Autor: Fabiano

Entrevista com Fábio L. F. N. Franco – III Reunião Aberta – Hæresis Associação de Psicanálise

A III Reunião Aberta – Hæresis Associação de Psicanálise foi realizada em 06/07/2019. Considerando o entrelaçamento entre a experiência clínica como nuclear da psicanálise e o discurso psicanalítico como pertencente ao campo social, histórico, cultural e de saberes da sociedade contemporânea, abordamos as formas de subjetivação na atualidade brasileira.¹ Nosso tema partiu da proposição do pesquisador e psicanalista Fábio L. F. N. Franco, membro do FCL (SP), Doutor em Filosofia (USP) e integrante do LATESFIP (USP): “O Governo do excedente: Necropolítica e formas de subjetivação“. 

Buscando ampliar o debate, conversamos com Fábio Franco sobre seu trabalho e o tema de nossa reunião.


Thiago Martins de Melo, Necrobrasiliana (2019)

Hæresis: Durante a leitura de sua tese “Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil” ² e, retornando ao texto freudiano Luto e Melancolia (1917), é possível considerar que a melancolia como conceito estabelecido por Freud é pertencente aos tempos de gestão da vida [biopolítica] e, por isso, faz-se necessário sua atualização para nossos tempos de gestão da morte [necropolítica]? O que pode ser mostrado no enunciado: “Não bastasse a minha melancolia, agora a melancolia do mundo.”

Fábio: Não penso ser possível dizer que um conceito é necropolítico ou político. Temos exemplos de conceitos forjados para justificar formas de controle político da população que foram reconfigurados como categorias orientadoras da crítica social. Tal é o caso do próprio conceito de biopolítica, que aparece para legitimar as formas de purificação e saneamento do corpo social, mas se converte, com Foucault, num instrumento essencial para se conduzir a perspectivação crítica das tecnologias de poder a partir do século XVIII. Sendo assim, mais do que determinar se a melancolia é um conceito bio ou necropolítico, o que, insisto, não me parece nem importante, nem possível, é acompanhar os destinos dessa categoria clínica da Viena de Freud – que, é bom lembrar, não forja o conceito, mas o inscreve no campo da psicanálise – para a América Latina, para a Palestina ou para a África. Dessa forma, é possível identificar as formas como a melancolia se inscreveu em dispositivos de necrogovernamentais do sofrimento social, tornando-se, como sustentamos na tese, um afeto necessário para a organização dos vínculos em determinadas sociedades.

Hæresis: Ainda, considerando suas elaborações a partir do texto freudiano mencionado, e discutindo “as ressonâncias políticas da exclusão social do luto, e de sua reclusão como fenômeno psíquico individual” (Franco, 2018, p.175), qual sua posição frente às contundentes críticas epistemológicas feitas atualmente, dentro do próprio campo psicanalítico, sobre uma ‘espécie’ de impossibilidade de ‘seguir com Freud’, impossibilidade essa marcada por uma veemente crítica que coloca em destaque um Freud indissociável da leitura biológica em conceitos como o de ‘pulsão’?

Fábio: Essa frase citada da minha tese se inscreve no momento que apresento a leitura de Jean Allouche sobre Luto e Melancolia, de 1917. De fato, para Allouche, esse texto de Freud pode ser compreendido como um esforço de resgatar o estatuto normal do luto enquanto fenômeno psíquico individual. No mesmo capítulo da tese, recupero a interpretação que a filósofa estadudinense Judith Butler constrói sobre o mesmo artigo freudiano. Ela, contudo, interessa-se por colocar em relevo exatamente o contrário do que preocupava Allouche. Para Butler, Luto e melancolia é um texto clínico com evidentes ressonâncias políticas, que teriam passado despercebidas talvez para o seu próprio autor. De certo modo, essa significativa diferença nas interpretações de Luto e Melancolia empreendidas por dois qualificados estudiosos de Freud revela que a relação entre um leitor e uma determinada obra não pode tomar a forma de um mero decisionismo consumista do tipo: “quero isso, não quero aquilo”.

O filósofo político contemporâneo, Claude Lefort, no seu magnífico estudo sobre Maquiavel, intitulado O trabalho da obra, publicado originalmente em 1972, insiste que uma obra de pensamento não existe fora das relações que tecem entre si texto, escritor e intérpretes. Não se trata, porém, de relações pacíficas, harmônicas. Ao contrário, a obra de pensamento se caracteriza pela negação de um suposto saber, que assumia o lugar de verdade absoluta, abrindo espaço para a emergência do novo, de perguntas até então obstruídas, de lacunas que darão a pensar e a dizer na posteridade, na história. Mas, observava Lefort a respeito dos intérpretes do pensador florentino, há sempre o risco iminente de que os leitores tentem colocar a obra no antigo lugar que fora ocupado pela verdade absoluta destronada, tamponando a indeterminação produtiva da obra. Acontece, porém, que ao tentar determinar a indeterminação que pulsa na obra, o intérprete, paradoxalmente, faz aparecer nelas novas zonas obscuras, irrepresentáveis. Assim, por mais que se queira reduzir a obra ao silêncio de uma verdade idêntica a si mesma, a indeterminação irrompe, projetando-a novamente na história.

Fiz essa longa digressão pois creio que as considerações de Lefort lançam importantes considerações sobre a pergunta que vocês me colocam. Nós, psicanalistas, conhecemos bem esse preconceito realista, denunciado por Lefort, que anima muitos dos nossos colegas, leitores de Freud e Lacan. Eles pressupõem que sob a obra, há a verdade da obra; que sob as indeterminações, lacunas, rasuras, contradições dos textos, há Um sentido inscrito no seu âmago, que está à espera dos melhores leitores para ser finalmente posto à luz. “Ao menos, deve existir um não lacunar”, fantasiam, apesar das análises concluídas. Contudo, os textos de Freud, Lacan e outros resistem a todos esses esforços, continuando a nos fazer pensar e dizer.

À luz dessas considerações, parece-me que é insustentável dizer que “não é possível seguir com Freud”, uma vez que Freud, enquanto nome da obra, não é capaz de unificar a indeterminação que insiste nos seus textos, forçando a abertura de novas possibilidades interpretativas, como as que eu apresento na tese.

