não habitado pelas palavras, seu destino proscrito, residência definitiva. O estrangeiro ainda não reconhecido como o rei invoca a polis em sua presença mutilada, “terrível de ver”, para ali permanecer, pedido ao mesmo tempo religioso e político que perturba as normas da comunidade. Nesse ponto, Édipo muda sua posição diante da lei que o condenou, mudança de perspectiva em relação aos seus crimes: antes ele não sabia, agora ele supõe saber. Édipo pagou, apresenta-se como aquele que porta no destino do herói a dívida cumprida, retribuída. Édipo se nomeia, no exílio, “executor por mão própria” de sua maldição (Fialho, p. 267, 1996), até então, “na ignorância, limitou-se, dentro dos parâmetros da ética de retaliação, a pagar ofensas recebidas”. Essa mudança é fundamental para o destino de sua linhagem:  o carácter amoral do destino de Édipo se mantém inalterável diante da lei civilizatória do incesto. No entanto, Édipo saído da alienação por culpa, supõe que para além desse destino há ainda espaço para questionar sua posição: “Ora como posso eu ser mau por natureza?” Édipo não renega sua historicidade, inscreve o paradoxo do desejo defendendo e rejeitando os velhos crimes, ultrapassando aparências e conjunturas externas, “para chegar a uma verdadeira disposição interior do indivíduo” (Fialho, 1996, p. 39).

 Édipo se afasta da casta masculina, a mal diz, afrontando a lei ática de que a sobrevivência familiar é responsabilidade dos homens. No espaço de sua morte, tem sua tardia, mas poderosa redenção, onde o passado que o determina e funda sua tragédia não o culpabiliza mais, onde seu nome e seu destino dão lugar a uma “dor de existir” (Lacan, 1958-1959), no limite da adversidade e do sofrimento. Ao maldizer os filhos e sua luta pelo poder, Édipo ensina sobre a diferença entre verdade e aparência: a verdade tem a ver com o absoluto que escapa à palavra. Nesse espaço de sepulcro, da verdade, Édipo e sua lei ainda determinam o bem para quem lhe acolher e o mal para quem o repudiar. O desejado túmulo, pelo qual suplica durante toda a peça, lhe será concedido se ele calar-se, silenciar-se. O Outro, ao conceder o bem comum quer o silêncio, para confirmar sua palavra. O que fará Édipo rejeitar, com violência e pela última vez, toda a carga de culpa e participação ativa e consciente nessa trama antinatural que o marcou e de que agora luta por se libertar, sustentando, até o final, a força da palavra, mesmo no encontro com o inefável pelo silêncio sagrado que pactua com Teseu. Para além do sistema das normas da cidade, ultrapassou o limiar do sacrilégio com o sagrado e lá regenerou, no laço com a cidade e seu governante, seu destino de parricida incestuoso, e é acolhido pelos deuses, acima da aparência da forma ou das normas instituídas, numa polis baseada em princípios humanos como a compaixão e o sagrado.

O cego domina agora a cena, nessa esmagadora convergência, simultaneamente evidente e misteriosa, dos deuses e do seu destino (Fialho, 1996), onde sua posição é de uma autoridade majestosa que o vai distanciando dos que o acompanham, na plenitude de uma visão interior que é adesão ao divino, adesão a sua excepcionalidade, modelada pelo sofrimento e possibilitada pela compaixão e amizade de Teseu que foi capaz de ver mais fundo no homem e no incompreensível do seu destino (Fialho, 1996). Édipo diz: “Quando já nada sou é então que me torno um homem”.  Édipo é despojado dos velhos farrapos da sua existência e revestido de novas roupagens. Com elas passa o limiar fascinante, onde vida e morte se tocam, recolhido agora em harmonia no mistério de um novo seio materno, um túmulo oculto, não divulgado, não localizável, porém, que está em qualquer lugar do bosque em Colono como presença em ausência que determina o cotidiano da polis: o segredo a ser transmitido, uma democracia pautada no sagrado [de cada um], no sofrimento e nos valores como bens comuns. Édipo, recolhido ao mais íntimo de seu túmulo, converge os antagônicos nesse limiar entre vida e morte, sua herança em Colono é a política. Dessa posição, Antígona, até então mediadora, regressa a Tebas, lugar onde a saga de seu sangue teve início, lugar da barbárie, do desrespeito com o humano e com o político.

Se com Édipo a tragédia concerne a uma experiência singular, Antígona em Tebas concerne a uma experiência trágica coletiva, pois Creonte, o tirano piedoso e medroso, vai contra as leis não apenas dos deuses, mas contra as leis da cidade, em nome da imposição vaidosa de suas leis. Todo acontecimento na esfera pública é uma experiência estética (aos moldes de Walter Benjamin/1936), de percepção, de reflexão e visão interior, vitais para a cidade. Antígona é capaz de refletir a partir da sua experiência trágica e se repensar e revigorar a partir do que a fundamenta e lhe dá natureza, despojando-se, como Édipo no instante supremo, dos farrapos do sofrimento e dos valores gastos e degradados de todas as demagogias e traições, para renascer de si mesma, qual o “rebento que a si mesmo se refaz”.

Lacan (1959-1960) fica fascinado com o brilho de Antígona no caminho que ela faz na cena trágica na direção do que deseja, onde não vemos seu ato final, só depois.  Antígona, em seu nome, arrasta e transpõe, coloca-se para além do limite razoável de sua existência na relação com seu desejo. Afronta a lei do tirano: ao cobrir o corpo do irmão de pó, esconde e revela, ao mesmo tempo, seu desejo, o faz de modo deliberado na cidade. Se em Antígona há esse corpo entre a lei do desejo e a lei do tirano, fora da cena de Sófocles há o sujeito e seu sintoma enlaçando o privado e o público, advindo entre isso e aquilo onde o ato que instaura outra direção a seu desejo não é à vista de todos, mas também não é às escondidas.

Antígona é determinada, frase paradoxal. Chega em Tebas para não ceder de seu desejo, nessa polis injusta há que responder pela posição de reaver o que não pode ser reencontrado.  Essa é a análise como experiência trágica e não como ordenação da vida. Como tragédia, essa experiência é ato em cena, criação com o que padece do significante – o rejeitado no simbólico retorna no real da transferência analítica, retorna a Tebas. O sujeito encena seu contraditório: o desejo como aquilo que supõe saber e o desejo como aquilo do qual que se defende, do qual se culpa. Lacan (1959/1960) mostra que no interior da tragédia de Sófocles a heroína faz a escolha absoluta não motivada pelo bem. A função social de Antígona é não se submeter ao absurdo da lei que Creonte representa, é revoltar-se em nome do direito que lhe foi dado pela filiação: direito ao desejo. Na tragédia, Lacan exalta a posição de Antígona na vida: transgredindo a determinação da jurisprudência do bem comum, édestinada a vir em auxílio dos mortos, dos excluídos do campo dos direitos.

Da transmissão que Édipo faz das vicissitudes do destino, o destino trágico de Antígona se encontra com a liberdade trágica (liberté tragique, Lacan, 29/06/1960), liberdade como ato encenado na esfera pública, onde o sujeito é livre na medida em que não cede de seu desejo. Antígona de nada mais é culpada, ser a mulher tebana ideal não lhe satisfaz, decide por vontade própria seguir o que quer em uma cidade feita de homens: enterrar o irmão. Entra viva em Tebas, anunciando que sua hora chegou, a hora de lidar com seu desejo chegou – fim de uma linhagem que se encerra na tumba. Essa vontade não é narcísica, está no limite de seu desejo e do ultraje – a beleza de Antígona é ser liberta da imagem ideal de mulher o que impõe no Outro o reconhecimento em relação a seu desejo, reconhecimento que lhe dá uma posição na esfera pública. Antígona nos mostra a necessária e permanente batalha por esse direito/por todos os direitos: ela quer ser reconhecida na polis – que o tirano não lhe retire os direitos.

A beleza de Antígona traz a bifurcação do desejo: o belo que desperta o desejo, como a última barreira ante o real, a pulsão de morte que convida ao gozo.  Despertar do desejo que desanima o Outro, na medida da recusa de Antígona em submeter-se à lei do Outro. A paixão pelo saber herdada do pai, é posta em ato: sabe o que quer e faz o trilhamento necessário nessa direção, no “limite suportável da vida humana” – definição de gozo que o significante Antígona comporta [Atè]: “Queres sepultá-lo contra as determinações da cidade?” (Sófocles, linha 44, p. 09), lhe perguntam. A dor de existir, protagonizada por Édipo, é em Antígona uma margem da dor, onde pelo gemido lascinante anuncia o gozo por vir, limite que se transposto não tem volta. Responder à questão de Lacan “Agiste em conformidade com teu desejo?” (Avez-vous agi conformément au désir qui vous habite? – 06/07/1960) não tem volta. A posição de Antígona é a imagem fascinante, pois é o ponto de vista do desejo, seu brilho diante do real, para além dos diálogos, da família, da pátria e da moral, sem temor e sem piedade (Lacan, 1959/1960). Esse gesto ético e não qualificado se realiza no entre-duas-mortes, na suspensão da temporalidade onde a posição do ser não é metafórica, é sem conciliação e encerra o maldizer do pai, seu destino. O gesto de Antígona faz valer seu direito ao desejo, inscreve-o como bem comum, mas um bem sem objeto, intransitivado, no campo da psicanálise.

