O amor é pedaço de real, Um toque de teu dedo no tambor

 

Cirlana Rodrigues de Souza

(Haeresis Associação de Psicanálise)

 

Introdução

 

D’O amor – no cinema, na literatura e na psicanálise. Cito Lacan para dizer, e nada podemos dizer sem nos contradizer, que “o discurso analítico mostra que falar de amor é em si mesmo um gozo” e que esse gozo confirma que “seguramente não podemos falar sobre isso”, mas que “não poder falar sobre isso não impede o amor”. Em 30 de marco de 1974, Lacan afirma: “o amor só se escreve graças a uma abundância, a uma proliferação de desvios, chicanas, elucubrações, delírios, loucuras […] que ocupam, na vida de cada um, lugar enorme”.  E isso é concordar com Rimbaud ao escrever, na poética do amor, que “o amor está por ser reinventado, nós o sabemos” (Une Saison en enfer/Artur Rimbaud – Delírios I), verso escolhido como convocatória dessa fala.

Para a psicanálise, falar de Amor é falar do miolo da técnica psicanalítica: o amor de transferência, onde o analista nada tem para oferecer.  Também, falar de Amor é supor que o analista irá sempre escutar sobre o amor. Por isso Lacan insiste que “falar de amor, com efeito, não se faz outra coisa no discurso analítico” (1972-1973/2008). Falar dos impasses do amor, dos desencontros amorosos, da sexualidade como impossibilidade do amor objetal infantil, se amam de verdade ou não, do porque não se entender com o ser amado, se reconhece ou não esse amor, porque amar o outro que lhe faz mal ou não lhe faz nada, porque amam um e desejam o outro, são algumas questões que levam pessoas às análises levantas por Jean Allouch: “hoje, por vezes, apelamos […] para um psicanalista, quando fica evidente demais que em se tratando de amor… a coisa não funciona” (2010, p.11).

Para o psicanalista Jacques Lacan, o amor é o encontro puro, um acontecimento no momento certo, mas que não se sabe, como a morte. Esse amor puro [e puro não tem a ver com pureza, mas com a existência possível fora da linguagem] é o que vemos no rosto em êxtase de Santa Tereza d’Ávila de Bernini (Figura 1) que nunca pode ser conhecido exceto para quem o sente, impossível ao outro de saber, onde a angústia é antecedida pelo prazer silencioso.

 

(Figura 1)

Na história do amor, aparece Platão (quem não conhece a expressão ‘amor platônico’?), Aristóteles e sua philia, esse amor como amizade perfeita, onde se ama um outro como sua própria alma, onde ser fiel ao outro é ser fiel a si mesmo, Lucrécio e Ovídio colocando o desejo sexual como fundamento do amor, o amor como virtude cristã, o amor cuja imagem de fundo é o romantismo, a mulher como objeto ideal de amor construído pelos trovadores na idade média. Aparece Espinosa e o amor como afeto, Nietzsche e o amor como afirmação da vida e Freud, para quem o amor é uma história de perda (May, 2012). Na atualidade, a problemática do amor é abordada por “estratégias de acasalamento e aptidão evolucionária, ou de estados cerebrais e neurotransmissores, ou ‘histórias’ sobre vários tipos de relação amorosa que podem existir, ou padrões de afetos na infância, ou funcionamentos do desejo: de intimidade, de sexo, de filhos. Livros acadêmicos, shows, música pop, sites de encontros amorosos na internet, manuais de autoajuda [Escola do amor], todos fervilham de curiosidade sobre as condições para o amor bem-sucedido, o parceiro certo, os desafios da felicidade e do ciúme, ou as virtudes da intimidade, como a empatia, o respeito e a tolerância” (May, 2012, p. 07- 08). Tudo para manter as expectativas de parte da tradição amorosa: a completude, a promessa de felicidade, o sexo como expoente do amor, a salvação do mundo, e o ideal altruísta. Lembro que da tabela dos afetos apresentada por Espinosa no seu tratado sobre a ética, o amor é mais um entre tantos outros afetos. O velho ideal romântico, de velhos pactos amorosos, as modalidades de dominação amorosa, as velhas promessas, as velhas traições parecem resistir às ‘revoluções’ que acreditávamos superar tudo isso e que reinventariam o amor. O que vemos é que acontecimentos como a “liberação do sexo e das diferentes formas de amor, parecem ter ossificado o amor”, citando o filósofo norte americano Simon May (2012). O amor livre, o feminismo, a igualdade de gênero, as possibilidades tantas que o engodo libertário da contemporaneidade trouxe na verdade dão sinais de sucumbir ao imaginário amoroso: amamos ao próximo como salvação, buscamos a alma gêmea, a pessoa certa, reeditamos os ideais de ‘filhos feitos de amor’, o amor certo; investimos no amor, investimos na relação e, aliás, esse tal investimento na pessoa amada é a cara desses tempos, pois ficamos esperando o retorno com juros altos, juros de mercado, e, caso não dê certo, entramos na lógica que Simon May (2012, p.10) chama de “extensão do consumismo ao amor: a exigência de satisfação rápida nesta, como em outras áreas do desejo, e a disposição para trocar repetidamente de parceiro se ela não for alcançada”.

