Espaço Hæresis de Psicanálise e saúde mental
Coordenado pelo membro associado Germano Almeida
Com realização mensal, às primeiras quintas-feiras de cada mês, com datas previstas para 09/03, 06/04, 04/05, 01/06, 03/08, 14/09, 05/10 e 09/11 das 18:00 h às 21:00h, com três horas mensais.
Com este espaço, a Hæresis inicia a leitura das articulações entre os campos da Psicanálise e da saúde mental no Brasil e em nossa região, e também as consequências de seus atravessamentos. Essa via de leitura privilegiará aquilo que a psicanálise propõe como clínica, pensando a posição do psicanalista neste campo que é o da política pública em saúde mental no Brasil.
Ler Freud quando se trata de clínica em psicanálise é uma maneira de escolher essa via de leitura, em especial no que diz respeito a traduções de sua escrita. Não se trata de iniciar nos textos primevos da metapsicologia, passando pelo desenvolvimento de sua teoria do inconsciente (que foi decantada da experiência clínica), para então supor na continuidade acumulativa que chegamos ao todo do que a psicanálise propõe como clínica. Caso tomados sob esse viés os textos podem ser ferramentas de poder, onde aquele que estudou e sabe pode agora exercer sua dominação sob outros, um risco para um campo de trabalho onde vários saberes precisam inventar um cuidado para quem sofre.
Trata-se aqui, de ler nos textos de Freud os efeitos de seu tempo, de seus diálogos com a cultura, tentando vislumbrar como a clínica que ele fazia tem consequências e efeitos no que passamos na contemporaneidade, sendo que nesse espaço privilegiaremos a saúde mental no Brasil e em nossa região como um elemento de indagação.
Fazer encontrar as perguntas que os trabalhadores de saúde mental fazem em seu cotidiano de trabalho, de maneira clara, sem falar um dialeto irreconhecível, sem evitar o encontro dos campos através do palavreado exclusivista. Evitando tomar o texto freudiano como fonte de conhecimento e de poder sobre os fazeres desses profissionais, tentamos por essa via fazer uma entrada da clínica psicanalítica, ou seja, do estranho familiar, do que vemos diariamente, mas que só é possível dizer depois.
Ler os autores que pensam e articulam a política pública de saúde mental no país e na nossa região é um modo de trazer essas questões que fazem o cotidiano de um serviço de saúde. Talvez a principal dessas questões possa ser articulada dessa maneira: Todos os dias é preciso tomar decisões técnicas sobre casos atendidos na rede de atenção psicossocial, como articular essas decisões considerando clínica psicanalítica?
Além de levar algumas questões aos textos de Freud e sua clínica, pretendemos considerar as contribuições de autores que discutem essas articulações, menos na objetivação de completude de um campo de pesquisa do que na referência necessária aos que trabalham com o tema atualmente. Dentre eles ressaltamos Luciano Elia, Christian Dunker, Fuad Kyrillos Neto, Sônia Alberti, Ângela Vorcaro, Antônio Teixeira, Aline Aguiar Mendes, dentre outros que estarão referenciados em nosso espaço.
Texto de Abertura do Espaço Hæresis de Psicanálise e Saúde Mental
Coordenação: Germano Almeida Faria Fortunato Pereira
Trabalho aqui com duas provocações. A primeira é um trecho de Christian Dunker e Fuad Kyrillos Neto em 2015, ambos pesquisadores do tema que abordo hoje: “Examinando os prontuários do asilo nacional de Barbacena, da Minas Gerais dos anos 1960, não se encontrará as formas típicas do diagnóstico psiquiátrico, tais como a paranoia, a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva ou as demências. Em vez disso, um único dado chama a atenção: o número de dentes do interno. E, pelo número de dentes, muito se podia deduzir da posição de classe e da expectativa de tratamento. Há, portanto, um dado a mais nesta conta. Um anacronismo entre aspirações discursivas de progresso e as práticas disciplinares, exercidas em instituições que não eram laicas, nem mágico-religiosas, mas movidas pelo tradicional espírito de pessoalidade, compromisso e favorecimento. Baseadas na distribuição opressiva de favores e simpatias, nossas cidadelas psiquiátricas não eram apenas lugares de maus-tratos, eram também pequenas cidades de interior, com seus caudilhos, suas virtudes privadas e seus vícios públicos, com sua “vida própria” e suas regras.” (pp 15).