2. Não há destino para o sujeito, não há sujeito liberto de si

Não há destino para o sujeito, as pulsões padecem de destinos, resistem. Há o inconsciente com seu furo do saber. Freud substituiu o destino e as leis dos deuses pelo inconsciente. Seu ato libertário foi conceder a palavra aos pacientes, escutando-os, quando nenhum médico o fazia – pois isso colocaria em risco a crença no saber, e descobre leis muito particulares e singulares do psiquismo. Na esfera pública, o sujeito se escreve como cadeia de significantes. Escrita ofendida pela história dos homens – a relação do homem com o desejo encontra recusas, opressões, repressões, apagamentos, traumas. O destino trágico é uma advertência estrutural, lembrando Lacan (1959/1960) sobre a tragédia.

Checcia (2012) destaca a confluência do vocabulário da psicanálise com o vocabulário da política e da guerra como os significantes poder, liberdade, conflito, resistência. A liberdade aparece no núcleo dos fundamentos da psicanálise. A associação livre como uma oferta de liberdade restrita: para o psicanalista, amplia as intervenções, mas o coloca na posição de ouvinte restringindo sua ação à atenção flutuante que o enlaça à fala do analisante. Este se vê diante do paradoxo de poder falar o que quiser, pois o inconsciente tem seus mecanismos de repressão e recalque. Ainda, o sujeito mente de modo deliberado, e se defende dessa liberdade – o inconsciente é que decide o que fazer com a liberdade de falar o que quiser: “é que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar”, cito Lacan (1958/1959 – p. 647), pois isso impõe transpor o fantasma do Outro causa do desejo, e transgredir é arriscar não ter/ser o objeto de desejo.

A mudança de posição de Édipo e Antígona mostra a via do desejo apresentada por Lacan sobre  alienação e  separação, onde diz:

[…] nossa técnica usa frequentemente, como se a coisa corresse por si mesma, da expressão liberar alguma coisa – não é inútil observar que é aí que joga a questão desse termo que bem merece a qualificação de fantasma – a liberdade. O de que o sujeito tem que se Iibertar é do efeito afanísico do significante binário e, se olharmos de perto, veremos que, efetivamente, não é de outra coisa que se trata na função da liberdade.

(Lacan, 03/06/1964)

Sair da alienação, onde a liberdade como fantasma (em francês, o termo comporta desejo) é uma ficção que produzimos para conciliar o prazer com a lei, o contraditório entre o sujeito e o Outro. Como fantasma, atravessa o espelho e a lei do Outro, por isso assombra. A liberdade entra como o gesto de Antígona, de livramento da sina da alienação ao significante que vem do Outro, onde a separação – o “para além”, o “trans” – é o gesto de não se submeter às leis do Outro naquilo que recusa nosso direito ao desejo: é o sujeito de A barrado. O real é dito pelo analisante nas vias do desejo, da fala como ato, pela demanda que implica não abrir mão do Outro sobre o desejo, mas demanda sem objeto definido. E este pode ser o fantasma que tira a liberdade, submete a junção sem dialética, como pode ser o do quê na afânise de sentidos, há a separação. O mal-estar e os sintomas são efeitos do horror do sujeito diante do desaparecimento do desejo, por isso a liberdade ou a vida, a liberdade ou a morte. Diante disso, ou o sujeito se mantem na alienação, ou essa afânise ganha status de vazio, passa a ser topos de inscrição de um fazer com esse desejo do Outro, transpor esse vão de sentidos é saída da alienação, a liberdade possível.  O sujeito reconhece que o desejo é desejo do Outro – herança simbólica, o que restringe sua liberdade ideal é o que o autoriza a ir além, pois o que se transmite é a divisão do sujeito – a face cortante de Antígona que Jacques Lacan lê no final dos versos da tragédia de Sófocles.

O significante “liberdade” (liberté) circula no seminário de 1964 sobre os fundamentos da psicanálise, quando da excomunhão de Lacan da IPA: liberdade, política e clínica não são dissonantes. Se a dinâmica narcísica do fascismo foi lida por Lacan na teoria do estádio do espelho no ano de 1936, as operações de alienação, afânise e separação, como determinantes do sujeito, merecem ser lidas como resposta de Lacan a sua posição e relação com as leis da psicanálise, aos modos de regulação da experiência analítica.

Considerações finais

Nestes tempos de política, onde a anatomia é o destino, o psicanalista é chamado a se posicionar na esfera pública, dar a ver o brilho de seu gesto na relação com seu desejo em ser analista, sua ética. O fato de que regimes totalitários apagam as línguas, apagam individualidades e subjetividades, destituem sujeitos de seus direitos de fala e de todos os outros direitos que a polis deveria garantir como bem comum não parece, para muitos, colocar em risco a experiência analítica. Ou perder o direito a falar (de si) é um risco apenas na fantasia de muitos psicanalistas, ou o gesto inaugural de Freud precisará ser repetido diariamente, valendo o limite da relação do analista com o desejo. Expressões do tipo “nazistas foram analisados por psicanalistas judeus” nos apontam o tamanho da dimensão narcísica e de alienação que estamos imersos, onde a não atualização da cadeia significante nos coloca à mercê da opressão, de um Creonte onde os furos na imagem são enganosos, onde a margem da dor dá lugar a uma unidade que nos é vendida e a compramos sabendo que estamos nos enganando, anestesiados no gozo imaginário.

A tarefa do sujeito na esfera pública é não apenas lutar por seu direito ao desejo [lutar por seus direitos na lei da cidade e dos deuses], mas lutar por seu direito ao direito de desejar, pois o tirano, agora, não lhe oferece outros direitos, ele determina que não há direitos, há deveres morais. Na clínica, o sintoma nos mostra a posição do sujeito diante do real: entre isso e aquilo, o sintoma enlaça, na esfera pública, o particular do divã e o público, a polis é o espaço do fazer, do gesto a ser vislumbrado. A tradição psicanalítica diz que o inconsciente só há na análise – ali no tempo lógico da transferência – no máximo reconhece-se que aquele sujeito que advém no discurso da análise circula no mundo em suas formas sociais – daí a transformação social possível com a qual se meteria a psicanálise. Temos a oportunidade – no privilégio do divã, na praça, na rua – de escutar esse sujeito borromeanamente circulando no mundo pelas vias de seu sintoma – em experiências de mais ou de menos sofrimento. Da ética da psicanálise é isso que merece ser dito: o que esse sujeito sustenta de seu desejo na esfera pública, de suas escolhas, de suas ações. Com Antígona e com Édipo em Colono vemos que o direito ao desejo é uma batalha permanente no sujeito, porque ser transmitido pelo pai, pela lei simbólica, não é garantia: o direito ao desejo não está mais dado nem mesmo no mais íntimo do divã, e menos ainda na esfera pública, na polis como espaço privilegiado de experiência estética para os sujeitos que a habitam e não apenas como espaço de vivências distraídas, rotineiras e cotidianas. Como lugar do acontecimento trágico de cada um, com o fazer de cada um, onde os nascimentos e as mortes se cruzam incessantemente, é contraponto a uma polis corrompida pelos maus governantes, agredida permanentemente em seu solo.

 Lacan, como mencionei, toma a liberdade como um fantasma e como tal para o inconsciente é inalcançável e sabemos como regimes econômicos e políticos convencem os indivíduos de que ser livre é realizar suas fantasias, vendem suas fantasias e a liberdade passa a ser o direito de comprar o que deseja. Na contramão desse mercado, o limiar da ética da análise é o que o paciente se decide por fazer com sua condição de desejo, não ceder dessa condição de falta a ser, não importando o que fazer: essa ética não se confunde com o direito ao consumo.  E, o Outro bem sabe como convencer o sujeito de que “a palavra é perigosa”, frase fantasmática dita no limite articulável de real e simbólico por supor e organizar a verdade da alienação anunciada. Na alienação, a tática é inscrever nos sujeitos o calar-se, tornar o vacilo um medo, onde falar de modo distinto é proibido. A palavra é proibida por ser perigosa: não há laços abusivos e de restrição de direitos e liberdade, que não se inicie nesse fantasma da “palavra é perigosa”, antes sujeitos são calados, depois submetidos e submissos, abusados, torturados [a tortura não é fazer falar, a tortura é fazer calar aqueles da revolta]. Associar livre é perigoso e há que ser proibido. A psicanálise continua subversiva e necessária (e não utilitária), e precisamos repetir o gesto contraditório de Freud de “deixar falar”, nosso gesto político na esfera pública em não ceder do direito de desejar, conforme  Lacan (1959/1960) sobre a ética na psicanálise.