O “Amor a Deus sobre todas as coisas” moldou o ocidente (May, 2012) em uma lógica imposta, não por Jesus que raramente falou sobre o amor, mas pelas religiões, que tornou o amor incondicional, harmonioso, eterno, perfeito, redentor e altruísta, devoto e moral, o valor incondicional da vida que vemos ratificado no Epitáfio “ele amou e foi amado”.

O filósofo Platão, ao escrever O banquete, concebe o amor pelo “ belo corpo como o início de um longo caminho que termina no paraíso”. O amor platônico é esse em que o objeto amado não é para ser possuído, mas é o caminho que tomaremos ao céu, onde o desejo físico é suplantado pelo amor espiritual, de entendimento, livre de ciúmes, que nos leva do finito ao infinito, do contingente ao absoluto, onde o desejo erótico não é apagado mas é direcionado da beleza física para a beleza divina, para o belo (May, 2012). Nesse livro sobre o amor, Platão nos apresenta um symposium, onde os sábios iriam ‘beber juntos’ e tendo a homossexualidade como pano de fundo discutiriam sobre o amor, “ A gestação da alma”. Nesse simpósio, temos alguns aspectos do amor muito presentes nos dias de hoje (May, 2012): o amor nos torna inteiros, não serei ninguém sem minha cara metade, sem minha alma gêmea; o amor é despertado pela beleza e essa beleza não tem a ver com dotes físicos, é algo tipo ‘beleza interior’, do intelecto; o amor profundo; o amor tira o melhor dos amantes. Jacques Lacan explorou essa obra de Platão, em todas as suas nuances para escrever sobre o amor de transferência, enfatizando a relação amorosa e não lasciva entre Sócrates e Alcebíades, onde o primeiro se recusa a dar o que o segundo deseja e supõe que o amado saiba. Mas, o que Sócrates sabe é que não sabemos o que desejamos, assim ele não tem nada a oferecer.

O amor é paixão e ação, é alegria e tristeza, nos paralisa como paixão, mas nos transforma como ação, coloca nosso corpo em invenção, sustenta Baruch Espinosa.  Esse filósofo herege e judeu, que subverte a barreira entre a natureza e Deus, tira o amor dos céus, e se ele pode nos salvar é por afirmar contradições humanas [e de Deus] como o bem e o mal. O “amor comum”, diz Espinosa, é prazer de causa externa, por isso é frágil, pois se está em um outro, é passível de perda. A ambivalência está em justamente reconhecer a necessidade desse amor no outro e perdê-lo. Espinosa nos adverte que o “amor passivo”, causa original do prazer e da dor, não está no outro, este apenas desencadeia em nós confusas associações, ódio, ressentimento, ciúme, e outros afetos de dor. Para o filósofo, nosso trabalho é transformar esse “amor passivo” e triste, da paixão, no “amor ativo”, da alegria e da ação, pois o amor é uma necessidade. Assim, “os amantes experimentam a necessidade que impele as vidas um do outro e por isso se encarregam de suas próprias emoções caóticas” (May, 2012, p.198). É a liberdade como ética no amor, onde os amantes compreendem a si mesmos e um ao outro.

Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, ajudou a tirar o amor do ideal cristão, do ideal romântico desesperado, aquele desespero diante da impossibilidade de consumação neste mundo e, por isso é eterno. Para Nietzsche, essa obsessão por “um estado de coisas mais perfeito do que aquele que a vida humana limitada pelo tempo pode atingir, e que o amor é o caminho que nos conduz até lá” deve ser abandonado (May, 2012, p.247).  Não há salvação e nem perfeição moral e nem condições humanas isentas do mal, perdas, mudanças ou sofrimentos, sendo preciso dizer sim à vida e a seus acontecimentos. Nessa filosofia, o amor é para afirmar a vida em todas as suas congruências e contingências, mas não como aceitação e resignação, mas ver o “belo” nas fatalidades, desnudando nossos profundos instintos, desejos e pulsões. Nietzsche nos leva a perguntar como reinventar esse amor sem desejá-lo como eterno, como estado de segurança e de paz, como meio de salvação de sofrimentos, como garantidor de alegrias e completudes. Tudo isso porque Deus está morto e, junto, toda essa história do amor a Deus.

Onde nasce o amor?

Sigmund Freud reinventou a vida e seus afetos. Reinvenção que está atrelada, no que se refere ao amor a: 1) o homem ama a si mesmo; 2) o homem não encontrará sua “alma gêmea”, sua completude; e 3) há uma distância intransponível entre o que ama e deseja e o que “pensa” que ama e deseja, o que Freud definiu como inconsciente. A gênese do amor, para Freud, está na capacidade narcísica que o Eu tem de se satisfazer, de sua satisfação autoerótica que será transferida para o exterior apenas com o objetivo de posse desse objeto que ele imagina estar no exterior. Importante esclarecer que o Eu imagina que sabe sobre si e suas necessidades e seu desejo, porém, a lógica do inconsciente da psicanálise supõe que há um “saber” que escapa a essa capacidade do Eu de responder sobre si. Em se tratando do amor, isso que vai e volta entre o Eu e o mundo exterior representado no psiquismo, é do sujeito.

Na teoria freudiana, as diferentes formas de amor são indissociáveis da transferência, dos processos de economia/investimento psíquico, da pulsão, do narcisismo e da sexualidade. Freud (1907, p.125) nos diz que “muito antes da puberdade já está completamente desenvolvida na criança a capacidade de amar”, onde a “mãe” provedora do bebê torna-se seu primeiro amor, mas logo esse bebê percebe que essa mãe amorosa não está sempre disponível e o que ele deseja não vai corresponder ao que ela quer e/ou lhe oferece. A entrada de um terceiro, nessa história, chamado de pai, só distancia mais ainda a criança de seu objeto de amor, sendo preciso encontrá-lo (e perdê-lo) em outros objetos deste mundo: contraditória tentativa de preservar o objeto amado, ânsia quase platônica de permanente posse do bem (do objeto bem-amado, o mais belo dos objetos). Esse afeto ansioso e insaciável é a condição de fracasso do amor: a posse de nosso objeto de amor é impossível, sendo essa sua natureza trágica e a recusa dessa natureza vai da agressividade até mesmo à violência, como vemos todos os dias. É o cerne da ambivalência amorosa, onde amo alguém na medida em que ele é uma fonte de gratificação, mas o odiarei na medida em que me abandona, sei que ele me é exterior, mas também sei que me pertence. Essa espécie de regressão a um estado infantil que pode ser lida em sentenças como “nós nos entregamos de corpo e alma um ao outro” é tocada pela pulsão, por aquilo que, em nosso psiquismo, nos leva adiante, que unifica e que desintegra. Freud insiste, desse modo, que os amantes podem tanto criar um mundo protegido dos horrores da humanidade como reproduzir esses horrores no íntimo desse mundo criado. A Psicanálise se interessa muito mais pelos processos e modos como os sujeitos estão reinventando e criando suas histórias a partir desse amor primeiro, do que pela consumação, realização e manutenção de uma ilusória conquista do objeto amado.