Estamos no século 21, no interior de Minas Gerais, lendo as articulações da Psicanálise com a nossa política pública de Saúde Mental, são apenas 57 anos que nos separam desses prontuários lidos pelos pesquisadores. Hoje, se observarmos os prontuários dos usuários dos serviços substitutivos, o que encontraremos? O nome do paciente raramente aparece, termos técnicos de cada saber que compartilha o cuidado aparecem para dar conta dos inúmeros acontecimentos inusitados, complexos e angustiantes que esses pacientes produzem. Nos relatos contemporâneos, os que produzimos, os que lemos hoje, ainda figuram ideais de progresso, com a escritura de projetos terapêuticos singulares que soam tão disruptivos quanto o próprio funcionamento do paciente, trata-se aqui de uma certa identificação com o paciente que leva quem escreve no prontuário a uma ruptura com o que escuta?
Seguindo na primeira provocação, se antes o número de dentes assumia lugar de signo de classe, nos dias de hoje a expectativa de tratamento se vê refém do uso que cada unidade de saúde faz de seus pacientes. Não é de se espantar que, mesmo depois de tanta luta e discussão política, ainda temos pacientes institucionalizados. O problema é menos o tempo de permanência nos serviços (que para alguns beiram os 10 anos) e mais a inércia da direção de tratamento e sua ineficácia quando se trata de efeitos na vida dos atendidos. Nesse cenário, é preocupante certos acordos de compromisso que ainda bancamos com os saberes mágico-religiosos e o desmanche das equipes que trabalham com essa política pública.
Destaca-se o “tradicional espírito de pessoalidade, compromisso e favorecimento”, onde os profissionais vão fazendo uso das histórias e do sofrimento psíquico dos pacientes, para destacar sua prática e subir em palanques, para vender o peixe de suas perspectivas teóricas, para manter o louco na posição de intratável, manter-se a partir do compromisso e do favorecimento consigo mesmos. Esse essas práticas, provocam os autores, estão “Baseadas na distribuição opressiva de favores e simpatias, nossas cidadelas psiquiátricas não eram apenas lugares de maus-tratos, eram também pequenas cidades de interior, com seus caudilhos, suas virtudes privadas e seus vícios públicos, com sua “vida própria” e suas regras.”. O que isso tem haver com a prática em nossa cidadela?
Nesse sentido, não estamos vendo a lógica das daquelas cidadelas psiquiátricas de 57 anos atrás, repetindo-se hoje na distribuição de favores a quem nos interessa? Individualizando o que precisa ser público? Tentando limpar, branquear, e dessa vez pela via dos medicamentos e das hospitalidades (permanência noite em unidades de saúde) retirar o incômodo das ruas, simpatizar por alguns casos em detrimento de outros, estamos no interior de uma questão que precisa ser discutida de forma técnica e não opinativa, não se trata de uma disputa de terras em que a cada batalha discursiva ganhamos um pedaço de chão nessa nova prática manicomial.
Com essa primeira provocação, convoco os psicanalistas que trabalham nesses lugares para pensar respostas que não sejam a de disciplina da pulsão, nem a da explicação de funcionamento psicológica psicologizante, nem a de mapa da subjetividade do brasileiro. Isso nos faz evitar frases de efeito conhecidas e pouco produtivas, do tipo: “Esse aí faz tudo isso por que está fixado em coisas da sua vida”; “Ele é complexado, deixa pra lá”; “Isso e trauma da infância, ele é manhoso, isso não é crise, isso é má vontade”; ”São questões relacionais, ele está resistindo ao tratamento”; “você não percebe que pra ele a palavra é literal, então quando ele fala você precisa tentar ir para o Real dessa situação, você errou ao tentar inserir o simbólico”; etc. A direção aqui precisa ser a da singularidade com visadas ao particular, ou seja, como pensar a direção de tratamento de cada um, tanto em sua relação com a alteridade quanto com o que o causa nessa relação?