Referências bibliográficas

BERADT, C. Sonhos no terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. SP: Três Estrelas, ed. 2017.

FIALHO, M. do C.  Édipo em colono: o testamento poético de Sófocles. HVMANITAS — Vol. XLVIII (1996) / p. 29-60. https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas48/04_Fialho.pdf. Acessado em 15 de novembro de 2018.

CHECCIA, M. A. Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia. Pós-graduação/USP.2012. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-05072012-112606/pt-br.php.365 p.

LACAN, J. Seminário, livro 6. O desejo (1958/1959) [http://staferla.free.fr/].

______. Seminário, livro 7. A ética (1959/1960) [http://staferla.free.fr/].

______. Seminário, livro 11. Os fundamentos (1964) [http://staferla.free.fr/]..

______. Direção de tratamento e seus princípios de poder (1958/1998). Escritos.

SÓFOCLES.A trilogia tebana – Édipo Rei / Édipo em Colono / Antígona. Tradução do grego, introdução e notas de MÁRIO DA GAMA KURY. 15ª reimpressão. Jorge Zahar Editor.

Espaço sobre escritas 2019

A escrita haeresie (R S I)

Coordenadora: Aline Accioly Sieiro

Membro – Associado Hæresis

alinesieiro@gmail.com

No primeiro ano do espaço sobre escritas, percorremos um caminho que teve como norte “fazer traço no engodo de nossa intenção de escrever, torná-la uma experiência de subjetivação buscando investigar o “que significa escrever”: passar a outra coisa, passar pelo escrito” (Souza, 2018, Hæresis Associação de Psicanálise). Estudamos a estrutura das escritas apoiadas na consistência de palavras, em suas tendências de satisfação pulsional via recobrimento imaginário. A escrita psíquica, ou melhor, a escrita do trajeto pulsional de um sujeito é particular, é a “ativação dos traços”(Freud, 1977, p. 589), mas esse traço não é imaginário, não tem equivalência com a imagem.

Sobre as escritas a partir de memórias, entendemos que as escritas de recordações de infância tem seu lugar na psicanálise, mas existe um ponto de passagem dessa escrita para outra escrita. “Não está de modo algum definido que, com a psicanálise, vai se conseguir escrever. Para falar propriamente, isso supõe uma investigação a proposito do que significa escrever para cada um” (Lacan, 1975-76/2005, p.143). Aportamos em uma busca do traço como suporte mínimo do sujeito, traço do escritor, daquele que escreve elidido.

Assim, apresentamos a proposta do Espaço sobre Escritas para 2019, partindo das considerações lacanianas, especialmente a partir dos anos setenta, tempo de formalização da topologia borromena, ensejando que algo do impossível se demonstrasse. A aposta na topologia implica a elaboração de um espaço a partir da noção de vizinhança, suporte de letras, sem imagem, em torno do nada. “Essas letras que fundam a topologia supõe senão o real” (Lacan, sem XXI, p. 107)

A escrita de haeresie, homofonia em francês para as letrinhas RSI – Real, Simbólico e Imaginário, testemunha a ação de uma escolha (Lacan, Sem XXIII, p. 16), ela própria a sulcagem de um trajeto pulsional, “rasura pura de nenhum traço anterior” (Lacan, Lituraterra, p.), uma rasura que se escreve como traço, mas não cessa de não se ler. “Só a escrita faz três”. (sem 21 p. 93)

Se a escrita constitui ao mesmo tempo que revela o sujeito, nosso objetivo para esse ano é estudar os caminhos por onde Lacan propôs a escrita como ato de eRRancia do sujeito, enodação de um pedido, uma recusa e uma oferta (“Peço que recuses o que te ofereço porque não é isso”), onde o isso é tocado em pedaços, “pedaços de real”. (sem 23)

Ao longo do ano, vamos trabalhar com a leitura de textos sobre a temática e com a produção escrita dos participantes do espaço. Essa produção escrita pode ser sobre qualquer área ou temática que leva em conta a psicanálise lacaniana, pois o que buscamos é colocar em ação o desafio de debruçar-se sobre o ato de escrita, para além de sua materialidade e/ou gênero textual, em sua experiência pulsional.  

Percurso proposto:

  1. Escrita e invenção; Escrevendo o indizível; Escrita, ato de invenção em torno do real.
  2. Por uma clínica psicanalítica do escrito; Tradução, transcrição e transliteração.
  3. Escrita e traço unário
  4. A função do escrito
  5. Alingua é Real, o Real é três
  6. Escrita e Real, Sulcagem e Cifra

Datas e horários

Serão dez encontros durante o ano de 2019, realizados uma vez por mês, com três horas de duração, aos sábados a tarde, conforme datas abaixo:

Marco – 16

Abril – 13

Maio – 11

Junho – 08

Julho – 06

Agosto – 03

Setembro – 14

Outubro – 05

Novembro – 09

Dezembro – 07

Cossich, Tai. (2017) A espetacular clínica da monga apresenta Caso Original

Cossich, Tai. (2017) A espetacular clínica da monga apresenta Caso Original

Referências Bibliográficas

Rinaldi, D. (2006). Escrita e invenção.

Assenço, R. & Vorcaro, A. (2018). Escrevendo o indizível.

Allouch, J. (1995) Letra a Letra.

Freud, S. (1900). A interpretação dos sonhos.

Lacan, J. (1966-67). O Seminário, Livro 14 – A Lógica da Fantasia.

Lacan, J. (1972-73). O Seminário, Livro 20 –  Mais, Ainda.

Lacan, J. (1974-75). O Seminário, Livro 21 – Os não tolos erram.

Lacan, J. (1975-76). O Seminário, Livro 23 – O sinthoma.

Souza, C. R. (2018) Escrita, ato de invenção em torno do real.

Reuniões 2019 – Conceitos na psicanálise de Jacques Lacan

Proponente: Cirlana Rodrigues (Membro-Associado Haeresis)


Em Linguística, “conceito” é ideia abstrata compreendida nos vocábulos de uma língua, construída para caracterizar as qualidades de uma classe, de seres ou de entidades imateriais. Jacques Lacan, ao longo de Seminários e Escritos, trabalhou em torno de formulações lógicas e complexas sobre os fundamentos da Psicanálise sem caracterizar e/ou qualificar esses fundamentos a partir de reflexões cognitivas: tratava-se, para o psicanalista, de colocar na linguagem os arranjos da clínica. Assim, “conceito”, em psicanálise, merece ser lido como “lógica”, como o encadeamento dos significantes que dizem sobre a experiência analítica, suas transformações e atualizações ao longo da cadeia epistemológica da psicanálise. Não haveria uma definição totalizante neste ou naquele seminário, neste ou naquele escrito, na obra de Jacques Lacan, ou um recorte que abarcasse todos os aspectos de determinado conceito e nem suas possibilidades de emprego dentro da experiência analítica. Diante disso, a proposta é dialogar sobre a gênese e as transformações de conceitos da psicanálise de Jacques Lacan a cada reunião partindo de recortes discursivos. Esse recorte não é sem consequências e não é sem riscos para a proposição onde dois aspectos dão a direção: 1) a experiência da psicanálise não é uma experiência intelectual, mas uma experiência clínica onde cada conceito é construído para localizar na epistemologia do campo discursivo da psicanálise a experiência de análise respondendo às implicações de haver inconsciente; falar em ‘conceitos e noções’ , em psicanálise, é falar sobre o que se passa nas análises; 2) será fundamental para as elaborações em torno do que se propõe, as interpolações dos participantes sobre cada conceito.

As reuniões serão mensais, com duração de três horas, aos sábados, das 13:30h às 16:30h. Valor: 120,00. Será sugerido, antecipadamente, a leitura do recorte a ser trabalhado. Solicitação de participação será apreciada pela proponente das Reuniões. Entrar em contato pelo e-mail cirlanarodrigues@gmail.com

Cronograma – Data – Conceito
23 de Fevereiro de 2019 – Estádio do Espelho
23 de Março de 2019 – Imaginário 
20 de Abril de 2019 – Linguagem e simbólico
25 de Maio de 2019 – Sujeito / Outro
22 de Junho de 2019 – Tempo lógico
20 de Julho de 2019 – Dialética: desejo e demanda
24 de Agosto de 2019 – Falo / Nome-do-pai
21 de Setembro de 2019 – Real
26 de Outubro de 2019 – Alienação, afânise e separação
23 de Novembro de 2019 – Objeto a
14 de Dezembro de 2019 – Sexuação

Espaço Hæresis sobre crianças e adolescentes 2019

Espaço Haeresis sobre crianças e adolescentes 2019 – O brincar, o desenho e o diálogo: das invenções da criança às in(ter)venções do analista / Coordenadora do Espaço: Cirlana Rodrigues (Membro-Associado Haeresis)

O Espaço Haeresis sobre crianças e adolescentes irá trabalhar em torno das ‘linguagens’ da criança na experiência analítica. A proposta é colocar na cena clínica três possibilidades de intervenções na clínica psicanalítica com a criança a partir das invenções (si) que a criança nos oferece: o brincar, o desenho e o diálogo. O trabalho será feito em torno de noções não psicologizantes, não pedagógicas e não biologizantes desses elementos que convergem com fundamentos da clínica psicanalítica com a criança e a constituição do sujeito. Recortes da experiência clínica com crianças serão enlaçados às proposições de Sigmund Freud, Jacques Lacan, Edith Derdik, Cláudia Lemos, Angela Vorcaro. Ainda, iremos a autores como Donold Winnicott, Melanie Klein, Françoise Dolto, Julieta Jerusalinsky na extensão dessas invenções da criança na clínica: suas soluções para seus impasses constitutivos, suas modalidades de sofrimento que atravessam sua condição de vir-a-ser sujeito do desejo, seus arranjos e desarranjos lógicos e topológicos frente a seu sintoma, frente a ser sintoma.