É assim com nosso primeiro objeto de amor e caso não seja, a psicose nos ajuda a compreender a severidade de um amor que não é como impossibilidade. E, por falar em mãe, o amor de mãe não é qualquer coisa, mas também não é tudo. Eis algumas mães, na literatura e no cinema, onde podemos reportar nossas fantasias sobre esse amor constitutivo: Medea, Jocasta,  a mãe de Norman Bates, a mãe d’Narrador de Marcel Proust: aquele que passou a vida ansiando que ela subisse para dar-lhe o beijo de boa-noite e mesmo que ela lá estivesse ele sabia que aquilo terminaria, a mãe de Hamlet, Ana Terra, Dona Glória, mãe de Bentinho, e Capitu, mãe de Ezequiel, Sinhá Vitória, Molly Bloom,  infiel, Eva Katchadourian, mãe de Kevin, Ana que se dilacerou ao encontrar um cego mascando chiclete na rua, a vulgar mãe de Antoine Doinel,  Sra. Bennet, sogra de Mr. Darcy, Aurora, mãe de laços de ternura, Kate McCallister, aquela que esqueceu o filho, a mãe abusadora de Preciosa, Erika, a mãe de Nina, a bailarina que tocava a si mesma. Forçando a fórmula da fantasia, onde o sujeito tem um abismo entre ele e o objeto causa de seu desejo, cada um precisa ter seu amor primeiro, pois somente assim será possível e necessário perdê-lo.

Pulsão é o “representante psíquico dos estímulos oriundo do interior do corpo que alcançam a alma”, exigência de trabalho imposta à alma em decorrência de sua relação com o corpo (Freud, 1915/2015, p.25). O amor é o afeto por onde a pulsão escoa e vai enlaçando sujeitos nas parcerias amorosas com seus pactos que reconhecem a lei, rejeitam a lei ou desmentem a lei simbólica, no erotismo, nas amizades; no amor como suplência de nossa incompletude, onde buscamos o pedaço que nos falta no outro; esse amor como condição para a constituição do sujeito do inconsciente, onde o grito do bebê é escutado pela mãe como demanda de amor; o amor, por ser, nas palavras de Jean Allouch “o dom daquilo que não se tem”, o dom de amar,  reinventado por Lacan em signos como: amor libidinal, amor narcísico, amor guerreiro, amor sublimação, amor incondicional, amor como estar a dois, amor philia, amor masoquista, amor como reconhecimento, amor estima, discurso amoroso, amor ao saber.

“Lieben” é a palavra alemã que Freud usa para “amor e amar”, para a paixão e para a ação e, de modo interessante, nos diz que “apenas na conversão do amor em ódio” (p. 49) vemos a pulsão se transformar em seu oposto, pois o objeto de amor e de ódio é o mesmo. Essa expressão toma, de acordo com Freud (1915/2015), três formas: amar – odiar, amar – ser amado e o amar e o odiar. É o jogo do amor narcísico direcionado a um objeto que lhe é exterior, e que estranhamente pertence ao sujeito. Dessas formas, destaco a que está em jogo no “amar a si mesmo”, onde o “olhar dirigido a um objeto alheio “ (p.41) é abandonado e retorna para o próprio corpo. Assim, a sentença religiosa e moral “Amar ao próximo como a si mesmo” não leva a humanidade a nenhum lugar, pois esse amor, de fato, está a trabalho do Eu, de “satisfazer suas pulsões em si mesmo” (p.53). Nos jogos amorosos, o ódio, “como relação com um objeto”, é anterior ao amor, pois é uma espécie de desconforto primordial do Eu perante o mundo, antes da satisfação, e essa reação desprazerosa causada pelos objetos exteriores vai garantir que o sujeito mantenha sempre uma relação íntima com o objeto de amor: de modo paradoxal, Freud nos diz que o ódio garante a continuidade de uma relação amorosa. Assim o ódio não substitui o amor, ele sempre esteve lá e o sujeito lança mão dele como uma última tentativa de manter a relação (perdida) com o objeto de amor.