Quanto a isso, um excelente exemplo é justamente o conceito de pulsão. A partir de Lacan, pode-se interpretá-lo de maneira radicalmente oposta a toda tentativa de identificá-lo com uma espécie de resíduo biologizante no interior da metapsicologia freudiana que apontaria para a tendência a um estado bruto inorgânico. A pulsão de morte, segundo alguns autores na esteira de Lacan, é uma violência contra o Eu entendido como unidade sintética da personalidade e, portanto, modelo da organização psíquica dita normal. ³ Estaria contida nessa pulsão o que permitiria indeterminar as formas fixas, identitárias e egológicas por meio das quais os sujeitos se socializariam.

Hæresis: Sobre isso, sua visada é da psicanálise, assim como a antropologia, dentro do campo das ciências sociais. Você poderia discorrer, brevemente, sobre que impasses teria para a psicanálise e o quão produtivo seria esse tipo de articulação?

Fábio: Não é incomum ouvirmos colegas psicanalistas sustentando a irredutibilidade radical da psicanálise a qualquer outro campo de conhecimento, como se houvesse uma barreira de intradutibilidade epistemológica, ética e política a separá-los. Todavia, parece-me que essa posição não condiz com o próprio processo de formação da teoria e da clínica psicanalítica, nas quais as trocas com outras áreas do saber são essenciais, seja porque fornecem hipóteses teóricas e instrumentos conceituais incorporados pela psicanálise, seja pelo fato de colocarem problemas capazes de indeterminarem o que parecia bem assentado como evidente na teoria e na prática psicanalítica. Os exemplos são incontáveis: Totem e tabu e a antropologia; Psicologia das massas e a psicologia social; O Seminário, livro 16, e a lógica, a matemática; o retorno lacaniano a Freud possibilitado pela virada estruturalista na antropologia, com Lévi-Strauss, na linguística, com Saussure, Jakobson e outros, na crítica literária, com Barthes; além de muitos outros casos, cujos rastros, nem sempre explicitados pela pena dos teóricos da psicanálise, podem ser localizados de Freud ao chamados pós-lacanianos. Afirmar que a psicanálise está numa ilha teoria e prática, a meu ver, seria o mesmo que pretender encerrá-la numa espécie de condomínio fechado, com todo o mal-estar, sofrimento e sintomas decorrentes disso, como vem sendo explicitado pelo trabalho de Christian Dunker.  

Hæresis: Acerca da clínica psicanalítica, quais são os impactos na direção de tratamento e na escuta dessas formas de subjetivação efeitos da necropolítica, na medida em que a individualização da prática de cuidado individual por vezes silencia o coletivo, como sustentam muitas críticas feitas à psicanálise (a partir de um entendimento tradicional e elitizado da disciplina)?

Fábio: Por um lado, não acredito ser possível responder a essa questão sobre a clínica desde uma perspectiva teórica, que, normalmente, tende a ser generalizante. No limite, é a clínica, entendida como diferentes experiências clínicas singulares, que pode fornecer fragmentos de articulações a respeito de se e como os efeitos de subjetivação da necropolítica organizam processos de identificação, aparecem na transferência etc.Por outro lado, a pergunta que vocês me colocam aponta para um problema mais complexo, a respeito do qual apenas posso esboçar alguns caminhos para atravessá-lo: trata-se da questão sobre as relações entre a prática clínica psicanalítica e as elaborações teóricas, embasadas psicanaliticamente ou não, que se dedicam a analisar criticamente o campo social a partir dos circuitos de afetos que constituem sua verdadeira base normativa, como tem insistido Vladimir Safatle. ⁴   Há anos, o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, da Universidade de São Paulo, o LATESFIP/USP, vem desenvolvendo pesquisas mobilizadas por esse problema. ⁵ Na minha tese, é a essas pesquisas a que me refiro quando, no último capítulo, procuro sustentar, apoiado sobretudo em Butler, Freud e Lacan, que a melancolia é uma das patologias do social da necrogovernamentalidade. ⁶⁷⁸

O conceito patologia do social tem uma longa história de utilização em diferentes ambientes teóricos. Por isso, vale dizer, muito resumidamente, que, no LATESFIP, temos construído o entendimento de que uma patologia do social consiste numa forma de funcionamento social a partir da gestão do sofrimento psíquico. Como já havia mostrado Canguilhem, uma patologia, particularmente as patologias psíquicas, não é uma realidade natural identificada a partir das suas manifestações sintomáticas. Uma patologia é, antes, um conflito normativo entre o organismo e o seu meio, entre uma forma de vida e as normas sociais, com os valores que lhe subjazem. Por isso, toda patologia é vivida primeiramente como mal-estar, no sentido de algo que exprime uma certa condição existencial de não-lugar, vinculada à experiência de estar ou absolutamente preso ou demasiadamente fora, a ponto de não saber se localizar. No âmbito social, este mal-estar procura se nomear precariamente por meio das narrativas que lhe inserem na história e nas relações com o outro. Contudo, como bem sabemos a partir da nossa escuta clínica, as narrativas de sofrimento são reconhecidas socialmente de formas diferentes. Enquanto algumas são consideradas normais ou saudáveis, isto é, conforme as expectativas normativas que, num dado contexto, regem o mundo do desejo, do trabalho e da linguagem, outras são diagnosticadas como patológicas, ameaçadoras tanto para quem as sofre quanto para os que o circundam, justificando, assim, intervenções terapêuticas as mais variadas. ⁶ Vê-se, portanto, que determinar quais modos de sofrer são saudáveis e quais não são, quais dinâmicas afetivas podem ser comunicadas segundo uma certa gramática de sofrimento e quais precisam ser tratadas, com remédios ou confinamento, é uma decisão profundamente política e moral, ao mesmo tempo que clínica. No limite, isso quer dizer que todo diagnóstico clínico é indissociável dos seus efeitos políticos e sociais, uma vez que eles estabelecem a partilha entre como se deve sofrer e como não se deve sofrer, quais formas de experiência são saudáveis e quais são patológicas. Governar o social gerindo o sofrimento psíquico significa, então, por um lado, determinar os quadros patológicos e a gramática do sofrimento que orientará a diagnóstica, entendida em sentido amplo, ⁷ e, por outro lado, administrar a incidência maior ou menor de certas formas de sofrer a partir da necessidade de se produzir formas de vínculo social. É, nesse sentido, que devemos entender, por exemplo, as afirmações de Adorno e Horkheimer sobre o interesse da propaganda nazista estimular a paranoia como uma forma de sofrimento psíquico, expressa na narrativa da ameaça do objeto intrusivo e da dissolução da unidade do Eu, necessária para a reprodução do fascismo e das suas dinâmicas de intervenção social. O mesmo pode se aplicar ao que eu escrevo sobre a função de se gerir a melancolização social no âmbito da necrogovernamentalidade contemporânea.