Os encontros serão mensais, com duração de três horas, aos sábados, das 13:30h às 16:30h. Valor: 120,00. Solicitação de participação será apreciada pela coordenadora do Espaço. Entrar em contato pelo e-mail Cirlanarodrigues@gmail.com
Cronograma-Data-Tema: 
30/03/ 2019 – Considerações sobre a Clínica Psicanalítica com a criança 
27/04/ 2019 – O brincar
18/05/2019 – O brincar
29/06/ 2019 – O desenho
17/08/ 2019 – O desenho
28/ 09/ 2019 – O diálogo
19/10/ 2019 – O diálogo
30/11/ 2019 – Das invenções da criança às in(ter)venções do analista

A clínica e a Psicose na Psicanálise de Jacques Lacan

Reuniões 2019 – A Clínica e a Psicose na Psicanálise de Jacques Lacan
EM SÃO PAULO

Proponente: Maria Tereza Perez
(Membro-associado Haeresis)

Em alinhamento com a proposta de “Reuniões”, como um dos dispositivos para fazer operar a transmissão da Psicanálise, a Haeresis, também ressalta, neste ano, o esclarecimento da noção de conceito, enquanto aquilo que deve ser lido como lógica. Lacan, ao longo de sua trajetória e ensino, se dedicou a inaugurar e reinaugurar, na séria continuidade da escrita e pesquisa em Psicanálise, conceitos sobre a clínica psicanalítica ante a psicose.
Se Freud já acena com estratégias de solução para a psicose, especialmente através do conceito de delírio, Lacan empreende com coragem e fôlego para fundar as lógicas que imprimem o campo da psicose na história, diante daquele que se ocupa de psicanalisar, ou seja, de subverter o dito classificatório, de desmantelar a ciência e a modernidade enquanto mandantes do gozo desregrado.
De “A Bolsa ou a Vida” ao universo cósmico Joyceano em Finnegans Wake, Lacan empreende uma revisão da estrutura da linguagem para discutir o inconsciente e gozo através de muita conceituação-lógica. Os nós, real em topologia borromeana, dão a direção e o tom dos des-caminhos da clínica psicanalítica, em seus encontros com os gênios, nas amarrações da vida. 
Diante do extenso exercício lacaniano, o objetivo é se debruçar e conversar sobre a como cada conceito foi tomando corpo e se atualizando conforme a clínica promovia matéria. Nesse sentido, será através dos recortes e de relatos clínicos, bem como das necessárias considerações dos participantes que a atividade poderá acontecer.

As reuniões serão mensais, com duração de três horas, às terças, das 19:00h às 22:00h Investimento: 120,00. Será sugerido, antecipadamente, a leitura do recorte textual a ser trabalhado. Solicitação de participação será apreciada pela proponente das Reuniões. Entrar em contato pelo e-mail maitepsico4@gmail.com


Cronograma
Datas Temática
26/02 Abordagem freudiana das psicoses (perda de realidade e reconstrução do mundo)
26/03 Abordagem Lacaniana das soluções nas psicoses: desencadeamento e estabilização
23/04 A Linguagem, estrutura e mais-além
28/05 Mais-além: Lalíngua, letra, escrita 
25/06 Percurso paradigmático do Gozo em Lacan
23/07 Foraclusão, do Nome-do-pai aos Nomes-do pai
27/08 O que temos a enfrentar com a topologia (NÓS)
24/09 Suplência e estabilização? Metáfora/Ato/Obra.
22/10 O autor e sua obra: Joyce, Mutarelli, Arthur Bispo do Rosário. Sujeito e Savoir-fare.
26/11 O autor e sua obra: Joyce, Mutarelli, Arthur Bispo do Rosário. Sujeito e Savoir-fare.

Resenha da Obra “O tratamento psicanalítico de crianças autistas: diálogos com múltiplas experiências”

Resenha da Obra “O tratamento psicanalítico de crianças autistas: diálogos com múltiplas experiências”, de Tânia Ferreira e Angela Vorcaro (Autêntica, 2017, 125 p.)

Por Cirlana Rodrigues

Associação Hæresis de Psicanálise

 

Introdução

 O tratamento psicanalítico de crianças autistas: diálogos com múltiplas experiências, de Tânia Ferreira e Angela Vorcaro (Autêntica, 2017, 125 p.)  é uma escrita endereçada àqueles que apostam no autismo como uma condição singular, histórica, afetiva, cultural atravessada por experiências de sofrimento. Como obra é direcionada ao acolhimento, cuidado, escuta e tratamento desse sofrimento na clínica psicanalítica, campo discursivo onde o autismo não é um movimento de genes alterados, ou um cérebro imperfeito em um corpo deficiente.

Furtado (2011) lembra a querela entre autismo e psicanálise, destacando o que ele nomeia de denegação da contribuição da psicanálise quando o assunto é o autismo, fundada no ressentimento do autismo com a psicanálise, nascido de equívocos mal-intencionados como ‘a culpa da mãe’, entre outros. Desde a nota de rodapé de Kanner (1943), onde o inventor da síndrome autística alertava sobre o fato de que algumas mães, daquelas extraordinárias onze crianças, eram distantes, intelectualmente providas, mas afetivamente desprovidas, parte da psicanálise faz sim por merecer essa repulsa, pois comprou e insistiu nisso, tornando uma observação do psiquiatra a regra geral, a causação do autismo.

Sigmund Freud fundou a psicanálise a partir do deixar falar. Mas como deixar falar aquele que não fala [como nós]? Forçando-o e treinando-o a se comunicar? Falar e comunicar são diferentes e os autistas nos mostram isso: há os que falam e não se comunicam em suas ecolalias, apraxias, recusa ao diálogo, com o corpo; há os que se comunicam e não falam, na medida em que o uso funcional da linguagem não responde pelo ‘falar’ com o outro, enunciar-se como sujeito, por vezes se enunciam pelo silêncio; há os que se comunicam e os que falam, que dizem de si e há os nenhum e nem outro.  Interessante que “deixar falar” é apresentar-se à escuta. Portanto, escutar os autistas é o trabalho da psicanálise, o que Lacan insiste que também determina a forma da palavra.

 

Da obra

A experiência na clínica psicanalítica com crianças autistas é o que nos apresentam Tânia Ferreira e Angela Vorcaro (2017), cujo título da obra traz dois signos importantes para a atualidade sobre o autismo: tratamento e diálogo. Apostar que há um tratamento psicanalítico com crianças autistas é supor uma experiência de sofrimento de sujeitos singulares, supor haver nessa estrutura subjetiva nomeada autismo um inconsciente em funcionamento, o que é diferente de apostar em uma espécie de falência neurológica do cérebro dessas crianças causada por um erro genético. O diálogo se apresenta como a tarefa mais árdua, neste momento. Primeiro, porque dialogar sobre as múltiplas experiências de cuidado com essas crianças e suas famílias já é tarefa laboriosa dentro do próprio campo psicanalítico frente ao imperativo das elaborações epistemológicas necessárias. Segundo,  esse signo diálogo nos lembra que – fora desse campo psicanalítico – ele não se realiza e o que vemos, por vezes, é a recusa ao diálogo com a alteridade necessária para se compreender o que se passa com essas crianças autistas em suas experiências de sofrimento, tratando-se de adequar experiências funcionais, experiências de déficits neurológicos e cognitivos e cuja aposta mais perversa parece ser a venda de uma cura genética, a promessa de cura que por ser promessa é um engano: promessas são feitas para não serem realizadas e, nessas condições, essas “criaturas mais complexas” continuarão a ser  “apenas cores e ruídos e sem significação humana“, nos termos usados por Donna Williams, autista que tomou para si o discurso, citada pelas autoras. Sim, autistas têm suas palavras retomadas, citadas, referenciadas.