Destaco esse amor naquilo que Freud nos lembra que ele é uma das invenções do homem contra o mal-estar da civilização, a serviço da busca da felicidade: o que é do sujeito está sempre em desacordo com a civilização e são necessários sacrifícios pulsionais. Para Freud (1930), os projetos de felicidade em sociedade estão fadados ao fracasso e “ser feliz” nada mais é do que evitar o desprazer, e não haveria amor sem mal-estar e sem sofrimento.  Aquilo que Freud disse sobre mães e bebês, ele reporta aos homens e à civilização. Freud nos alerta do perigo do amor como a mais potente promessa de felicidade, pois esse amor é fruto de nosso narcisismo, amamos um ideal de objeto [de amor] e caso esse objeto nos abandone, instaura-se o desamparo, afeto que é o mais próximo da angústia. Essa primazia da relação de objeto é retomada no amor imaginário, onde o sujeito ama a si mesmo que vê na imagem refletida no olho do outro semelhante e isso é importante: de fato, não amamos ao outro, mas amamos isso que é nosso reflexo no outro. Essa dimensão é determinante na medida em que coloca o sujeito frente a algo que lhe é fundamental: somos em falta e aquele que amamos está aí para nos lembrar dessa falta, e é por isso que o amamos.

Desse amor, é preciso passar ao desejo:

 Para Lacan, concordando com Freud, o amor é narcísico, e o que procuramos no outro é a própria imagem. O trabalho de Jacques Lacan em torno do assunto “Amor” recebe o trato de sempre: é possível vê-lo vertendo o amor em imaginário, no jogo amoroso entre o engano de que o semelhante seja meu objeto de amor, naquilo que chamamos de relação de objeto; vertendo o amor em simbólico, entrando em cena um inconsciente estruturado como uma linguagem e que inscreve a dimensão de falta constitutiva do sujeito que passa a buscar o objeto do desejo, que é por ser mesmo em falta, pela impossibilidade de se encontrá-lo na imagem refletida no semelhante: o Outro agora é aquele que vai barrar essa posse, ele não é e menos ainda tem esse objeto do desejo; e, vertendo o amor nisso que posso dimensionar como apenas “pedaço de real” (Lacan, 1975/1976-2008), onde o amor é expressão do vazio causa do desejo e daí decorrem a reinvenções diárias como resposta a esse real: há horas em que não se consegue dizer o quanto se ama alguém.

É do amor cortês, onde cavaleiros e damas vivem num mundo sempre imaginário, que Lacan faz saltar aos olhos que o trovador sabe que não pode ter a dama.  A mulher como um ideal, um objeto inatingível está no centro (vazio) do amor. É o “amor refinado” louvado em poemas e cantos dos trovadores para uma “mulher terrena” (May, 2017). Essa mulher amada é sempre uma dama casada, e sobre esse cortejo não há segredos, não há ciúmes: o amor cortês é um culto ao objeto amoroso, e a grandeza está justamente no que se inventa em nome desse amor, poemas e canções que enaltecem a dama e o amor. Há nessa fantasia algo de interessante: o apaixonado submetido àquilo que “Goethe chamou misteriosamente de ‘o eterno feminino’” (May, 2017, p.170). Submissão narcísica, onde não há consumação do amor, mas um fazer com a real condição de um objeto do desejo inalcançável. O amor é vertido em desejo, em busca, em reinvenção permanente, em sublimação. É amor pelo amor: a alegria está em adorar esse objeto, e não em possuí-lo, mas é por poder amar que um poeta se satisfaz. Sobre isso, uma trova de Guilhem de Peitieu: “Tenho o amor de uma dama, /Não sei quem ela é, /Pois nunca a vi, mas juro, /Ela tampouco fez alguma coisa para me agradar ou vexar, /Nem me inquieto com isso, Pois nunca houve nenhum normando ou francês em minha morada” (retirado de May, 2017, p.170). Esse amor cortês vai bem tanto na lógica imaginária, como na lógica simbólica e, porque não no real, na medida em que é um amor que acharia seu gozo na renúncia de certo gozo!