Parece-me, então, que considerações dessa natureza sobre a patologia do social têm efeitos maiores sobre a clínica, uma vez que põe a baixo tanto pretensões epistemológicas realistas, quanto exortações pífias à neutralidade axiológica do clínico, revelando, ao mesmo tempo, que o setting analítico tradicional, o consultório com seu divã, não está isolado dos demais dispositivos diagnósticos de gestão social do sofrimento, seja porque contribui para reforçar certas patologias, seja porque permite que se abra espaço para o reconhecimento de outras narrativas do sofrimento, bloqueadas pela gramática social, enquanto produtoras de formas de vida singulares.

Hæresis: Você define Necrogovernamentalidade como “técnicas de gestão da morte que se disseminam por diversas instituições e suas articulações com os processos de subjetivação (Franco, 2018). Essa definição  coaduna com as formas de sofrimento, no século XXI, que são, de modo geral, problemáticas no laço social, no encontro com o outro semelhante e com o Outro como discurso, como alteridade, dentre as quais: a epidemia de diagnóstico de autismo (e não de autismo), as depressões, o suicídio, a paranoia como modalizadora do discurso político e social, as insistentes demandas – na clínica – em torno de um desamparo crônico, e o número elevado de crianças com as mais variadas dificuldades de (e na) linguagem.  Trata-se de um arranjo estrutural onde, no sintagma freudiano ‘pulsão de morte’, a imaginarização dos discursos fez apagar a pulsão, restando a morte como o centro do laço social?  

Fábio: É preciso entender a melancolia e a sua gramática do sofrimento como modos de produção de subjetividades cada vez mais determinadas pelos imperativos superegóicos. O melancólico sofre porque, identificado com a falta, com o objeto rejeitado, sente-se baixo e indigno de atender às expectativas normativas das quais dependem seu reconhecimento social. Assim, retomando o que disse anteriormente sobre a pulsão de morte, tal como Lacan nos permite interpretá-la, parece-me que a saída da melancolia dependeria da indeterminação do horizonte normativo fornecido pela forma-indivíduo, indeterminação esta que, justamente, diz respeito ao trabalho da força disruptiva da pulsão de morte.  

Hæeresis: A Vala Clandestina de Perus é tomada, por você, como um paradigma, um modelo de inteligibilidade [e de criação] da economia contemporânea de poder, nos termos do filósofo italiano Giorgio Agamben, como o que nos permite compreender nossa realidade, onde o singular e o universal se realizam.  Você a apresenta como um caso paradigmático. Esta questão se insere sobre o significante ‘caso’. Para a psicanálise, sem entrar em todas as especificidades que o termo impõe ao campo psicanalítico, um caso é aquilo que se escreve em torno de um enigma, do resto não redutível à teoria, aos conceitos. O que permanece irredutível no caso Vala de Perus?

Fábio: Essa é uma excelente pergunta. De fato, a minha tese é a tentativa de circundar a vala, cuja associação com o furo do Real é quase imediata. A ditadura civil-militar brasileira dedica-se a montar um complexo dispositivo de desaparecimento justamente para desrealizar não apenas as resistências políticas diretamente mobilizadas na luta contra o regime autoritário, mas, principalmente, aquelas formas de vida consideradas ou ameaçadoras, porque colocavam em risco moral ou socialmente a segurança nacional, ou simplesmente descartáveis, pois, no Brasil do nacional desenvolvimentismo – mas, não apenas –, não há lugar para moradores de rua, pacientes psiquiátricos etc. Para que a desrealização fosse completa, descaracterizaram os corpos, apagaram ou adulteram os registros, perderam os documentos, mudaram os nomes, proibiram as manifestações rituais de luto público, bloquearam os obituários, em suma, como diz Butler a respeito dos mortos nas guerras do Iraque e Afeganistão, foracluíram essas perdas. Porém, esses cadáveres retornaram, não dois ou três, mas cerca de 1.500. Enfatizo a aproximação quantitativa, pois ela é significativa, não apenas na medida em que conta da destruição sistemática desses corpos, desde a exumação, passando pela reinumação na vala, pela exumação definitiva, em 1990, pelos diversos trabalhos de análise forense para identificá-los, levando-os a passar por condições de armazenamento totalmente inadequadas, de forma que, ao final, resta praticamente impossível individualizar esses conjuntos esqueléticos, mas é significativa sobretudo porque revela o que Marc Nichanian, ⁸ a partir das narrativas construídas sobre o genocídio dos armênios, no início do século XX, identifica como um dos traços fundamentais das catástrofes: sua indefinição, a impossibilidade de representá-la sob uma imagem capaz de totalizá-la como Um, o que não é sem consequências para o luto. Nesse sentido, o caso Vala de Perus abre no coração do governo ditatorial brasileiro, e no muito que dele resta no Brasil da chamada “nova República”, a vala da indeterminação. Por um lado, isso pode produzir rachaduras irreparáveis na verdade do discurso oficial segundo o qual “nada aconteceu”, “foi uma ‘ditabranda’”, “nenhuma violação foi perpetrada sistematicamente pelo governo” e suas variações atuais, abrindo espaço para pesquisas, investigações, lutas. Por outro lado, a vala da indeterminação não deixa de, também, produzir sofrimento, na medida em que resta como um capítulo não simbolizado da história nacional, que não cessa de se repetir na história. Creio que o meu trabalho possa ser entendido de dois modos: ele se inscreve na abertura produzida pela indeterminação dos discursos oficiais, ao mesmo tempo que tenta circundar de significantes esse acontecimento que permanece em larga medida inominável.