Trabalho de investigação, a obra O tratamento psicanalítico de crianças autistas: diálogos com múltiplas experiências é prefaciada por Katia Alvares que antecipa a singularidade do autismo como a direção do tratamento psicanalítico para crianças alocadas em discursos de categorizações e diagnósticos. Disso, depreendo que na problemática do autismo uma questão merece cuidado, a distinção entre os sintomas da criança e essa criança posta como sintoma do discurso social.

Na Introdução, as autoras Tânia Ferreira e Angela Vorcaro colocam o tratamento psicanalítico com crianças autistas dentro da lógica d’A pesquisa como uma aposta antecipada, dizendo de outro modo, dentro da necessária e permanente investigação do que é ser autista na contemporaneidade, da batalha travada por uma espécie de domínio desse objeto ao mesmo tempo soberano e de posse da ciência, a criança autista. Como psicanalistas, as autoras não se esquivam de considerar que as dificuldades nos percursos dessas crianças e suas famílias não devem ser atreladas à condição do ‘quadro clínico’, onde a pouca evolução no tratamento (uso expressão comum em espaços que visam mesmo a evolução do quadro clínico) é por causa da condição do autismo, da constituição do transtorno, e isso vale tanto para os tratamentos centrados no lógica biológica como para a psicanálise: as autoras insistem que são os procedimentos clínicos e os tratamentos o lugar dessas dificuldades, por isso a importância de uma pesquisa que coloque em cena experiências de cuidado exitosas, não perdendo de vista o que seria exitoso em psicanálise.

Em   Autismos, psicanálise e pesquisa: um campo aberto à investigação e à escuta, temos uma saída para o emaranhado polêmico entre psicanálise e pesquisa acadêmica. Porém, as autoras, ambas com vasta experiência nesse emaranhado, aferram-se em um singular método de trabalho atravessado pela psicanálise e que se estabelece a partir da regra básica da associação livre, onde o ‘deixar falar e o escutar’ direcionam o percurso de pesquisa: “[…] de um lado, a riqueza enorme de questões, proposições, premissas e invenções dos colegas psicanalistas acerca do tratamento dos autistas. De outro lado, a contundência espantosa do que dizem os próprios autistas e seus pais sobre o sofrimento de que padecem e as saídas inventivas de cada um frente àquilo que os acomete” (Ferreira e Vorcaro, 2017, p.33). Destaco ainda a proposição das autoras para uma transmissão psicanalítica do conhecimento produzido na pesquisa pelas vias de uma escrita que comporte o indescritível da experiência do tratamento psicanalítico com crianças autistas, recolhido dos dizeres dos psicanalistas, e do enigma do autismo recolhido dos dizeres de autistas e suas famílias: é a escrita, nas palavras das autoras, “na sua função do véu do real” (Ferreira e Vorcaro, 2017, p. 32).

Como um diálogo aberto e franco com o leitor, o que se escreve são duas ousadias: o olhar psicanalítico norteia a investigação com o próprio trabalho psicanalítico e, mais, o quão corajoso é perguntar ao outro o que este tem a dizer sobre o tratamento que lhe foi dispendido: ousadia do campo psicanalítico que não se esquiva de seus atos e supõe saber nos sujeitos, no reconhecimento de sua palavra. Nesses termos, psicanalistas, autistas com suas autobiografias e familiares foram ‘entrevistados’ nisso que compreendo como um processo dialógico cujos eixos norteadores foram as controvérsias e contradições no tratamento psicanalítico com crianças autistas, em que o enfrentamento, neste tempo da história do autismo é, antes, dentro do próprio campo psicanalítico. Sobre a pesquisa em psicanálise, o conhecimento que se produziu não deve ser tomado pelo leitor como um modelo de tratamento na clínica, mas que o compartilhar experiências dessa clínica com crianças autistas possibilita, a nós leitores, o trilhamento de nosso próprio percurso nessa clínica: a invenção de uma clínica com autistas e suas famílias.

 

Sobre Autismo: um conceito ainda impreciso e a contenda do diagnóstico, Ferreira e Vorcaro (2017, p.36) iniciam trazendo um destaque na origem do termo “autismo”: Bleuler “extirpou a partícula central “eros” do autoerotismo freudiano”. À guisa dos fundamentos da noção e dos aspectos do quadro psicopatológico que nasceu enlaçado à esquizofrenia e que com o psiquiatra Léo Kanner ganha autonomia nosográfica apresentado nas páginas seguintes pelas autoras, recorto a retirada, desde sempre, do autismo do campo discursivo da psicanálise, o que a obra aqui resenhada enfrenta e recusa, teima que sujeito autista ama a si mesmo, antes de tudo. Esse psiquiatra austríaco distancia o autismo das psicoses infantis, mas destaca que recebeu as onze crianças sob a égide de “idiotas ou imbecis” e, para as autoras, “não são outros os ventos que sopram” (p.36), pois atualmente o autismo se encontra sobre a determinação da lei que o reconhece como uma deficiência neurológica, emaranhada à dita deficiência intelectual,  apagados subjetivamente e, ainda mais, atrelados a tratamentos que recusam sua singularidade e a torna  ilegal, marginal: sigamos com Kanner que olhou detalhadamente para cada uma dessas onze crianças e recusemos esse “autismo” da lei da política pública e vamos perseverar no “aut(oero)tismo” da lei simbólica, fundante desses sujeitos.

Aprofundando na leitura do texto instaurador de discursividade de Léo Kanner (1943), Os distúrbios autísticos de contato afetivo, Ferreira e Vorcaro (2017)  discorrem sobre os aspectos fundamentais dos modos de funcionamento autista, afastando-o tanto do retardo como da esquizofrenia, destacando as precocidades sintomatológicas lá nos primórdios da vida psíquica onde se vê no bebê a ausência da atitude antecipatória, a particular relação com  a linguagem, esta que escapa ao limite aporte dos processos comunicativos e aos limites dos sentidos oferecidos pelo outro, o horror de ser invadido com que crianças autistas tomam os ruídos e os movimentos dos objetos, o que vemos ser, por vezes, reduzido a uma falha sensorial na criança e, possivelmente, a mais elementar e fundamental característica da estrutura autística: a imutabilidade, uma espécie de paixão obsessiva de permanência que pode se expressar pelas conhecidas estereotipias, movimentos repetitivos que se nomeiam como disfuncionais, automutilações, entre outros sintomas, mas essa paixão pode se expressar pela insistência necessária de uma repetição monótona, de uma organização muito particular de seu mundo físico e psíquico.

Nesse ponto da obra, as psicanalistas ampliam a discussão sobre o diagnóstico no autismo, a partir de Kanner, trazendo outras questões acerca da alfabetização e leitura dessas crianças e suas dificuldades  na entrada em uma nova ordem de linguagem, sobre a importante questão da relação com os objetos para o tratamento psicanalítico, em torno do diferente modo de relação dos autistas com as pessoas, e dizer diferente não é dizer impossível, e do reconhecimento de habilidades cognitivas que distancia essas crianças da idiotia. Ainda, as autoras ressaltam no trabalho de Kanner tanto o aspecto inato da síndrome, como o aspecto relacional, ponto polêmico que muitos tomam como antitéticos, insistindo equivocadamente ou no biológico/inato ou no relacional. Ao longo dessas elaborações, as autoras vão amarrando testemunhos de autistas como Grandin, Nothomb, Higashida e familiares acerca de suas experiências muito particulares com cada um desses sintomas autísticos. É justamente nessa particularidade de cada autista o lugar do tratamento psicanalítico e, na aposta aprendida com Kanner, de que esses sujeitos podem, cada um a seu modo fascinante e particular, caminhar pela vida.