Ao atravessar o amor imaginário, Jacques Lacan o faz, a partir de Freud, tomando a relação do sujeito com o outro semelhante: a relação com o objeto (de amor). No “Lieben” mencionado, o amor freudiano, há uma enamoração do sujeito ao objeto, um apaixonamento, onde o sujeito crê que pode recuperar a metade perdida e reestabelecer a harmonia pulsional. É o amor como paixão, uma espécie de fenômeno imaginário trágico e cômico, cujo ânsia de posse seguida do fracasso dessa posse, provoca no sujeito uma catástrofe psicológica, como acontece com o Jovem Werther, que ama a imagem maternal e virginal de Charlotte, mas como se essa imagem fosse ele próprio. Esse é o amor como um estado específico em que o Eu é esvaziado a favor do objeto amado, essa imagem de si refletida no semelhante é que passa a ser investida: muito próximo da morte. O amor, como esse algo místico, é o substituto que Lacan estabelece para o fracasso entre os sexos, a incompletude entre os sexos. Ricouer (2007) ressalta que Lacan vai rasgar o amor [freudiano] de seu status de ilusão para pensá-lo como aquilo tocado pelo real. Estamos, então, na lógica do simbólico, da castração que não para de se inscrever, de dizer ao sujeito que é ele desejante porque seu objeto de amor é interdito, lhe é proibido.

O desejo é outra forma de relação com objeto, antes estabelecida pelas vias do amor freudiano: é uma relação que esvazia o sujeito do eu narcísico e inscreve a diferença, onde o outro é desejado por justamente ser proibido. Na linguagem que opera pelas vias das diferenças e da impossibilidade do desejo, amar ao outro seria uma espécie de pacto civilizatório, não haveria amor fora desse pacto.  No cerne desse pacto amoroso, o amante renuncia à posse do objeto em nome da própria liberdade de também não ser possuído: essa renúncia atestaria a falta, um ato de amor ao outro, uma doação ativa para além do objeto, onde amar é amar um ser além do que este parece ser, nos lembra Ricouer (2007). O amor sai da dimensão da contemplação e entra na dimensão do arrebatamento, acontecimento na linguagem onde os sentidos são suspensos, onde o ser amado não é mais uma existência material fantasiada, ele é por ser em falta, ele somente será dimensionado por significantes, não fará mais sentido, mas trata-se do reconhecimento do outro como alteridade, não se trata mais de satisfação, mas de uma demanda marcada pela pergunta “que queres?”, mas não tenho como saber o que o outro quer (de mim).

Hannah Arendt, filósofa alemã e judia, disse que em toda sua vida jamais amou um povo [nem mesmo o povo judeu] e nenhuma outra coletividade, pois amava “apenas” seus amigos, sendo o único tipo de amor que conhecia o amor por pessoas. Hannah uma vez se apaixonou, “caiu de amor” por Martin Heidegger, como podemos ver em seus Escritos Judaicos (1930-1960). Cito: “De seu acento na sala de aula em Marburg, ela se via refletida em seus olhos, não narcisicamente como objeto de seu desejo, mas como a mulher que ele despertara, aquela que ela não havia encontrado antes. Ele escreveu para ela: ‘estar apaixonado’ é ‘ser impelido até o seio da existência mais própria’; ‘o amor’, ele disse, ‘é um volo ut is… Eu te amo: quero que você seja o que é’. Para ele, em uma linha mais conturbada, ela escreveu que o amor de ambos ‘amaldiçoava toda a realidade, deixava o presente como que recuar’, dizendo que ‘ela sentia como se tudo estivesse diluindo, se pulverizando […] com a estranheza oculta de uma sombra espraiando-se sobre o caminho’. Ela tinha dezenove anos; Heidegger tinha 36, casado e com dois filhos”.

O amor, que não para de não se inscrever, é “pedaço do real”:  

Até aqui estivemos no campo do que não para de inscrever, do desejo, da falta que nos causa e de onde clamamos “a sorte de um amor tranquilo, do amor com sabor de fruta mordida”, clamamos por “todo amor que houver nessa vida”, como Cazuza.