Portanto, há muito o que se escrever, pensar e fazer com relação à Vala de Perus e aos seus desdobramentos. Em primeiro lugar, ela não é a única vala clandestina ou local de ocultação de corpos utilizado pelo governo ditatorial civil-militar. Como os relatórios das diferentes Comissões da Verdade mostraram, há provas incontestes da existência de muitas outras Valas de Perus no território nacional. Além disso, dado que a existência desses dispositivos necrogovernamentais de desaparecimento antecedem a ditadura e avançam para além dela, precisamos nos confrontar com os dispositivos de desaparecimento administrativo, que são responsáveis por muitos casos de desaparecimento no Brasil contemporâneo, bem como com a incorporação desses dispositivos a aparatos não-oficiais de governo, como as milícias. Um exemplo sensível disso é a recente descoberta de um cemitério clandestino criado pela milícia que atua na região de Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro, para ocultar corpos das vítimas, chamadas de “discos voadores”, pois sumiam do dia para a noite.

Hæresis: Na leitura de sua tese, é impossível não se questionar sobre o lugar de quem fica expectando essas valas clandestinas. É uma leitura que nos remete ao ‘cheiro da morte’, às pessoas desaparecidas, pessoas exumadas, aos sacos plásticos contendo remanescentes mortais humanos, como você descreve: o corpo fétido de esquecimento/apagamento. O lamento e constrangimento que acompanha essa leitura nos leva a perguntar: O que se pode fazer/dizer, produzir/inventar na medida em que tal leitura pode ter efeito melancólico?

Fábio: A meu ver, o próprio fato dessa tese existir indica uma saída para um provável efeito melancólico que pode decorrer da sua leitura. Por isso, insisto que a descoberta da Vala de Perus produziu também a indeterminação dos discursos com pretensão de verdade que procuravam foracluir a existência dessas violações. Com isso, paradoxalmente, ela cria espaços para a emergência de pesquisas, filmes, discursos políticos, lutas, manifestações estéticas etc. Não me sinto confortável para dizer o que se pode fazer ou inventar a partir do que escrevi, pois não acho que a relação entre a teoria e as suas eventuais consequências práticas sejam imediatas e, tampouco, diretas. Novamente, esta pergunta só pode ser adequadamente articulada na prática. Considero, no entanto, há bastante tempo, que muito já vem sendo feito. Lembremos das lutas de familiares de presos e desaparecidos políticos por memória, verdade, justiça e reparação; dos movimentos locais e nacionais de mães de mortos pela violência do Estado; dos esforços hercúleos de familiares de executados pelas polícias para produzirem contranarrativas sobre seus sofrimentos, criarem memorais, internacionalizarem a reverberação desses casos, além de muitos outros exemplos.

Hæresis: Qual sua relação com este trabalho, para além de pesquisador, como tentativa de ultrapassar o lugar teórico do problema em tese?

Fábio: Após um período trabalhando diretamente em projetos, governamentais e não-governamentais, ligados ao caso da Vala de Perus, atualmente o que venho fazendo para ultrapassar os problemas que coloco na tese é justamente a pesquisa. Considero que redescrever problemas, abrir a possibilidade de novas interpretações sobre os fenômenos, forjar conceitos, enfim, tudo isso que identificamos ao trabalho teórico ou à pesquisa é uma forma essencial de intervenção prática. Quero dizer, ecoando algo da minha formação na tradição dialética: o pensamento é prático, desde que estejamos dispostos a não reduzir a ação às expectativas utilitaristas que a vinculam direta e imediatamente a determinados fins.

Hæresis: Sobre política (se é que não estamos falando disso o tempo todo). A sentença de Jacques Lacan “O inconsciente é a política” é lida e interpretada tanto por aqueles que pensam a psicanálise na política, essa que vai às ruas, como por aqueles que não abrem mão do “inconsciente só existe na análise” e enfatizam que analista e cidadão são duas identificações distintas. Esse paradoxo tomou força de conflito no contexto das eleições de 2018, no Brasil, em movimentos como “Psicanalistas pela Democracia” e as diversas reações desencadeadas. Qual sua posição em relação à questão psicanálise e política?

Fábio: Esse debate é frequentemente recolocado a partir da distinção lacaniana entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão. Para alguns, na sua relação com a sociedade, os psicanalistas, individualmente, poderiam explicitar seus posicionamentos políticos, preservando, no consultório, a orientação ética da direção do tratamento entendida como falta-a-ser. Para outros, a dimensão política da clínica apareceria no nível tático, no da interpretação. Trata-se, certamente, de uma questão extremamente difícil, para a qual não tenho uma resposta. Começaria a articular alguma coisa a respeito, problematizando o que normalmente se entende por política quando se coloca tal pergunta. Os exemplos que vocês trazem deixam ver que ou bem se faz política indo para as ruas, para as praças, ou bem não se faz política. Mas, se reduzimos a política à ação prática direta na forma de intervenção, corremos o risco de deixar de fora da política não apenas a psicanálise, mas todo um conjunto heteróclito de práticas que não satisfazem a esse critério, a começar pela pesquisa. Portanto, creio ser importante redimensionarmos melhor neste debate o sentido de “política”. Para avançar um pouco mais nesse esboço de resposta, retomaria uma ideia de política que me parece profundamente consoante à ética da psicanálise, ideia forjada por um filósofo político muito próximo do ensino de Lacan: o já mencionado Claude Lefort. De modo muito sumário, podemos dizer que, para ele, a política se define como um espaço de indeterminação, no interior do qual os conflitos podem tomar lugar sem que lhes seja dada uma resposta definitiva. A política é pensada como abertura ao indeterminado contra as forças que pretendem reduzí-lo às figuras conhecidas da unidade: a burocracia, o ditador, o presidente autoritário ou populista que definem qual é a verdade do desejo do povo. Ora, parece-me que, mutatis mutandis, não é outro o horizonte de direção do tratamento que nos orienta na clínica. Quando, mais acima, referi-me ao papel irrecusavelmente político da clínica ao abrir espaços para formas de experiência e para narrativas do mal-estar produtoras de singularidade, apontei para o fato de que o bem-dizer é correlato de um conjunto de transformações na forma como o sujeito se socializa. Sendo assim, a psicanálise, no consultório ou na rua, só pode ser política. Contudo, há o risco iminente de que ela se associe a dispositivos de governo do sofrimento social, reiterando e colaborando para a disseminação das formas de sofrer, da codificação da gramática do sofrimento, da patologização do mal-estar. Isso, no entanto, pode se dar na rua, tanto quanto no consultório.