O que os autistas nos ensinam é um título que anuncia um dos pontos mais importantes da pesquisa psicanalítica feita por Tânia Ferreira e Angela Vorcaro (2017): a suposição de saber nos sujeitos, ponto tão caro à clínica psicanalítica e miolo do que as autoras discutiram no item anterior, do encontro entre psicanálise e pesquisa. Nessa parte da obra trata-se de trazer à cena, setenta anos após Kanner, o que elas nomeiam como “soluções dos autistas” para o poço obscuro do autismo, a saber, aquilo que os exila, os isola dos discursos, do Outro como alteridade e do mundo. A partir da escrita de autistas e seus pais, as autoras investigam aspectos do tratamento psicanalítico como o autista e seu funcionamento, a questão do diagnóstico e seu efeito na criança e na família, e as noções psicanalíticas da clínica como o olhar, a voz, o Outro, a linguagem e os objetos, o corpo e seus avatares, a relação com o tempo e o espaço, a hipersensibilidade a ruídos, cheiros, tatos. É o momento em que as autoras nos apresentam a noção psicanalítica de autismo, na contramão de um conceito de doença a ser extirpada: “para a psicanálise é um trabalho de autotratamento daquilo que sidera, avassala e consome o sujeito: o Real” (p. 53). O autismo entra na lógica da psicanálise, onde sujeito é a resposta de cada um ao Real, ao que nos causa e nos acomete por ser uma presença em ausência, muitas vezes difícil de suportar. Para esses sujeitos essa resposta está centrada em si mesmo, não direcionada ao mundo e ao outro/Outro, como vemos nas outras estruturas: o aut(oero)tismo freudiano tem aí sua realização. Ao escutar de pais e autistas o drama de sua entrada no poço obscuro do autismo (palavras de uma mãe que as autoras nos trazem) o que temos é um texto que além de nos ensinar de que se trata esse poço obscuro, de como atravessar esse caminho e, para além dele seguir a vida, nos coloca em uma ordem do discurso marcada pela singularidade e pelos afetos. Todos nós que lidamos com crianças autistas e suas famílias, apostando nessa singularidade, somos tomados por essa ordem. No tratamento psicanalítico com crianças autistas trata-se de insistir que esse discurso circule, de insistir que o saber parental faça as vezes do simbólico: essa direção de tratamento vai na contramão do que se estabelece, onde especialistas negligenciam e apagam essa suposição de saber dos cuidadores sobre seus filhos, modo perverso de fazer prevalecer o seu conhecimento. Segundo Ferreira e Vorcaro (2017), a função do analista diante desse obscuro, das repetições sem fim, é de escutar aí o singular, o que pode advir do obscuro.

Os testemunhos trazidos pelas autoras nos ensinam e nos emocionam e, a muitos, podem despertar certa incredulidade: então, como as autoras, vamos escutar, no dia-a-dia da clínica com crianças autistas seus dizeres e de suas famílias e como os pais, saber respeitar as saídas que essas crianças arranjam, sem encobrir o que é de Real.  A experiência de angústia dos pais frente ao diagnóstico, assim como o cotidiano da relação com o filho, os colocam em uma espécie de via crucis, uma jornada errante indo de especialista em especialista. Realidade vendida como fórmula de tratamento pelas políticas que investem não em sujeitos, mas em enganos, na determinação infundada de que apenas este ou aquele método comportamental serve para o autista: escutando-os, parece que quanto mais especialistas, mais apagamento. Em seu silêncio, o autista vai lidando com o seu impossível de suportar e a entrada na clínica se dá mediante a experiência de sofrimento de cada um, pois a clínica psicanalítica trata daquele que sofre nesse trato com o impossível de suportar: um exemplo desse autotratamento gestado em uma sabedoria silenciosa são as autobiografias lidas pelas autoras, e tantas outras que são publicadas, o que nos leva a apostar em um caminho sem volta na entrada nos discursos de autistas e suas famílias. Na clínica cotidiana, essa sabedoria silenciosa se apresenta nos gestos mínimos surpreendentemente direcionados ao outro, na imitação inesperada, nas palavras soltas, mas endereçadas pelas voltas que dá, nas primeiras onomatopeias, no silêncio quase pensativo durante a organização dos objetos que encontrou em outra ordem, no sorriso, no jubilo [mesmo que alucinatório] diante do pequeno espelho, entre tantos outros gestos e dizeres.

Acerca d’A psicanálise e os autismos, Ferreira e Vorcaro (2017) discorrem sobre o enigma do autismo e seus efeitos no campo psicanalítico. Iniciam a exposição colocando em cena os impasses do diagnóstico em vários campos e suas incidências na psicanálise, onde a insistência na origem orgânica, reduzindo o autismo a um cérebro sem vida acaba por apagar a subjetividade (vida psíquica e não apenas comportamental e fisiológica) que os autistas e suas famílias testemunham e que as autoras nos antecipam. A partir de autores como Anserment e Giacobino, a querela do diagnóstico e a causa orgânica para o autismo tendem a desabonar modos de tratamento centrados na subjetividade do autismo, como a psicanálise, aliás, principalmente como a psicanálise. As autoras fazem um importante esclarecimento sobre essa questão: “Interessante lembrar que em relação aos autismos, Kanner, já em 1943, nos dizia que o autismo demonstra a inutilidade de manter uma distinção entre o orgânico e o psíquico. Como sua etiologia é variada, a polêmica ainda sustentada por alguns profissionais de ser orgânico ou psíquico torna-se sem sentido. Podemos falar de diferentes tipos de autismos. Daí a utilização do termo “autismos”, no plural” (Ferreira e Vorcaro, 2017, p.68). Pluralidade parece ser uma característica insuportável para aqueles que tomam o autismo como um cérebro sem vida, conforme mencionam as pesquisadoras. Todavia, o que testemunham autistas e seus pais, e a clínica psicanalítica é que nos autismos a vida pulsa, ecoa, consoa e ressoa. Uma espécie de ciência desvairada quer manter-se no controle da vida e do afeto desses sujeitos às custas de impor, pelas vias políticas, a definição do autismo como deficiência, e não pela via da clínica. Assim, possuidores do poder que a política e seus arranjos lhes concedem fixam a essas crianças um destino obscuro.

Na sequência, as autoras abordam o aumento no número de casos de autismos, quase endêmico, o que podemos não apenas supor efeito da antecipação para a primeiríssima infância de critérios precoces de diagnósticos, mas também efeito da ampliação dentro da lógica do espectro, onde sintomas comportamentais que coexistem em diferentes condições psicopatológicas são alocadas pela política do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) dentro do Transtorno do Espectro Autista [TEA]. Indo adiante, Ferreira e Vorcaro (2017) apresentam as definições e aspectos da abordagem psicanalítica para os autismos, iniciando com o nó dentro da psicanálise acerca da tomada do autismo como uma quarta estrutura subjetiva, onde ainda há os que negam mesmo essa estrutura e, também, os que colocam o autismo como uma existência dentro do campo da psicose: as autoras sustentam na história de seu trabalho que o autismo não é psicose, sendo essa a hipótese  a prevalecer dentro do campo psicanalítico. Questão importante, pois o reconhecimento do modo de funcionamento psíquico de cada sujeito autista é determinante na direção de tratamento, é reconhecer a singularidade no autismo. Dada a envergadura da questão, as autoras não se detêm nela, o que ultrapassaria o escopo da obra.

A causa do autismo é um enigma áspero para os psicanalistas. O leitor, ao repostar-se às páginas seguintes, irá se deparar com controvérsias e, por vezes, contradições entre os psicanalistas, mas a psicanálise de orientação lacaniana, no que tange à causação do autismo parte de uma hipótese nuclear: as causas do autismo convergem para as operações de constituição do sujeito, como nas outras hipóteses psicopatológicas, todavia, no autismo as vias que o pequeno sujeito percorre em sua constituição são tortuosas de modo muito precoce, nas primeiras operações iniciadas no estádio do espelho. Elas recorrem a autores como Lacan, Laznik-Penot e Vorcaro para ampliar esse ponto, o qual o leitor merece se remeter para levar adiante a discussão e a proposição levantada por elas acerca do autismo e da constituição do sujeito, em psicanálise, em que o fundamental é reconhecer o sofrimento do sujeito nos autismos e o trabalho e invenções desse sujeito e seus arranjos “frente ao que o aprisiona, o que não podemos negligenciar ou interferir sem um cálculo clínico – cuidado e delicado” (Ferreira & Vorcaro, 2017, p. 87).

Ferreira e Vorcaro (2017) encerram a obra com uma discussão em torno daquilo que se depreendeu da pesquisa feita, e a justificou, O tratamento psicanalítico de crianças autistas: diálogo com múltiplas experiências, de modo específico, no trato com as crises do sujeito nos autismos, onde a relação com a noção psicanalítica de pulsão supõe não calar essas crises, escutá-las, pois ocorrem ali onde o verbal dá lugar ao irredutível. Partindo das elaborações de Diana Rabinovich sobre a clínica das pulsões, onde essa autora discorre sobre o que chama de impulsões como aspectos das patologias do ato, interessa às autoras o sujeito mudo da pulsão, aquele no lugar do sujeito desejante. Na clínica com os autismos, é desse sujeito que se trata, não apenas comportamentos e estereotipias, mas a clínica psicanalítica avança ao reconhecer esse sujeito mudo em movimentos e ações enlouquecidas, desordenadas se sem sentido: “Qual de nós, na clínica com autistas, nunca deparou com uma criança debatendo-se, gritando desesperadamente, andando de um lado a outro, freneticamente, batendo em si ou no outro, mordendo-se, agitando-se indefinidamente?” (Ferreira e Vorcaro, 2017, p.90). Todos nos deparamos com o autista, sujeito mudo. Essas crises constantes levam as autoras a questionarem sua importância para o psiquismo de um autista.