Agora, voltamos ao amor, mas nos termos de Amy Winehouse, o amor como jogo perdido, jogo de azar: Love is a losing game. Love is a losing hand. Nesse ponto do real, do que não se nomeia e nem se determina, as reinvenções do amor ficam escancaradas, pois passamos o tempo insistindo que esse amor é possível, mas agora é preciso ser diferente e não ceder ao engano da imagem ideal do amor, não ceder à contemplação do Jovem Werther e nem esperar que o outro lhe retribua em nome dessa causa perdida: o sujeito sabe [sem saber que sabe] que o amor é por sua conta e risco, não funciona, já deveria ter aprendido, pelas vias do simbólico, que a sexualidade é desonesta, não natural, se afasta do instinto pela linguagem (Ricouer, 2007). Seria a incompletude da relação entre os sexos o que insiste no amor de Elisabeth Taylor e Richard Burton, ou mesmo o que insiste no amor de Lennon e Yoko? Seria o amor que não ousa dizer seu nome de Oscar Wilde, ou o amor como o complexo amoroso de dominação entre Rodin e Camille Claudel?

Em 1975, n’O Seminário, livro 20, Encore [mais ainda], Jacques Lacan se estende sobre o amor, afirma que “fazer amor, como o nome indica, é fazer poesia” como Dante, Shakespeare, Molière, Tudal, Victor Hugo, Rimbaud, Aragon, poetas de quem Lacan cita os versos para ilustrar suas elaborações teóricas. O que é isso de “fazer poesia”? Escrever abrindo mão de sentidos? Escrever sobre o que não se sabe que sabe? Mudar letras, significantes e formas de lugar? Escrever com o corpo? No corpo? O amor sai do campo da fala. Agora é ato.

“O amor é dar o que não se tem”, Lacan diz em 1957, “a alguém que não quer saber disso”, diz em 1977. “O amor é um sentimento cômico”, falou em 1960; “Estamos todos bem de acordo que o amor é uma forma de suicídio”, disse em 1968. “O amor é uma pedrinha rindo ao sol”. “Para fazer amor, é melhor esperar sentado”, ou “o amor é o que põe o narcisismo a serviço de uma enganação”, declamou como versos em 1969; em 1972, afirmou que “o gozo do outro não é signo do amor. ” Lacan inventou palavras para condensar muito do que disse antes: “Amodio” e “almor” (1975), “Amuro”, fórmulas do amor: amor e ódio, amor como alma, o (a)mur, entre o sujeito e seu objeto de amor, um muro, uma falta (1972). Em 1974, o amor é definido como “dois semidizeres que não se recobrem”. Em 11 de junho de 1969, surge, no contundente seminário sobre o ato psicanalítico, a fórmula em que, pode-se dizer, condensam outras: “não há relação sexual”, que é também retomada por Lacan anos depois no contexto de sua teoria sobre a mudança de discurso, conjugada com o que chamou “novo amor”: não há completude. Para isso, lança mão, mais uma vez, da poesia de ruptura e de reinvenção de Arthur Rimbaud e volta a citar o poema A uma razão (À une raison), mencionado em 1953, em “Função e campo da fala e da linguagem”: “Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia. / Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha./ Tua cabeça se vira: o novo amor! Tua cabeça se volta, – o novo amor!/“Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas crianças,/ diante de ti. “Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te./ Chegada de sempre, que iras por toda parte”. Essa “uma razão”, em Rimbaud, é justamente a subversão da racionalidade, da consciência das coisas, subversão e recusa do saber do Eu, a poética. Rimbaud não fala de uma nova humanidade ou uma nova sociedade, esse “novo amor” indica um novo laço social, isto é, um novo discurso, como aponta Lacan: um discurso que semeie a substância do nosso desejo, pede o poeta. O novo amor é, para Lacan, signo da emergência de um novo discurso: “o amor, nesse texto, é o signo, apontado como tal, de que se troca de razão, e é por isso que o poeta se dirige a essa razão. Mudamos de razão, quer dizer – mudamos de discurso” (LACAN, 1972-1973/1985, p.26). Reinventemos o amor pelas vias dessa razão imprevista, não como um avanço, ou uma conquista, mas como a inauguração de algo novo, invenção do desconhecido, determinação de um começo, um ato que suscita um novo desejo diante dessa impossibilidade que nos causa, o ato analítico, o ato de amor (Lacan,1968-1969, O Ato analítico).