Hæresis: Dos dispositivos desaparecedores, apagar nomes e nomear indivíduos como ‘não-identificados’, como você elabora – desaparecimento dos nomes – nos remete diretamente ao sujeito em psicanálise como uma emergência na linguagem, uma resposta nem submissa e nem transgressora, mas subversiva à essa mesma linguagem que o causa. Desse sujeito, as passagens mais fundamentais das elaborações de Jacques Lacan são as que demostram, ao longo de sua obra, haver um rastro apagado no significante com o qual esse sujeito se identifica: o traço unário é causa e efeito do sujeito do inconsciente. Nas proposições da necrogovernamentalidade, esse desaparecimento apagaria essa possibilidade de emergência do sujeito do inconsciente, sujeito subversivo nos discursos? Ou, isso que a psicanálise sustenta como lógica e psiquismo estaria imune a essas modalidades de governo da vida e da morte? Ou, ainda, como se diz, o significante sempre irá advir, sempre escapará à essa mortificação da vida?

Fábio: Não entendo que a melancolização necrogovernamental produza a desativação de toda forma de resistência. Nenhum dispositivo governamental realiza a pretensão de um governo total, pois há sempre algo que resta ingovernável – nesse sentido, também podemos ler o impossível de governar, freudiano, e seus desdobramentos na teoria lacaniana dos discursos. Para além das saídas para a melancolia que mencionei anteriormente, relacionadas às formas mais tradicionais da ação e da estética política, a professora Adriana Vianna tem apontado para a existência de uma plêiade de esforços antimelancólicos nos quais se percebe produção de outras gramáticas do luto político, como a ida a terreiros e casas de reza, os sonhos, a composição de sambas, a escrita de cordéis. Evidentemente, a clínica psicanalítica é um espaço importante, mas não exclusivo, para a emergência de um sujeito que resiste às formas de subjetivação disponíveis.

Hæresis: As Valas-paradigmas continuam abertas. Após o decreto do Presidente Bolsonaro, de abril deste ano, contingenciando o financiamento de trabalhos como os realizados pelo Grupo de Trabalho de Perus na identificação dos desaparecidos da Ditadura Militar Brasileira,  a Ministra Damares, referindo-se à Vala de Perus, disse coisas como: “Não dá para viver de cadáveres”, e insistiu em dizer que a maioria dos corpos de Perus são de crianças com meningite, apagando os outros mais de 1000 corpos e, ainda, escondendo o porquê desses corpos mortos pela meningite terem sido jogados na Vala, como você conta. Tem-se, nesses discursos instituídos por aqueles que respondem pelo Estado brasileiro, neste momento, o esvaziamento do discurso, o desaparecimento na sua mais contundente realização: cava-se uma vala onde a história está enterrada nos termos de toda a necropolítica que você expõe. Como psicanalistas, qual direção damos a essa mortificação do discurso?

Fábio: Deixá-lo falar em outros espaços, nos quais esse discurso possa se colocar em movimento, abrir-se para outros dizeres, criar novas histórias.

Referências:

¹ Nesse sentido, o trabalho do artista maranhense Thiago Martins de Melo, que usamos como imagem do evento, ao mesmo tempo desloca para nossa sociedade e condensa o que, no Brasil, se inscreve da lógica de gestão da morte, da política cuja laço é estabelecido e mantido na determinação de quem é por ser matável. “A partir do cruzamento anacrônico de narrativas sobre resistências e decadências, simbologias e personagens, espiritualidade e sincretismos, Thiago Martins de Melo utiliza os artifícios tradicionais da pintura para falar de questões relacionadas ao Estado de Exceção no Brasil. Na obra Necrobrasiliana (2019), o artista reúne grandes telas para representar um conjunto de circunstâncias que o assombram. Sobre fundo metalizado e ladeadas por dois pilares com cabeças de índios decepadas, além da figura imponente de Carlos Marighella (ativista político e escritor brasileiro morto pela Ditadura Militar em 1969), encontram-se camadas de imagens sobre momentos circunstanciais ligados ao extermínio e problemáticas enfrentadas pelas minorias.” [Disponível em http://www.infoartsp.com.br/agenda/necrobrasiliana/]

²  USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de Filosofia, 2018 – Tese de doutorado acessível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-25022019-112250/pt-br.php

³ A referência principal aqui é SAFATLE, V. A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso. São Paulo. 2016. n. 36., p.  150-191.

⁴ Sobretudo em SAFATLE, V. O circuito dos afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

⁵ Parte dos resultados dessas pesquisas se encontram consolidades em SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018.

⁶ Para uma discussão sobre as relações entre mal-estar, sofrimento e sintoma, ver: SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018; DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017. 

⁷ Para uma profunda discussão sobre a ampliação do diagnóstico clínico para outras esferas da vida social, transformando-se em uma diagnostica, ver: DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017.

⁸ NICHANIAN, M. Catastrophic mourning. In: ENG, D. L; KAZANJIAN, D. (ed.). Loss: the politics of mourning. Berkeley: University of California, 2003. p. 99 – 124.


Liberdade trágica, destino do sujeito.

Cirlana Rodrigues (Haeresis Associação de Psicanálise)

Introdução

Liberdade e determinação convergem na relação do sujeito de não ceder de seu desejo (Lacan, 1959-1960). Proposição que busco em Édipo em Colono e sua transformação da determinação simbólica cerzida pela culpa para uma saída não determinada em seu destino trágico; em Antígona, onde o trágico de seu destino advindo do incesto é vertido em tragédia, na cadeia de significantes encenada diante de todos; e, em Jacques Lacan no seminário sobre a ética (1959/1960), colocando no centro da experiência analítica o para além do princípio do prazer, o gozo, recusando a promessa do utilitarismo técnico a serviço de um bem comum. Assim, a psicanálise sustenta na polis o direito ao desejo. Direito ao direito de desejar em tempos de interrupção da cadeia significante, interrupção da historicidade de cada um, como nos sonhos no terceiro Reich (Beradt, 2017): ao repousar o corpo, aquele que sonha vigia os significantes que podem escapar, pois os sonhos, reveladores dos desejos, são proibidos.