Desse ponto em diante da obra, as psicanalistas investigam sobre o tratamento psicanalítico possível desse sujeito mudo, em crise constante para manter-se vivo como subjetividade, tendo como objetivo formalizar as crises para o sujeito autista. As autoras trazem as falas dos autistas sobre o que lhes acomete nesses momentos de crise e como as compreendem e, também, trazem as falas dos psicanalistas sobre os efeitos desses atos enlouquecidos que não entram nas trocas simbólicas, onde nos lembram, os autistas, que o Outro é ausente. A hipótese das autoras é a de que na força desses atos, dessa agitação, o sujeito busca, de modo paradoxal, um corte fundante na linguagem, ali onde não haveria essa marca simbólica. E diante dessa hipótese, Ferreira e Vorcaro (2017, p.91) sustentam que a crise de um autista não deve ser calada ou contida, mas compreendida como um trabalho desse sujeito mudo, “um ato vivo através do qual um sujeito se cria e se anima”, uma invenção diante do Real irredutível, posso sustentar a partir dessa hipótese. Ainda, interessante como neste ponto da pesquisa psicanalítica sobre os autismos e seu tratamento na clínica psicanalítica, a suposição de um sujeito mudo, como levantada pelas autoras, mereceria ser elaborada em articulação com as proposições de Jean-Claude Maleval sobre a voz nos autismos: voz é objeto pulsional.

Voltando às elaborações de Ferreira e Vorcaro (2017), estas levam adiante, nas páginas seguintes da obra, a construção necessária sobre impulsões e sua diferenciação do acting-out, do ato e da passagem ao ato, em toda a complexidade tal como elaboradas por Sigmund Freud e Jacques Lacan, visando compreender o que se passa com o sujeito autista no que se refere à modalidade de resposta dessas “ações enlouquecidas”, o lugar nessas ações desse sujeito e se são articuláveis como estrutura e ato. As autoras fazem, mediante a investigação que desenvolvem, uma fundamental questão, situando  a crise na invenção do autismo diante da angústia do Real: “Essa espécie de ‘crise permanente’  a que crianças autistas estão submetidas não seria, ela mesma, um modo de fazer frente nos moldes da passagem ao ato, à demanda asfixiante do Outro e à angústia avassaladora” (Ferreira e Vorcaro, 2017, p.95): a função da crise no psiquismo de um sujeito autista é de apaziguar o sofrimento, não podendo ser calada, mas sim acolhida na escuta de sua existência singular.

Mediante esse reconhecimento da função da crise nos autismos, Ferreira e Vorcaro (2017) mostram o recurso do duplo como aquele a ser colocado a trabalho na invenção dos cuidados a esse sujeito mudo cujas soluções podem ser crises angustiantes e infindáveis: sem o recurso da fantasia/do fantasma, o que inventa o sujeito autista? Esse sujeito faz apelo ao duplo como arranjo contra a angústia, ali no vazio da linguagem. As investigadoras partem, como vêm fazendo desde o início da obra, de Freud e Lacan, para levar adiante essa hipótese do duplo como recurso no autismo e passam ao que os autistas dizem sobre sua experiência subjetiva e à distinção feita por Jean-Claude Maleval nesses autistas de suas criações dos duplos: a experiência de estranhamento e autorreconhecimento possível desses sujeitos, experiência de proteção por meio de objetos, animais, máquinas. Aqui vale lembrar, como as autoras, que a retirada de objetos dos autistas pode ser uma experiência de extrema angústia, na medida que se realiza como a retirada de sua borda, de sua proteção subjetiva. Contudo, nesses duplos, os autistas desaparecem para o mundo, cerne da estrutura autística e de seu gozo mortificador, e paradoxo dessa clínica cuja saída possível, indo com Maleval, é a aposta das autoras no que se compreende como Outro de síntese, e que compreendo como aquela escolha intelectual do autista, a montagem que ele mesmo realiza de uma alteridade de peças encaixadas, onde junta pedaços do mundo para fazer ver nele um pedaço de si, seu duplo suportável.

Do recurso do duplo, Ferreira e Vorcaro (2017, p.100) trazem à cena do tratamento psicanalítico de autistas, o corpo do analista que pode vir a fazer função desse duplo, conforme experiência de alguns dos psicanalistas entrevistados, onde esse corpo é oferecido ao trabalho do autista: “a clínica do autismo é uma clínica com o corpo do analista”, ativo e que se movimenta, se liga, ampara e serve de anteparo para a criança autista em seus movimentos, em seus jogos, em seu equilíbrio, em sua mistura com os objetos presentes, nas trocas sensoriais, nas recusas. Todavia, vale lembrar que é a criança autista que estabelece a aproximação e a distância, o que suporta e o que precisa colocar a trabalho.

Do analista e da criança autista, as autoras vão discutir a expressão “prática entre vários” e a entrada desse dispositivo no tratamento de crianças autistas, usado quase como regra geral principalmente em instituições públicas: o destaque é dado à “transferência diluída” entre vários, o que pode apaziguar os efeitos do Outro invasivo.  O trabalho do analista consistiria em ser raro, sútil, não invasivo: “O analista precisa estar tão delicadamente assentado, que sua voz, seu olhar, qualquer insígnia de sua presença deve ser calculada clinicamente” (Ferreira e Vorcaro, 2017, p.101). Supondo o sujeito mudo, trata-se de silenciar-se para escutá-lo ali onde o Real faz ruídos no corpo: na voz, no olhar, nos movimentos, nas crises, na distância necessária do Outro. Ainda discorrendo sobre o tratamento psicanalítico com crianças autistas, as autoras retomam a importância da dita intervenção a tempo (expressão alternativa a intervenção precoce) com bebês que se apresentam nas vias de um autismo e crianças pequenas, onde o trabalho deve operar no tempo exato de sua constituição psíquica, supondo um sujeito ali sob riscos de apagamento subjetivo: campo aberto e fértil dentro da psicanálise.

Nos dois itens finais da obra, Ferreira e Vorcaro (2017) se debruçam sobre as premissas do tratamento psicanalítico com crianças autistas propondo uma clínica de detalhes, um tratamento para cada criança autista. Sobre as premissas do tratamento psicanalítico, as autoras destacam, considerando as contradições e divergências no campo da prática clínica psicanalítica, a fala dos analistas e dos autistas, e se recusando a prescrever o melhor tratamento: a psicanálise tem um corpo teórico que sustenta o ato analítico; há um sujeito nos autismos e é com ele que lidamos no tratamento psicanalítico, sujeito mudo a ser escutado, posso inventar com o dito das autoras; interessa-nos a resposta que cada criança deu ao que foi previamente oferecido a ela, pois, é sempre o sujeito que se articula ao que lhe é dado ou não; cada criança determina o modo de aproximação com o terapeuta trazendo o que será o operador de tratamento; acompanhar o sujeito em seu trabalho diante do difícil de suportar, acompanhá-lo em seu modo particular de estar no mundo, pois eles nos contam o que lhes faz sofrer; seus sintomas e comportamentos que para muitas teorias devem ser extirpadas, para o psicanalista é trabalho do sujeito em suas saídas subjetivas e devem ser escutadas até que o autista deles possa prescindir e construir novas saídas.

Ferreira e Vorcaro (2017) formalizam em sua pesquisa psicanalítica a direção de tratamento da criança autista. Nessa direção de cuidado, alguns vetores escutados nas falas dos psicanalistas em suas experiências com as crianças autistas: o psicanalista não demanda à criança o que fazer; atentar para a modulação da voz, para aquelas crianças onde o  objeto voz lhes é invasivo; o analista não encara uma criança autista, seu olhar acompanha o trabalho em que se coloca o pequeno sujeito;  deixar cair o fascínio por essas crianças, onde a presença do analista é suportável pela criança autista; a estimulação sobre o corpo do autista, o toque no corpo desse sujeito é recebido sempre de modo invasivo (este é um dos aspectos mais controversos das proposições das autoras, na medida que é pela verve da estimulação sensorial que se sustentam os trabalhos de reabilitação de crianças autistas e, quiçá, bebês com sinais de alerta para dificuldades no neurodesenvolvimento); cabe ao analista manejar os objetos autísticos e a imutabilidade constitutiva desses sujeitos e não destituí-los disso, na medida em que a psicanálise entende isso como organizadores psíquicos nos autismos; cada criança interroga  o saber especializado sobre si e nos interroga em nossa teoria: lugar de sua invenção e não de pura expressão de seus sintomas patológicos, como as crises; não é função do analista impor regras de comportamento a essas crianças, na medida em o Outro lhes é insuportável; o trabalho com o duplo, a ‘extração do objeto’ (ou sua suplência, onde a criança cederá algo ao analista entrando no laço social, se distanciando de saídas como as automutilações) e a importante construção da imagem corporal são operadores no tratamento psicanalítico; acompanhar o circuito da voz e do olhar da criança, em sua função de objeto pulsionais; em transferência, o analista valida o ato do autista; pela voz do autista, o analista é convocado a compartilhar aquela enunciação fugaz, imotivada e esse convite pode ser porta aberta para a transferência; o paradoxo do autista em sua necessidade e em sua recusa com o campo do Outro, com o discurso é tratado na clínica psicanalítica não pelas vias da imposição do laço social (da boa interação), mas pela construção de uma borda para o corpo do autista onde esse Outro invasivo possa ser acolhido sem sofrimento, tendo como limite o suportável para esse sujeito.