É com um ato de amor que suscita um novo desejo que encerro minha fala, ato que realiza a máxima de Lacan Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso (o que desejo) [ Je te demande de me refuser ce que je t’offre, parce que c’est pas ça], proferida no Seminário 19 …Ou pire. Le savoir du psychanalyste (09-02-1972), sobre a letra do amor que escreve o impossível do amor. Ato que retiro do filme Amour (França, Michael Haneke, 2012): Georges e Anne são dois amantes de uma vida inteira que vai lentamente se encerrando no puro acontecimento do amor, quando, pelo olhar, ela reflete a questão “que queres tu? ” A essa demanda de amor, Georges reinventa a história dos dois amantes, cria um novo laço: a cena final de Amour é a realização do ato de amor.

Georges e Anne viveram o amor de invenções e reinvenções diárias; foram enamorados; encontros e desencontros; amaram o outro naquilo que se refletiam; fizeram pactos; geraram filhos; uniram corpos na tentativa diária de negar que não se completavam; assumiram suas incompletudes; foram iguais e foram diferentes. Mas, ainda lhes faltava o ato de amor a reinventarem-se em seu “novo amor”, o ato poético que começa a ser escrito pelos dois amantes na cena do café da manhã, quando Georges pergunta a Anne o que se passa com ela, ali, imóvel. Ele, diante dela, a chama. Em Anne, só olhar, não há mais a fala. Ele a toca, insisti perguntar o que se passa. No olhar de Anne, segundos da cena mais impressionante do filme, tudo se revela para ele e para ela. Desses segundos em diante, não sabemos mais quem pede e quem recusa, mas esses dois amantes bem sabem que não é isso o amor. Ela grita: um grito é demanda de amor, nós sabemos. Georges vai até ela, estava se barbeando. Ele lhe pergunta onde dói. Senta-se ao lado dela, na cama. Pega sua mão, toca-lhe delicadamente com as pontas dos dedos e lhe diz que está ali, com ela. Como sempre esteve. Beija-lhe a mão, enquanto ela sussurrando, gemendo, suplica-lhe algo que ele não sabe que sabe. Nesse ponto, o que lhes disse no início desta fala: aproxima-se para Georges e Anne o momento certo, o acontecimento puro, que somente pode ser vivido a dois nos termos de Georges e Anne. Ele diz a ela que tudo vai ficar bem. Começa a contar uma história de quando ele era jovem, na escola primária, tinha uns dez anos. Anne, em seus gemidos, continua pedindo, de Georges, o ato de amor. Ele continua contando a ela que, no verão, os pais o mandaram ao campo para que ele brincasse com outras crianças de sua idade. Lá havia um castelo, da idade média. Ele diz-lhe que não era o que esperava. Nesse momento, entre o primeiro grito de dor de Anne, nessa cena, já podemos compreender o que George faz: as palavras de sua história vão fazendo borda em torno do pedaço exato de real que se aproxima: agora, ela já o sabe. Angustiado ele continua segurando a mão de Anne. Continua sua história dos dias passados no campo, ela parece se acalmar. Anne fica em espera: na voz que a seduziu por toda a vida ela escuta o que virá, a resposta a sua demanda de amor. George conta-lhe que chorou sozinho depois de ter sido repreendido e que, naquele verão, fez um pacto com sua mãe: ele iria escrever a ela toda semana. Ele fica doente e a mãe vai a seu encontro. Anne parece sorrir, em prazer silencioso. George termina a história de sua infância. Silêncio entre os amantes. Anne espera por ele. Ele pega o travesseiro. Coloca-o sobre a face de Anne e se deita sobre ela. Os corpos estremecem. O ato de amor é consumado. Georges volta a escrever cartas, sozinho na mesa que dividia com Anne. E Lacan, sobre o “amor mais digno” (1973/2003), aquele amor que demanda amor, disse que “a única coisa séria a ser feita é a letra [a carta de amor]” (1972/1985).

 

Referências bibliográficas [citada e consultadas]

 

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