1. A transmissão de Édipo em Colono.  A transposição do Outro. A transgressão da lei, em Antígona

Édipo miserável e degradado entra em Colono arrastado por Antígona, exuberante e leal. Está cansado, cego pela paixão ao saber e ao poder trilhado em terras proibidas, mas é um cego que vê.  O velho Édipo assenta-se sob o sagrado das oliveiras, às sombras das muralhas de Atenas. Ele vai até o ponto do estrangeiro indesejável em Colono. Entra em Hades pelo ‘limiar do bronze”, pelas escadarias do brilho, interseção do absoluto silêncio entre vida e morte não habitado pelas palavras, seu destino proscrito, residência definitiva. O estrangeiro ainda não reconhecido como o rei invoca a polis em sua presença mutilada, “terrível de ver”, para ali permanecer, pedido ao mesmo tempo religioso e político que perturba as normas da comunidade. Nesse ponto, Édipo muda sua posição diante da lei que o condenou, mudança de perspectiva em relação aos seus crimes: antes ele não sabia, agora ele supõe saber. Édipo pagou, apresenta-se como aquele que porta no destino do herói a dívida cumprida, retribuída. Édipo se nomeia, no exílio, “executor por mão própria” de sua maldição (Fialho, p. 267, 1996), até então, “na ignorância, limitou-se, dentro dos parâmetros da ética de retaliação, a pagar ofensas recebidas”. Essa mudança é fundamental para o destino de sua linhagem:  o carácter amoral do destino de Édipo se mantém inalterável diante da lei civilizatória do incesto. No entanto, Édipo saído da alienação por culpa, supõe que para além desse destino há ainda espaço para questionar sua posição: “Ora como posso eu ser mau por natureza?” Édipo não renega sua historicidade, inscreve o paradoxo do desejo defendendo e rejeitando os velhos crimes, ultrapassando aparências e conjunturas externas, “para chegar a uma verdadeira disposição interior do indivíduo” (Fialho, 1996, p. 39).

 Édipo se afasta da casta masculina, a mal diz, afrontando a lei ática de que a sobrevivência familiar é responsabilidade dos homens. No espaço de sua morte, tem sua tardia, mas poderosa redenção, onde o passado que o determina e funda sua tragédia não o culpabiliza mais, onde seu nome e seu destino dão lugar a uma “dor de existir” (Lacan, 1958-1959), no limite da adversidade e do sofrimento. Ao maldizer os filhos e sua luta pelo poder, Édipo ensina sobre a diferença entre verdade e aparência: a verdade tem a ver com o absoluto que escapa à palavra. Nesse espaço de sepulcro, da verdade, Édipo e sua lei ainda determinam o bem para quem lhe acolher e o mal para quem o repudiar. O desejado túmulo, pelo qual suplica durante toda a peça, lhe será concedido se ele calar-se, silenciar-se. O Outro, ao conceder o bem comum quer o silêncio, para confirmar sua palavra. O que fará Édipo rejeitar, com violência e pela última vez, toda a carga de culpa e participação ativa e consciente nessa trama antinatural que o marcou e de que agora luta por se libertar, sustentando, até o final, a força da palavra, mesmo no encontro com o inefável pelo silêncio sagrado que pactua com Teseu. Para além do sistema das normas da cidade, ultrapassou o limiar do sacrilégio com o sagrado e lá regenerou, no laço com a cidade e seu governante, seu destino de parricida incestuoso, e é acolhido pelos deuses, acima da aparência da forma ou das normas instituídas, numa polis baseada em princípios humanos como a compaixão e o sagrado.

O cego domina agora a cena, nessa esmagadora convergência, simultaneamente evidente e misteriosa, dos deuses e do seu destino (Fialho, 1996), onde sua posição é de uma autoridade majestosa que o vai distanciando dos que o acompanham, na plenitude de uma visão interior que é adesão ao divino, adesão a sua excepcionalidade, modelada pelo sofrimento e possibilitada pela compaixão e amizade de Teseu que foi capaz de ver mais fundo no homem e no incompreensível do seu destino (Fialho, 1996). Édipo diz: “Quando já nada sou é então que me torno um homem”.  Édipo é despojado dos velhos farrapos da sua existência e revestido de novas roupagens. Com elas passa o limiar fascinante, onde vida e morte se tocam, recolhido agora em harmonia no mistério de um novo seio materno, um túmulo oculto, não divulgado, não localizável, porém, que está em qualquer lugar do bosque em Colono como presença em ausência que determina o cotidiano da polis: o segredo a ser transmitido, uma democracia pautada no sagrado [de cada um], no sofrimento e nos valores como bens comuns. Édipo, recolhido ao mais íntimo de seu túmulo, converge os antagônicos nesse limiar entre vida e morte, sua herança em Colono é a política. Dessa posição, Antígona, até então mediadora, regressa a Tebas, lugar onde a saga de seu sangue teve início, lugar da barbárie, do desrespeito com o humano e com o político.

Se com Édipo a tragédia concerne a uma experiência singular, Antígona em Tebas concerne a uma experiência trágica coletiva, pois Creonte, o tirano piedoso e medroso, vai contra as leis não apenas dos deuses, mas contra as leis da cidade, em nome da imposição vaidosa de suas leis. Todo acontecimento na esfera pública é uma experiência estética (aos moldes de Walter Benjamin/1936), de percepção, de reflexão e visão interior, vitais para a cidade. Antígona é capaz de refletir a partir da sua experiência trágica e se repensar e revigorar a partir do que a fundamenta e lhe dá natureza, despojando-se, como Édipo no instante supremo, dos farrapos do sofrimento e dos valores gastos e degradados de todas as demagogias e traições, para renascer de si mesma, qual o “rebento que a si mesmo se refaz”.

Lacan (1959-1960) fica fascinado com o brilho de Antígona no caminho que ela faz na cena trágica na direção do que deseja, onde não vemos seu ato final, só depois.  Antígona, em seu nome, arrasta e transpõe, coloca-se para além do limite razoável de sua existência na relação com seu desejo. Afronta a lei do tirano: ao cobrir o corpo do irmão de pó, esconde e revela, ao mesmo tempo, seu desejo, o faz de modo deliberado na cidade. Se em Antígona há esse corpo entre a lei do desejo e a lei do tirano, fora da cena de Sófocles há o sujeito e seu sintoma enlaçando o privado e o público, advindo entre isso e aquilo onde o ato que instaura outra direção a seu desejo não é à vista de todos, mas também não é às escondidas.