Encerrando a obra, e não as questões levantadas na pesquisa realizada, e menos ainda o trabalho na clínica psicanalítica com a criança autista, Ferreira e Vorcaro (2017) tocam em um ponto de tensão, a inclusão de crianças autistas na escola, buscando o que pode a psicanálise contribuir na lida com a angústia presentificada no que muitos educadores perguntam: o que e como fazer? Para esses educadores, o autista também é um enigma e como encarna a presença do vazio, nos mostra a dimensão do que Freud disse sobre a educação como impossível. As autoras lembram do fracasso de nosso sistema educativo que a criança autista na escola só faz escancarar: o apagamento da singularidade na infância. Ressaltando que a lei da inclusão escolar apenas garante a entrada dessas crianças na escola, as psicanalistas vão se colocar a trabalho diante do fato d’a exclusão dos autistas “Na escola”, exclusão essa que se realiza de diferentes modos: estão na escola, mas fora da sala de aula; a dificuldade na construção dos projetos pedagógicos; as tentativas de adaptar a criança à escola. Trata-se de se perguntar como uma escola se adaptaria a uma criança autista, como a descobria: gestos de reconhecimento do que a faz sofrer e do que apazigua o seu sofrimento; retirar o manto da deficiência e da incapacidade que tampona suas possibilidades criadoras (são crianças, portanto, se fundam na criação); não recorrer à imposição do laço; e, menos ainda, à medicalização de sua vida; a experiência no encontro com as outras crianças, estas crianças que incluem.  Ainda, as autoras lembram que, a seu modo, a criança autista se exclui desse sistema educativo e isso pode justificar os impasses e fracassos anteriormente mencionados, mas podem nos levar a perguntar qual caminho a ser construído com essa criança para que esse silêncio excludente seja rompido, trazê-las para dentro da escola, pois caso não se faça isso, todo projeto de inclusão será fracassado. As autoras mostram que a angústia provocada pelo enigma do autismo no educador pode ter como saída a conformidade com o fracasso, a frustração por não conseguir exercer sua função de educador.

Nesse ponto, a psicanálise ajuda a compreender que os enigmas não necessariamente são resolvidos, mas sempre nos colocam a trabalho, nos colocam no caminho de construções e invenções, de atravessar rompendo o Real que insiste, terminando com Sigmund Freud e Jacques Lacan, referidos por Ferreira e Vorcaro (2017).

 

  

Considerações Finais

Com a escrita do saber sobre o tratamento psicanalítico com crianças autistas, depreendido da escuta dos autistas, familiares e psicanalistas, Ferreira e Vorcaro (2017) abrem o caminho para o debate, provocam elaborações e insistem que “cada psicanalista, cada instituição, cada serviço de atenção a crianças autistas possa interrogar seu fazer, no compromisso com o melhor tratamento que pudermos ofertar” (2017, p.102).

Finalizando, destaco três pontos explorados na obra de modo contundente em um estilo que atesta e ratifica que há sim uma clínica psicanalítica com o autismo: a psicanálise como campo de pesquisa, os fundamentos teóricos sobre o autismo e a formalização do fazer nessa clínica, enlaçados pelos testemunhos dos autistas e suas famílias, e dos psicanalistas.

Como psicanalistas, Tânia Ferreira e Angela Vorcaro escutam o sofrimento, os impasses e os enigmas na clínica com crianças autistas e suas famílias e, por serem psicanalistas, se colocam a trabalho a partir mesmo disso: se o autista precisa ir recusando o Outro e ir se aproximando do Outro, o psicanalista precisa seguir essa alternância escrevendo, bordeando o enigma dessas crianças.

 

Referências Bibliográficas

FERREIRA, T. e VORCARO, A. R. O tratamento psicanalítico de crianças autistas: diálogos com múltiplas experiências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

FURTADO, L. A. R. Sua majestade o autista: Fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo. Tese de doutorado – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011. 205 p.

KANNER, L. Os distúrbios autísticos do contato afetivo. In: ROCHA, P. (Org.). Autismos. São Paulo: Escuta, 1997.

Espaço Hæresis de história e transmissão da Psicanálise – Formação finita e infinita na escola lacaniana – de Paris ao Sertão da Farinha Podre

Espaço Hæresis de história e transmissão da Psicanálise

 

Tema 2018: Formação finita e infinita na escola lacaniana – de Paris ao Sertão da Farinha Podre

 

Na carta de dissolução de sua Escola, em 1980, Lacan afirmou: “Há um problema da Escola. Não é um enigma. Eu me oriento para isso, e já não é sem tempo (…). Trata-se da dissolução. (…) Em outras palavras, eu persevero” (p. 319/320). Dias depois da publicação da carta de dissolução, Lacan (1980) declara: “Não espero nada das pessoas e alguma coisa do funcionamento. Portanto é mister inovar porque esta Escola, eu a errei ao ter fracassado em produzir a partir dela analistas que estivessem à altura. “

 

O ponto de basta de Lacan foi um ato analítico. Marcou o fim de uma tentativa de institucionalização da formação do analista, mas não da transmissão em psicanálise. Esses impasses de institucionalização, entre formação e transmissão, insistem em fazer questão no campo psicanalítico. Freud, em Analise finita e infinita (1937), evidenciava sua preocupação com as análises de seus primeiros analistas. Anos antes, Ferenczi (1930) havia se queixado com Freud sobre seu processo de análise, acreditando que não havia chegado ao fim. Começou a trabalhar com os problemas do fim de análise e abriu um espaço entre os primeiros analistas para questionar as balizas que determinariam o final de análise, especialmente dos analistas. No texto de 1937, Freud colocava a trabalho essa discussão e parece ter indicado que conceitos como pulsão, resto e impossibilidade davam um norte para a elaboração de algumas respostas aos impasses do campo freudiano.

 

Na década de cinquenta, Lacan havia dado início a sua Escola a partir desse impasse herdado do ensino freudiano, em seu tempo de analista didata na IPA. Ele fundou o campo lacaniano em busca de saídas para (1) o problema do final de análise, (2) o impasse nas análises dos analistas e, sobretudo, (3) o sucesso na formação das primeiras gerações de analistas pela IPA, que, produzindo analistas ideais, fracassava na transmissão da psicanálise freudiana – a afirmação inconsciente em sua radicalidade.

 

“Eu me esforcei em demonstrar como se especifica o inconsciente freudiano. Aos poucos, os universitários tinham conseguido digerir o que Freud, por outra parte, com muita habilidade, tinha se esforçado em tornar-lhes comestível, digerível. Freud mesmo se prestou a isso ao querer convencer”.

 

Lacan ia na contramão do campo freudiano: falava para poucos, usava uma linguagem nada didática e construiu dispositivos específicos para sua escola, como o cartel e o passe. No entanto, trinta anos depois, algo insistia em não se inscrever. Era disso que a psicanálise tratava, afinal.

 

O que o fracasso da escola de Lacan e os impasses das analises infinitas no campo freudiano nos ensinam sobre a transmissão da psicanálise? Com quantos dispositivos se (des)constrói um analista? O que tudo isso tem a ver com o campo psicanalítico em Uberlândia?

 

Com essas questões, abrimos os trabalhos do espaço de história e transmissão da psicanálise no ano de 2018. Vamos percorrer alguns textos de Lacan dos Escritos e Outros Escritos, tendo como eixo central as tentativas de formalização dos dispositivos de formação, para acompanhar o que insiste diante de todos os problemas e fracassos deste no tempo lacaniano.

 

“Todos julgam ter uma idéia suficiente sobre a psicanálise. O inconsciente, ora, é o inconsciente. Todos sabem agora que existe um inconsciente. Não há mais problemas, mais objeções, mais obstáculos. Mas o que é esse inconsciente? (…). No fim das contas todos concordam, a psicanálise é um assunto encerrado, mas, para os psicanalistas, não pode sê-lo”. (Lacan, 1967)

 

 

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1937) Análise finita e infinita. In Fundamentos da Clínica Psicanalítica, Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

FERENZCI, S. (1928) Problemas do fim de análise.

LACAN, J. (1980) Carta de dissolução. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2001.

LACAN, J. O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.


Dos encontros: Realizaremos encontros quizenais, aos sábados, das 09:00 h às 10:30 h, no espaço da Hæresis Associação de Psicanálise, localizado à  Rua Francisco Vicente Ferreira, 282 – Uberlândia(MG). Datas previstas: 10/03; 24/03; 07/04; 05/05; 19/05; 02/06; 16/06; 11/08; 25/08; 22/09; 20/10; 01/12 (continua em 2019).

Informações sobre valores e contato com responsável pelo Espaço, pelo e-mail: haeresispsicanalise@gmail.com

Vagas Limitadas.

 

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