Com ajuda de Dunker e Kyrillos Neto: trata-se de sair e acompanhar o paciente do “caráter repetitivo e intrinsecamente patológico de certas relações e escolhas”, de atravessar a “gramática preponderante de como criamos determinantes para maus encontros de uma história biográfica” e interromper a sequência de narrativas hegemônicas “para produzir sentido a partir do sofrimento, seja pela intrusão de um objeto patológico, pela violação de pactos simbólicos, pela alienação da alma ou, ainda, pela dissolução da unidade do corpo político moral ou familiar”. Usando a linguagem de alguns pacientes, é “desembolar”, sair dos interesses narcísicos e totalitários, fascistas desse neo-liberalismo à brasileira. É deixar a conversa para poucos da psicanálise do cerrado e partir para o trabalho com quem ainda não viveu outras condições de invenção.
Fecho essa primeira provocação com Dunker e Kyrillos Neto: “Pensar a saúde mental é pensar o processo de institucionalização do sofrimento, bem como as políticas que elevaram o bem-estar a um fator chave na regulação de nossas formas de vida.”. Lembrando que quando cito políticas públicas, alinho-me com Amstalden, Hoffmann e Monteiro que em 2010 afirmam: a política como “o conjunto de princípios, diretrizes e normas que regulamentam as práticas sociais e a gestão dos bens públicaos, em função de um bem individual e coletivo (seja a saúde, a educação, a justiça, a cultura, etc.) – é fruto do reconhecimento e da afirmação dos direitos e das necessidades dos sujeitos (aqui compreendidos como sujeitos de direito, portanto).”.
As pessoas rompem com essa noção totalitária de política e bem comum, por que estão operando na vida a partir de uma perspectiva desejante. Isso me leva à segunda provocação de hoje, as armas que encontro e retiro do CAPSad cotidianamente.
Trouxe-as por que apesar delas não aparecerem nos relatos de prontuários, elas aparecem dentro da unidade de saúde na qual trabalho. Elas, assim como os dentes contam de um pertencimento a classe social, mas cada uma é montada de um jeito muito específico, cada uma amarrada, enferrujada e escolhida a partir de um critério.
Se nos dedicamos a passar o âmbito da escolha herética, tão falado esta noite, para o cerne de nossas práticas, não podemos desconsiderar o risco que há nesse modo de abordar o real, ou seja, é preciso estar na vertigem do que pode ser planejado, na queda do que se pode ensinar, na angústia de estar com alguém em crise e em surto sem um manual que assegure a boa prática. Trata-se de uma aposta no desejo, no desconhecido, na criação de uma direção de tratamento. Mas isso não se ensina, se inventa, e cada sujeito sabe o preço desse saber-fazer com o que não se explica, nem se define.
Mas isso não quer dizer que não há o que ler, que a invenção não precise passar pela referências dos pares, quer dizer que essa referência não garantirá os resultados apaziguadores e conformistas de uma disciplina de poder.
É por isso que convido, nesse ano, a abrir uma frente de trabalho no Espaço Hæresis de Psicanálise e Saúde Mental. É preciso fazer algumas questões à psicanálise, ainda mais quando se fala tanto da falta que uma direção de tratamento clínica faz na Rede de Atenção Psicossocial. Foi pensando em levar nossas questões enquanto trabalhadores da RAPS que escolhi ler Freud.
Ler um Freud incompleto, foi a escolha de tradução que mais se alinhou a proposta de incompletude, de não conformidade, de ruptura. Não é por que expressões em francês e homofonias e usos de linguagem são tão atrativos que eles estão aptos a dialogar com o trabalho que precisa ser feito em uma unidade de saúde.
Não se trata, portanto, de aprender o que é Neurose, Psicose e Perversão, para então defender isso que aprendemos. Trata-se de nos encontrarmos com textos que falam desses conceitos, com Freud, e outros que abordam o trabalho com a política pública em questão. Para trabalhar com eles, para pensar a partir deles e podermos nos livrar deles quando preciso, levando a frente uma posição que seja singular e particular, não passível de cópia, impossível de explicar, mas mapeável e custosa – um estilo de analista na RAPS.
Referências Bibliográficas
Amstalden, A. L. F., Hoffmann, M. C. C. L., & Monteiro, T. P. M. (2010). A política de saúde mental infantojuvenil: seus percursos e desafios. Lauridsen-Ribeiro & Tanaka, OY Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no SUS. São Paulo: Ed. Hucitec, 33-45.
Dunker, C. I. L. e Neto, F. K. (2015). Psicanálise e Saúde Mental. Porto Alegre: Editora Criação Humana. 240 p.
Deixe uma resposta