Antígona é determinada, frase paradoxal. Chega em Tebas para não ceder de seu desejo, nessa polis injusta há que responder pela posição de reaver o que não pode ser reencontrado.  Essa é a análise como experiência trágica e não como ordenação da vida. Como tragédia, essa experiência é ato em cena, criação com o que padece do significante – o rejeitado no simbólico retorna no real da transferência analítica, retorna a Tebas. O sujeito encena seu contraditório: o desejo como aquilo que supõe saber e o desejo como aquilo do qual que se defende, do qual se culpa. Lacan (1959/1960) mostra que no interior da tragédia de Sófocles a heroína faz a escolha absoluta não motivada pelo bem. A função social de Antígona é não se submeter ao absurdo da lei que Creonte representa, é revoltar-se em nome do direito que lhe foi dado pela filiação: direito ao desejo. Na tragédia, Lacan exalta a posição de Antígona na vida: transgredindo a determinação da jurisprudência do bem comum, édestinada a vir em auxílio dos mortos, dos excluídos do campo dos direitos.

Da transmissão que Édipo faz das vicissitudes do destino, o destino trágico de Antígona se encontra com a liberdade trágica (liberté tragique, Lacan, 29/06/1960), liberdade como ato encenado na esfera pública, onde o sujeito é livre na medida em que não cede de seu desejo. Antígona de nada mais é culpada, ser a mulher tebana ideal não lhe satisfaz, decide por vontade própria seguir o que quer em uma cidade feita de homens: enterrar o irmão. Entra viva em Tebas, anunciando que sua hora chegou, a hora de lidar com seu desejo chegou – fim de uma linhagem que se encerra na tumba. Essa vontade não é narcísica, está no limite de seu desejo e do ultraje – a beleza de Antígona é ser liberta da imagem ideal de mulher o que impõe no Outro o reconhecimento em relação a seu desejo, reconhecimento que lhe dá uma posição na esfera pública. Antígona nos mostra a necessária e permanente batalha por esse direito/por todos os direitos: ela quer ser reconhecida na polis – que o tirano não lhe retire os direitos.

A beleza de Antígona traz a bifurcação do desejo: o belo que desperta o desejo, como a última barreira ante o real, a pulsão de morte que convida ao gozo.  Despertar do desejo que desanima o Outro, na medida da recusa de Antígona em submeter-se à lei do Outro. A paixão pelo saber herdada do pai, é posta em ato: sabe o que quer e faz o trilhamento necessário nessa direção, no “limite suportável da vida humana” – definição de gozo que o significante Antígona comporta [Atè]: “Queres sepultá-lo contra as determinações da cidade?” (Sófocles, linha 44, p. 09), lhe perguntam. A dor de existir, protagonizada por Édipo, é em Antígona uma margem da dor, onde pelo gemido lascinante anuncia o gozo por vir, limite que se transposto não tem volta. Responder à questão de Lacan “Agiste em conformidade com teu desejo?” (Avez-vous agi conformément au désir qui vous habite? – 06/07/1960) não tem volta. A posição de Antígona é a imagem fascinante, pois é o ponto de vista do desejo, seu brilho diante do real, para além dos diálogos, da família, da pátria e da moral, sem temor e sem piedade (Lacan, 1959/1960). Esse gesto ético e não qualificado se realiza no entre-duas-mortes, na suspensão da temporalidade onde a posição do ser não é metafórica, é sem conciliação e encerra o maldizer do pai, seu destino. O gesto de Antígona faz valer seu direito ao desejo, inscreve-o como bem comum, mas um bem sem objeto, intransitivado, no campo da psicanálise.

2. Não há destino para o sujeito, não há sujeito liberto de si

Não há destino para o sujeito, as pulsões padecem de destinos, resistem. Há o inconsciente com seu furo do saber. Freud substituiu o destino e as leis dos deuses pelo inconsciente. Seu ato libertário foi conceder a palavra aos pacientes, escutando-os, quando nenhum médico o fazia – pois isso colocaria em risco a crença no saber, e descobre leis muito particulares e singulares do psiquismo. Na esfera pública, o sujeito se escreve como cadeia de significantes. Escrita ofendida pela história dos homens – a relação do homem com o desejo encontra recusas, opressões, repressões, apagamentos, traumas. O destino trágico é uma advertência estrutural, lembrando Lacan (1959/1960) sobre a tragédia.

Checcia (2012) destaca a confluência do vocabulário da psicanálise com o vocabulário da política e da guerra como os significantes poder, liberdade, conflito, resistência. A liberdade aparece no núcleo dos fundamentos da psicanálise. A associação livre como uma oferta de liberdade restrita: para o psicanalista, amplia as intervenções, mas o coloca na posição de ouvinte restringindo sua ação à atenção flutuante que o enlaça à fala do analisante. Este se vê diante do paradoxo de poder falar o que quiser, pois o inconsciente tem seus mecanismos de repressão e recalque. Ainda, o sujeito mente de modo deliberado, e se defende dessa liberdade – o inconsciente é que decide o que fazer com a liberdade de falar o que quiser: “é que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar”, cito Lacan (1958/1959 – p. 647), pois isso impõe transpor o fantasma do Outro causa do desejo, e transgredir é arriscar não ter/ser o objeto de desejo.

A mudança de posição de Édipo e Antígona mostra a via do desejo apresentada por Lacan sobre  alienação e  separação, onde diz:

[…] nossa técnica usa frequentemente, como se a coisa corresse por si mesma, da expressão liberar alguma coisa – não é inútil observar que é aí que joga a questão desse termo que bem merece a qualificação de fantasma – a liberdade. O de que o sujeito tem que se Iibertar é do efeito afanísico do significante binário e, se olharmos de perto, veremos que, efetivamente, não é de outra coisa que se trata na função da liberdade.

(Lacan, 03/06/1964)

Sair da alienação, onde a liberdade como fantasma (em francês, o termo comporta desejo) é uma ficção que produzimos para conciliar o prazer com a lei, o contraditório entre o sujeito e o Outro. Como fantasma, atravessa o espelho e a lei do Outro, por isso assombra. A liberdade entra como o gesto de Antígona, de livramento da sina da alienação ao significante que vem do Outro, onde a separação – o “para além”, o “trans” – é o gesto de não se submeter às leis do Outro naquilo que recusa nosso direito ao desejo: é o sujeito de A barrado. O real é dito pelo analisante nas vias do desejo, da fala como ato, pela demanda que implica não abrir mão do Outro sobre o desejo, mas demanda sem objeto definido. E este pode ser o fantasma que tira a liberdade, submete a junção sem dialética, como pode ser o do quê na afânise de sentidos, há a separação. O mal-estar e os sintomas são efeitos do horror do sujeito diante do desaparecimento do desejo, por isso a liberdade ou a vida, a liberdade ou a morte. Diante disso, ou o sujeito se mantem na alienação, ou essa afânise ganha status de vazio, passa a ser topos de inscrição de um fazer com esse desejo do Outro, transpor esse vão de sentidos é saída da alienação, a liberdade possível.  O sujeito reconhece que o desejo é desejo do Outro – herança simbólica, o que restringe sua liberdade ideal é o que o autoriza a ir além, pois o que se transmite é a divisão do sujeito – a face cortante de Antígona que Jacques Lacan lê no final dos versos da tragédia de Sófocles.

O significante “liberdade” (liberté) circula no seminário de 1964 sobre os fundamentos da psicanálise, quando da excomunhão de Lacan da IPA: liberdade, política e clínica não são dissonantes. Se a dinâmica narcísica do fascismo foi lida por Lacan na teoria do estádio do espelho no ano de 1936, as operações de alienação, afânise e separação, como determinantes do sujeito, merecem ser lidas como resposta de Lacan a sua posição e relação com as leis da psicanálise, aos modos de regulação da experiência analítica.

Considerações finais

Nestes tempos de política, onde a anatomia é o destino, o psicanalista é chamado a se posicionar na esfera pública, dar a ver o brilho de seu gesto na relação com seu desejo em ser analista, sua ética. O fato de que regimes totalitários apagam as línguas, apagam individualidades e subjetividades, destituem sujeitos de seus direitos de fala e de todos os outros direitos que a polis deveria garantir como bem comum não parece, para muitos, colocar em risco a experiência analítica. Ou perder o direito a falar (de si) é um risco apenas na fantasia de muitos psicanalistas, ou o gesto inaugural de Freud precisará ser repetido diariamente, valendo o limite da relação do analista com o desejo. Expressões do tipo “nazistas foram analisados por psicanalistas judeus” nos apontam o tamanho da dimensão narcísica e de alienação que estamos imersos, onde a não atualização da cadeia significante nos coloca à mercê da opressão, de um Creonte onde os furos na imagem são enganosos, onde a margem da dor dá lugar a uma unidade que nos é vendida e a compramos sabendo que estamos nos enganando, anestesiados no gozo imaginário.

A tarefa do sujeito na esfera pública é não apenas lutar por seu direito ao desejo [lutar por seus direitos na lei da cidade e dos deuses], mas lutar por seu direito ao direito de desejar, pois o tirano, agora, não lhe oferece outros direitos, ele determina que não há direitos, há deveres morais. Na clínica, o sintoma nos mostra a posição do sujeito diante do real: entre isso e aquilo, o sintoma enlaça, na esfera pública, o particular do divã e o público, a polis é o espaço do fazer, do gesto a ser vislumbrado. A tradição psicanalítica diz que o inconsciente só há na análise – ali no tempo lógico da transferência – no máximo reconhece-se que aquele sujeito que advém no discurso da análise circula no mundo em suas formas sociais – daí a transformação social possível com a qual se meteria a psicanálise. Temos a oportunidade – no privilégio do divã, na praça, na rua – de escutar esse sujeito borromeanamente circulando no mundo pelas vias de seu sintoma – em experiências de mais ou de menos sofrimento. Da ética da psicanálise é isso que merece ser dito: o que esse sujeito sustenta de seu desejo na esfera pública, de suas escolhas, de suas ações. Com Antígona e com Édipo em Colono vemos que o direito ao desejo é uma batalha permanente no sujeito, porque ser transmitido pelo pai, pela lei simbólica, não é garantia: o direito ao desejo não está mais dado nem mesmo no mais íntimo do divã, e menos ainda na esfera pública, na polis como espaço privilegiado de experiência estética para os sujeitos que a habitam e não apenas como espaço de vivências distraídas, rotineiras e cotidianas. Como lugar do acontecimento trágico de cada um, com o fazer de cada um, onde os nascimentos e as mortes se cruzam incessantemente, é contraponto a uma polis corrompida pelos maus governantes, agredida permanentemente em seu solo.

 Lacan, como mencionei, toma a liberdade como um fantasma e como tal para o inconsciente é inalcançável e sabemos como regimes econômicos e políticos convencem os indivíduos de que ser livre é realizar suas fantasias, vendem suas fantasias e a liberdade passa a ser o direito de comprar o que deseja. Na contramão desse mercado, o limiar da ética da análise é o que o paciente se decide por fazer com sua condição de desejo, não ceder dessa condição de falta a ser, não importando o que fazer: essa ética não se confunde com o direito ao consumo.  E, o Outro bem sabe como convencer o sujeito de que “a palavra é perigosa”, frase fantasmática dita no limite articulável de real e simbólico por supor e organizar a verdade da alienação anunciada. Na alienação, a tática é inscrever nos sujeitos o calar-se, tornar o vacilo um medo, onde falar de modo distinto é proibido. A palavra é proibida por ser perigosa: não há laços abusivos e de restrição de direitos e liberdade, que não se inicie nesse fantasma da “palavra é perigosa”, antes sujeitos são calados, depois submetidos e submissos, abusados, torturados [a tortura não é fazer falar, a tortura é fazer calar aqueles da revolta]. Associar livre é perigoso e há que ser proibido. A psicanálise continua subversiva e necessária (e não utilitária), e precisamos repetir o gesto contraditório de Freud de “deixar falar”, nosso gesto político na esfera pública em não ceder do direito de desejar, conforme  Lacan (1959/1960) sobre a ética na psicanálise.

Referências bibliográficas

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CHECCIA, M. A. Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia. Pós-graduação/USP.2012. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-05072012-112606/pt-br.php.365 p.

LACAN, J. Seminário, livro 6. O desejo (1958/1959) [http://staferla.free.fr/].

______. Seminário, livro 7. A ética (1959/1960) [http://staferla.free.fr/].

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______. Direção de tratamento e seus princípios de poder (1958/1998). Escritos.

SÓFOCLES.A trilogia tebana – Édipo Rei / Édipo em Colono / Antígona. Tradução do grego, introdução e notas de MÁRIO DA GAMA KURY. 15ª reimpressão. Jorge Zahar Editor.

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